Coordenador da Polícia Judiciária nos Açores, Renato Furtado

Novas substâncias psicoactivas estão na origem de 27 homicídios na forma tentada nos Açores em apenas três anos

 O coordenador da Polícia Judiciária, nos Açores, Renato Furtado, afirmou em Ponta Delgada que as drogas sintéticas e as novas substância psicoactivas (NSP),estão na origem de 27 homicídios tentados na Região, entre 2019 e 2021, o que corresponde a uma média de 9 homicídios tentados por ano.
Renato Furtado está mesmo convencido de que “há uma relação directa entre o consumo destas substâncias e a prática de crimes violentos, nomeadamente homicídios, sobretudo, tentados, felizmente. Mas, a massa de homicídios envolvendo este tipo de agressor toxicodependente tem sido muito significativa”.
E, como afirmou, “neste momento, nos Açores e na Madeira estamos, no olho da tempestade” das novas substâncias psicoactivas.
O coordenador da PJ fez uma predilecção sobre o impacto das drogas sintéticas e novas substâncias psicoactivas na criminalidade violenta no decorrer de um encontro que reuniu o responsável pelo DIAP nos Açores, juízes, Ministério Público, polícias, organismos ligados à Saúde na Região, entre outras entidades.   
Explicou que o drama das drogas sintéticas surgiu nos Açores em 2012. Nesse ano, surgiu uma smartshop na Rua das Cabaças, em Ponta Delgada, a Smoke Side SmartShop, vendendo substâncias estimulantes e perturbadoras ou depressoras do sistema nervoso central, efeitos próximos das drogas tradicionais, e anunciam como substitutos legais, as legal highs.
“Desde logo”, afirma Renato Furtado, “se percebeu os efeitos nefastos daquilo para a comunidade e, em menos de um ano” há legislação regional a fechar, “obviamente”, as smartshops, criando-se o regime das contra-ordenações.
Mas, como afirma o coordenador da Polícia Judiciária nos Açores, “fecharam-se as smartshops, no entanto, a semente estava lançada. Os consumidores provaram e verificaram que por 10 a 13 euros por grama, conseguiam ter aqueles efeitos estimulantes da cocaína que custa entre 100 a 120 euros por grama. Portanto, é mais barato, dá uma pancada parecida, tem uns efeitos estranhos pelos lados, mas não interessa, é barato, vamos embora, vamos consumir isso”.
Logo, os consumidores tradicionais da cocaína e heroína de São Miguel puseram-se “em demanda” para as novas substâncias psicoactivas “e os traficantes querem é vender. São mais organizados, não estão agarrados à coisa, começam a mandar vir da Holanda as substâncias para cá e alimentam aqui a demanda dos consumidores”, explica Renato Furtado.
E esta “demanda” também se dá pela facilidade como se usa a “internet, os meios postais, aéreo e marítimo e por perceberem que não têm consequências criminais, não vão presos. Isso é quase como a pena suspensa. Olha saí livre, saí com uma pena suspensa, mas quando vai ao café diz que se safou. A questão da demanda é sobretudo uma questão de preço. Embora o oásis inicial de preços muito baixos já não seja tão assim, pois os preços estão a subir. Mas, como o efeito é o de estimulante e o estimulante é a cocaína, ainda está a cerca de 50% do preço da cocaína, por isso continuam à procura desta substância, sem dúvida”.
E o coordenador da PJ na Região fala do caminho até as substâncias chegarem aos Açores.  Têm origem na China e ultimamente na Índia, tem emergido nesta produção, Países Baixos e chega aos Açores pelo correio, aparecendo assim com o logótipo da Holanda, todo colorido, e a dizer coisas como ‘não é para consumo humano e animal’, estando, portanto, a considerar o toxicodependente abaixo disto”, conclui.

