1. As raízes históricas da Autonomia
A Autonomia dos Açores é um processo histórico multissecular. Não radica somente nas transformações democráticas de 1974-76. Também não radica nas manifestações regionalistas e antirrepublicanas da década de 1920. Nem sequer radica na contestação de finais do século XIX, resultante da crise da economia e do agravamento dos impostos, que geram a impressão do abandono dos Açores pelo governo de Portugal. Tudo próprio de um povo que ao governo de Lisboa paga mais, que do governo de Lisboa recebe menos. Tudo próprio de um povo português na hora do tributo, estrangeiro na hora do benefício. Aliás, em carta a Oliveira Martins, Antero de Quental exprime bem o desencanto dos insulanos do termo de oitocentos. Na verdade, já em 1891, pouco antes de finado, sobre as aspirações dos açorianos, afirma sem rodeios “… uns desejariam ser americanos, outros ingleses, ninguém manifesta sentimentos de português”.
A Autonomia dos Açores tem talvez raízes mais antigas, porventura nas amplas jurisdições dos poderes locais de senhores e municípios do Antigo Regime, cerceadas com a instituição da Capitania Geral em 1766, ainda mais com o triunfo do Constitucionalismo no 1º terço do século XIX. Na época pombalina, a preponderância do poder real determina a imputação à corte de Lisboa de toda a responsabilidade pelos infortúnios insulares. Na administração liberal, a fruição da liberdade confere o direito da contestação, que culmina na reivindicação de um governo próprio, condizente com os anseios dos nossos povos, melhor dizendo dos nossos maiores, os únicos então investidos de efetiva capacidade de mando.
Apesar da sua antiguidade, nos nossos dias, a Autonomia é um projeto com fragilidades. Por exemplo, não tem datas emblemáticas: o 2 de março (o de 1895) é comumente ignorado até pelos jornais de Ponta Delgada, que é o berço da Autonomia dos Açores. O 16 de fevereiro (o de 1928) caiu por completo no esquecimento e o 6 de junho (o de 1975) ainda não conquistou reconhecimento social e institucional. É, por isso, que celebramos, e bem, o dia dos Açores, o dia da Autonomia na 2ª feira do Pentecostes, na 2ª feira do Espírito Santo. Trata-se de um esforço de identificação da Autonomia com os Açores.
2. O Espírito Santo e o dia
dos Açores
O culto do Espírito Santo tem a dimensão da história e da geografia dos Açores. Eis a principal razão para a comemoração do dia dos Açores na 2ª feira do Espírito Santo. A Autonomia é um fenómeno de menor dimensão, com raízes mais visíveis no advento da contemporaneidade, na época das revoluções ocidentais e atlânticas, que procedem à difusão das ideias liberais e democráticas, na transição entre os séculos XVIII e XIX. Por muito tempo, a Autonomia foi também uma conquista das elites ou das ilhas mais influentes. Por isso, é a nossa geração que tem a oportunidade, também a obrigação, de convertê-la em projeto de todas as ilhas e de todos os açorianos sem qualquer exceção.
Na atualidade, as transformações socioeconómicas e a evolução das mentalidades provocam abalo no ímpeto das festividades em honra do Divino Espírito Santo, que demandam adaptação aos sinais do tempo. Entre os fatores de enfraquecimento da devoção, reconhecemos o progresso da alfabetização, a contração do setor primário e o predomínio do individualismo. A alfabetização gera práticas de aculturação, que provocam a regressão de todas as tradições. O decréscimo dos ativos na agropecuária reduz o apego dos homens à terra, donde brotam o pão, o vinho e a carne, os principais ingredientes da festa. A prevalência do individualismo, apesar da experimentação de propostas coletivistas, transfere da Sociedade para o Estado o dever da assistência, antes suprido pelos particulares, por exemplo, pelas irmandades do Espírito Santo.
Nos Açores, ao cabo de mais de meio milénio, o culto do Espírito Santo é ainda a mais forte e a mais genuína manifestação religiosa. Nunca como hoje foi esta devoção tão acarinhada. Pela Igreja. Pelo Governo. Pela Sociedade. O perigo é enorme! Acima de tudo, porque não se pode roubar a festa ao povo. A propósito, relembre-se o grito de António Cana Verde, nome fictício do líder dos “terroristas” dos Altares que, na refrega contra a prepotência do bispo Manuel Quinteiro, proclama que “O Espírito Santo não é da Igreja! É do povo!” E, se é do povo, não pode ser de nenhum poder público, local ou regional.
Mesmo neste contexto, importa que façamos a conversão do culto ao Divino numa bandeira, até numa inspiração política, para contenção da conflitualidade gratuita, que motiva o descrédito do governo e das oposições aos olhos do povo, para promoção da justiça social, através da aproximação de ricos e pobres, por intermédio da transferência da riqueza e da dignidade daqueles que tudo possuem para aqueles que nada tem. O império do Espírito Santo é o verdadeiro Estado Social. E nele cabem todos, crentes e não crentes, porque a devoção concilia o sagrado e o profano, tudo timbre de uma religião eminentemente popular.
A comemoração da Região Autónoma num dia de tão grande significação religiosa constitui um convite à conversão da Autonomia em espécie de Religião, pois nos Açores a Autonomia é a expressão da Democracia, pois no mundo de hoje a Democracia, pese embora uma imensidade de imperfeições, é ainda o melhor modelo de governação dos homens.
3. A FLA e o 6 de junho
A manifestação do 6 de junho de 1975 em Ponta Delgada é a causa principal da institucionalização da Autonomia em 1976. Claro que tudo é consequência do 25 de abril de 1974, que faculta a descolonização das parcelas de Além-Mar, com repercussões nos Açores, suscitando nalguns a reivindicação do direito à independência, acrescendo em quase todos a ânsia da reconquista e do aprofundamento da autonomia.
Em 1975, a FLA exerceu um papel fulcral para o futuro dos Açores. Sem a pressão separatista, sobretudo sem o temor do 6 de junho, jamais os Açores e a Madeira teriam alcançado uma autonomia política tão ampla e tão avançada, responsável pelo maior surto de progresso material de toda a nossa história já velha de meio milénio.
Na ressaca do 6 de junho, em agosto, o V Governo Provisório, chefiado por Vasco Gonçalves, cria a Junta Administrativa de Desenvolvimento Regional, que perdura até à posse do 1º Governo Regional dos Açores, em setembro de 1976. Presidida pelo comandante chefe das Forças Armadas nos Açores, General Altino Pinto de Magalhães, composta por seis vogais, um independente, os demais consoante a correlação de forças das eleições para a Assembleia Constituinte, isto é, três do PPD e dois do PS, e ainda dependente do Primeiro Ministro, a nova junta constitui uma antevisão do futuro governo autónomo, a favor da unidade das ilhas, contra o espartilho distrital, que admite já a repartição do mando pelas três ex-capitais de distrito, apenas impedida por embaraços de ordem logística. É por isso que, na altura, Américo Natalino Viveiros considera a junta o verdadeiro Governo dos Açores, por ser fator de estabilidade. É por isso que, na altura, José António Martins Goulart considera a junta o modo de transição para a Autonomia Regional.
À luz dos sentimentos pró-americanos e anticomunistas da população açoriana, na 1ª metade de 1975, quando se alvitra a instalação de um consulado da URSS nas ilhas, os Estados Unidos esboçam um plano de intervenção nos Açores, para garantia do livre acesso à base das Lajes, também para assegurar o controlo do Atlântico e a entrada no Mediterrâneo. À data, a CIA assume a dianteira na aproximação aos separatistas açorianos. Na 2ª metade de 1975, em Lisboa, a contenção dos radicais e a ascensão dos moderados motivam o recuo dos Estados Unidos, que optam pela neutralidade. É o próprio Presidente Gerald Ford que protagoniza a inversão das posições. Com efeito, diz que “… teríamos ficado contentes se [a independência] tivesse acontecido durante o governo comunista, mas agora [a partir de setembro/novembro de 1975] com um governo melhor, é necessária unidade”.
A força da FLA também perdura enquanto serviu de refúgio ou disfarce de agentes de partidos legais, que temiam o poder comunista ou cripto-comunista, dominante em Lisboa, contestado nos Açores. Em julho de 1975, é a cônsul norte-americana de Ponta Delgada que refere “… não é segredo que a independência tem o forte apoio do PPD”. E, em outubro de 1975, são os serviços consulares norte-americanos de Ponta Delgada que reconhecem que “… os líderes do PPD/FLA com Mota Amaral à cabeça …” constituem a fação liberal do movimento independentista, um facto patente no programa da FLA, com alguns laivos de pensamento social-democrata. Porém, com a redução do predomínio do PCP no continente, assistimos ao correspondente decréscimo da influência da FLA nos Açores. Além disso, o anonimato dos líderes independentistas também retira credibilidade ao movimento, pois diverge muito dos demais movimentos de libertação do Ultramar português, com dirigentes portadores de carisma, construído durante anos nas trincheiras da guerra ou nos corredores da diplomacia.
Em conclusão, sem o 6 de junho e sem a FLA, politicamente não teríamos chegado tão longe como beneficiários de uma autonomia ampla, que não carece propriamente de ser acrescentada, que carece sim de ser melhor aproveitada.
Avelino de Freitas Meneses
* Professor Catedrático de História Moderna e Contemporânea. Universidade dos Açores, CHAM e FCSH.