Situações em que interveio
a Polícia Judiciária

Renato Furtado descreveu, na sua intervenção, várias situações reais que ocorreram nos Açores por efeito das novas substâncias psicoactivas. A primeira foi em 2012, a smartshop ainda existia. “Há um roubo agravado pelo resultado. Há um senhor, que era o estudante mais antigo da Universidade dos Açores, que tinha terminado as aulas, vinha com a sua pasta, com o seu portátil em direcção à residência, quando dois indivíduos, que tinham consumido uma substância NSP, queriam e precisavam de mais, atacaram o senhor. Este caiu e morreu uns dias depois. Esta foi, portanto, a primeira situação directamente associada às NSP que eu tenho memória na Região”, descreveu.
No entender do coordenador da PJ dos Açores, “são muitas as situações, eu escolhi três a quatro: Sob o efeito de sintética, homem desferiu golpe no peito da namorada com faca de cozinha. O agressor tinha alucinações, ouvia vozes e tinha sismas. Para ele, ela estava a engana-lo e tinha que a matar. Outro caso: um indivíduo desfere golpes contra a esposa com canivete, sem motivo aparente. Estava sob o efeito de sintéticas e alienado da realidade, segundo testemunhas directas que assistiram ao evento. Estas duas situações são dentro das relações de proximidade”.
Mas, acrescentou Renato Furtado, “também há uma outra situação, de uma pessoa que agride, sem motivo, outras com quem se cruzou na via pública, utilizando uma garrafa de vidro. Portanto, qualquer um de nós na via pública nos Açores pode ser sujeito a uma situação destas, porque estes indivíduos estão num constante pânico”.
“Há dois dias”, prosseguiu, “falei com um tipo destes, perguntei o que é que ele sentia e ele disse sentir um pânico exacerbado. Sentia que estava a ser perseguido e por isso que era perigoso quando estava sob o efeito dessas substâncias. Foi isso que me disse, um indivíduo super racional, quando não está sob o efeito das NSP ou de outras drogas, que consegue fazer uma auto-análise fantástica. Mas assim que o deixarmos ir, vai voltar a consumir”.
Outra situação: Um consumidor de sintética provoca distúrbios junto de uma empresa, é abordado pelo vigilante e desfere-lhe uma facada no peito, ficando imóvel a olhar para o que fez e espera para a chegada da polícia. Não foge, não tem as reacções normais de um criminoso, fica ali especado. Relativamente a um homicídio, consumado o ano passado (2021), posso adiantar que foi um homicídio brutal”.

 Mais Alpha PHP do que
heroína e cocaína juntas

De facto, refere o coordenador da PJ, “aqui está o nosso suspeito NSP, que já não é uma NSP, é uma substância já criminalizada, o Alpha PHP. Apreensões, nos últimos anos de Alpha PHP? Temos aqui o evoluir destas apreensões. São três quilos e tal no seu somatório. O ano passado (2021), apreendemos mais Alpha PHP do que heroína e cocaína juntas. Não estou aqui a misturar o haxixe, naturalmente, que foram cerca de 50 quilos, mas para a tipologia de droga estou a isolar estas três. Isto não quer dizer que estas apreensões não sejam uma percentagem do que há no mercado, mas não vou entrar por aí. Essas apreensões decorrem, também, das prioridades das polícias”, palavras de Renato Furtado.
 “A vontade para perseguir um grupo que se dedique à venda de substâncias NSP, quando elas não estão criminalizadas, não é muito elevada para um órgão de polícia criminal que tem ‘n’ investigações e redes de tráfico à séria a bombar”, sublinhou.
 Portanto, prosseguiu, “é lógico que quando nos deparamos com isto fazemos o nosso trabalho, agora investir nestas redes quando temos cocaína e haxixe a entrar por todos os lados e temos também que dar esta resposta, não é fácil. É uma atitude errada, porque se não formos atrás dessas substâncias não conseguimos saber o que é que está no mercado naquele momento. Ao não saber, não conseguimos ajudar a saúde e não conseguimos ajudar à criminalização da nova substância. Isto está tudo ligado. Temos de ser pró-activos neste combate às NSP, porque elas são a antecâmara das substâncias criminalizadas”, afirmou.

O traficante de Alpha PHP preso

Deu, depois, “uma pequena nota de uma investigação que demonstra o antes e o depois. Foi a primeira detenção e condenação por Alpha PHP, penso eu, no país. Em Abril de 2021 fizemos a apreensão de uma encomenda com cerca de pouco mais de meio quilo, proveniente dos Países Baixos (Holanda). O suspeito não foi detido. Era Alpha PHP mas à data era uma mera contra-ordenação. Depois, é aditado o Alpha PHP pela lei 25/2021 e cerca de uma semana mais tarde, fizemos uma nova operação policial e apanhamos o mesmo suspeito com mais três embalagens, num total de mais de quilo e meio de Alpha PHP. Ele foi detido em flagrante delito e não percebeu o que se passou, pois nós tínhamo-lo abordado o outro dia, deixando-o ir embora. Depois, foi submetido a uma medida privativa da liberdade e foi então informado que a lei tinha mudado. Em julgamento foi condenado a seis anos de prisão. Isto teve alguma ressonância mediática…”, salientou.

Dificuldades para a repressão?

O coordenador da PJ nos Açores abordou posteriormente, as dificuldades para reprimir o tráfico da “branca sintética”, como lhes chama traficantes e consumidores. Desde logo, é a questão da “inexistência, sobretudo, do teste rápido; a incapacidade de definir, num momento inicial, o que temos nas mãos. Esta é a grande dificuldade, pois não permite uma série de outras medidas que são fundamentais”.
Ao longo da intervenção, afirmou que, actualmente, “temos uma aparente acalmia nestas questões legais, não estou a falar da questão da saúde, esta é devastadora. Estou  a falar da interpretação legal na questão das NSP. A NSP Alpha PHP, que já não é NSP, já foi integrada na tabela, é a substância prevalente nestas ruas (Açores) e ainda está a ser. Portanto, aquilo que era a grande ameaça, em termos de NSP, é uma substância já integrada na tabela. Mas, daqui a um mês, dois meses, daqui a quanto tempo?, vamos começar a observar, nas apreensões, que a substância já não é o Alpha PHP, pois antes deste foi o Alpha PVP. Agora é este, mas a seguir vai aparecer outro….”
“Para já, estamos com sorte, temos o Alpha PHP, temos o instrumento jurídico, mas não temos os meios técnicos expeditos para combater imediatamente a questão do tráfico”. E a este propósito corre o rumor de que será instalado nos Açores um laboratório de Polícia Científica para determinar rapidamente o que é a substância apreendida. A necessidade deste laboratório é entendida como uma urgência para uma Região em que a ‘branca’ prolifera no mercado e ‘o branco pode mudar de cor e continuar branco’.

Tornar a droga mais cara…

“Em termos de desafios, este combate à toxicodependência tem que ser percebido e temos que entender que são decisões e estratégias políticas. A Polícia faz o seu combate às redes, o que é fundamental, porque estas redes são perigosas. Há muita criminalidade associada às redes de droga, nomeadamente homicídios associados ao tráfico de droga. Portanto, tem que haver um combate feroz às redes de tráfico de droga”.
Até ao momento, revelou Renato Furtado, a Polícia Judiciária “apreendeu 150 mil doses de substâncias estupefacientes, nos primeiros cinco meses deste ano, entre haxixe, heroína e cocaína. Qual é o impacto que esta apreensão tem no nível de toxicodependentes? Quantos toxicodependentes deixaram de o ser, por causa das apreensões da PJ, da PSP ou de qualquer outra entidade? Talvez nenhum”.
“A única coisa que conseguimos fazer”, prosseguiu o raciocínio, “foi com que eles pagassem mais dinheiro pela droga. O problema da toxicodependência não é o problema da actividade policial. A polícia faz o seu trabalho no combate às redes. O problema da toxicodependência só pode ser resolvido por três vias. A primeira é a prevenção, a segunda é a prevenção, a terceira é o tratamento. O tratamento não é muito eficaz, há muita recidiva. Há uma estatística de que o toxicodependente está tratado e um mês depois está de volta. Então, por isso, vou corrigir a minha afirmação: há três estratégias, nomeadamente prevenção, prevenção e prevenção. É isto. Portanto, a Polícia faz o seu trabalho. Só que a questão da toxicodependência também se combate com uma estratégia social e política. E é a cidadania que tem de trabalhar aqui”, concluiu.

O cozinheiro de anfetamimas que morreu a fazer o cozinhado

No entender de Renato Furtado, “há muita confusão sobre as novas substâncias psicoactivas. Se calhar, se eu perguntar a uma boa parte da plateia, se as substâncias que são produzidas em kitchenlabs, em São Jorge ou na Terceira, em que um determinado indivíduo trouxe uma receita dos Estados Unidos e está a fazer o seu cozinhado de anfetaminas ou de metanfetaminas, com base no Actifed ou no Sinutabque quecomprou, e através de ácidos está a fazer uma reacção química, se isto são novas substâncias psicoactivas? Se calhar a maior parte, que não lida muito com isto, vai dizer sim. Ora, é droga sintética, mas não é uma nova substância psicoactiva. São conceitos diferentes. Verifica-se uma mistura entre as duas coisas. Boa parte das drogas sintéticas estão integradas nas tabelas de droga. E as NSP são substâncias que estão a imitar as outras drogas, em termos de efeitos, mas têm uma particularidade específica: não estão integradas na tabela crime. Por isso, é uma NSP. A NSP é uma substância candidata a integrar as listas. É tipo uma antecâmara das listas das substâncias controladas criminalmente. A partir do momento em que uma NSP passa a integrar uma lista perde a qualidade de NSP, pois passou, em termos legais, a integrar as listas da definição de droga. Mas, os problemas não desaparecem, melhoram um pouco, porque mais tarde quando soubermos que é, de facto, uma NSP, podemos perseguir criminalmente quem a tinha à data da apreensão. Porém, no momento da apreensão pouco podemos fazer. Nesse momento, temos de partir do princípio que é uma NSP, embora mais tarde se venha a saber que era uma substância controlada criminalmente e que deveríamos ter feito o flagrante delito, uma medida de coação, uma busca pós-flagrante ao domicílio, para obter uma série de dados. As consequências nefastas para a investigação têm a ver com isto” – palavras do coordenador da PJ na Região.
 “O primeiro ponto é desconstruir a definição de novas substâncias psicóticas. NSP é uma coisa, drogas sintéticas são outra. As drogas sintéticas são essas substâncias que já estão integradas nas tabelas crime. Umas têm algumas dificuldades, porque não temos teste, outras temos testes. Por exemplo, para as anfetaminas temos teste. Aquilo que eu referi sobre os kitchenlabs e aquilo que acontece nessa produção caseira, quando vamos lá aos restos do cozinhado, fazemos o teste e verificamos que são metanfetaminas. Até fazemos a detenção em flagrante delito, quando eles sobrevivem. Esta é a única situação em que o cozinhado se pode virar contra o cozinheiro, é nestes laboratórios de metanfetaminas, onde o ambiente é extremamente volátil e altamente perigoso. O ano passado tivemos uma morte de um destes cozinheiros, que produzia as metanfetaminas”, conclui.

Quem é Renato Furtado?

 O coordenador da Polícia Judiciária nos Açores, Renato Furtado, é licenciado em Sociologia e mestre em Ciências Sociais, área de especialização em Migrações e Sociedade pela Universidade dos Açores.
Tem o curso superior de Medicina Legal pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e o Curso Internacional de Estudos de Segurança Interna pelo Instituto Universitário Militar.
É Coordenador do Departamento de Investigação Criminal dos Açores da Polícia Judiciária desde Setembro de 2019 e, em termos de publicações, é autor do artigo “O Abuso Sexual de Crianças: Perfil da Vítima Micaelense” e “Deportação e Criminalidade nos Açores “, que foi a sua tese de dissertação de Mestrado.

João Paz/ Carlota Pimentel

 

Print
Autor: CA

Categorias: Regional

Tags:

x