“Noto que as crianças de Ponta Delgada não têm o entusiasmo que verifico nas que estão mais distantes da cidade” pela leitura e pelo teatro

Embora reconheça que a sua grande vocação sempre foi trabalhar com crianças, desejando desde cedo ser educadora de infância ou professora primária, Carla Cabral começou por tirar o Curso Técnico de Serviços Jurídicos, tendo em conta a garantia de trabalho imediato que esta opção representava.
Assim, começou por trabalhar no ambiente de tribunal, uma ideia que inicialmente até considerava interessante, mas depressa percebeu que deveria ter dado atenção àquilo que lhe dizia o seu instinto: “Depois de seguir esta área e de ter a experiência do trabalho, apercebi-me de que não era o que eu queria, porque trabalhar num tribunal não é nada fácil. Há que cumprir prazos, há que ler processos complicados, há muita pressão envolvida e isso não tem nada a ver com a minha pessoa. Eu sou uma pessoa muito alegre, sou uma pessoa que entrega aquilo que imagina aos outros. As crianças, para mim, são a minha fonte de inspiração, e eu pensei sair dessa área de Serviços Jurídicos e começar do zero, ir para a universidade e tirar o meu curso”, recorda.
Assim, Carla Cabral acabaria por se licenciar na área da Educação Infantil, sendo também mestre pela Universidade dos Açores em Educação Pré-Escolar e do Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico, com tese desenvolvida nas práticas no domínio da leitura, e não demoraria muito tempo até conseguir o seu primeiro emprego nesta área com que sempre sonhara.
Sendo “muito habilidosa” em todas as áreas da expressão, e sendo também a criadora da marca Mimos (de) Coração, através da qual se lançou no artesanato, sucedeu-se aquele que viria a ser o seu primeiro contacto com a Associação Açoriana de Educação pela Arte – Boneca de Trapos, na qual é, actualmente, Presidente da Direcção.
Este contacto, salienta, resultou também da sua habilidade de fazer bonecos e fantoches – em acréscimo ao seu carisma –, que possibilitou que desenvolvesse com as crianças das escolas açorianas trabalhos ligados à educação pela arte. Foi nesta associação, que a autora do livro “A Centopeia Doroteia” percebeu que teria, por fim, a liberdade de criar tudo aquilo que imaginava, já que conseguia transpor a sua criatividade para o papel, para um boneco ou até para uma peça de teatro.
Entretanto, depois de vários trabalhos desenvolvidos através da Associação Boneca de Trapos, e depois de muitas e muitas histórias escritas e partilhadas com as crianças, no ano de 2020 começa a montar-se a história “A Centopeia Doroteia”, que, de acordo com a sua autora, surgiu “por necessidade de estar sempre a escrever” e por precisar de preencher o seu tempo.
“Gosto imenso de escrever e quando dou por mim já estou a imaginar alguma história. Este livro surgiu precisamente no momento em que estávamos em confinamento devido à pandemia, e eu sentia que precisava de preencher o meu tempo através da escrita. Como eu estava em casa, pensei em contar histórias, gravá-las e publicá-las no Facebook para transmitir às crianças que estavam em casa para entretê-las e, do nada, comecei a escrever a história desta centopeia. Sou uma contadora de histórias e, como contadora de histórias, senti necessidade de as escrever para contar às crianças, não podiam ser histórias já existentes nos livros, que muitas já conhecem, tinha que ser algo diferente, escrito para elas naquele momento”, conta ainda.
Assim nasceu o seu primeiro livro, pois embora tenha perdido a conta às histórias que já escreveu, a verdade é que, até aqui, nunca teve a coragem de as publicar em livro e de, desta forma, “transmitir o que escreve às outras pessoas”, no entanto, desta vez, foi incentivada quer pela família, quer pelos colegas de profissão que tiveram a oportunidade de ler a história, a partilhá-la para que outros professores, educadores e pais pudessem também conhecer a Doroteia.
Nas palavras desta professora, em tom de resumo, esta centopeia, chamada de Doroteia, é “um animalzinho muito vaidoso que quer ir a uma festa para a qual foi convidada pela sua amiga, Aranha Judite. Quando recebe o convite, foi de seguida ter com o seu amigo Bicho Sapateiro e exige-lhe sapatos altos para ir à festa toda elegante e extravagante, porque ela não queria ir com qualquer coisa, queria mesmo ir de saltos altos, mas imagine-se uma centopeia com 30 patas e de saltos altos…”
Assim, o amigo Bicho Sapateiro aconselha Doroteia a optar por ir à festa de sapatilhas, “mas ela, muito arrogante, diz que nem pensar – porque a verdade é que sapatilhas dão muito trabalho para amarrar e ela não sabia nem tinha paciência para isso. Lá o Bicho Sapateiro cedeu-lhe os sapatos todos e ela foi muito feliz para casa, arranjou-se e foi para a festa e dançou tanto que os sapatos se partiram. A centopeia ficou muito triste e acabou por perceber que tinha sido presunçosa, que tinha sido muito vaidosa e que não tinha acatado os conselhos do amigo… Já os amigos acharam que cada um deveria dispensar um sapato, sapatilha ou bota e entregá-los à centopeia, só para a ver feliz”, descreve Carla Cabral.
Neste sentido, a moral da história publicada agora pela também responsável da Associação Boneca de Trapos passa pelo apelo à amizade e à partilha, bem como pelo apelo para que sejam ouvidos “os conselhos dos bons amigos”.
Em acréscimo, este é um livro “todo ele escrito em quadras com rimas alternadas”, efeito que para além de ajudar no processo de aquisição da linguagem e no desenvolvimento de habilidades de escrita, ajuda também a que as crianças possam brincar com as rimas e, inclusive, fazer jogos com as rimas, o que se torna “muito importante para a criança e chama muito a sua atenção”.
Este é um processo de aprendizagem cada vez mais importante para as crianças actualmente, salienta Carla Cabral, uma vez que “nos dias de hoje, os nossos miúdos não têm interesse nenhum por livros, já que eles estão mais interessados nos telemóveis e nos jogos, o que faz com que os livros fiquem sempre num cantinho da estante lá do quarto”, diz esta especialista em educação infantil.
Este é um problema “de longa data”, refere, o que a leva também a procurar criar histórias que captem a atenção das crianças, o que nem sempre é fácil: “Como contadora de histórias, eu leio muitos livros para as crianças e, às vezes, dou por elas logo nos primeiros dois minutos a perder o interesse. Eu conto as histórias de uma maneira muito expressiva, mas mesmo assim reparo que as crianças se desligam rapidamente”.
Este fenómeno, adianta, é observado com mais frequência nas escolas de Ponta Delgada do que nas escolas localizadas em locais mais rurais, percepção esta que Carla Cabral foi ganhando devido às actividades dentro das áreas da expressão dramática desenvolvidas pela Associação Boneca de Trapos, que tem tido a oportunidade de percorrer todas as escolas da ilha de São Miguel e não só.
“Seja no contar histórias, seja na peça de teatro, seja o que for dentro da área da expressão dramática, eu verifico que cá (em Ponta Delgada), as crianças já não têm paciência. Ou é porque já têm muita informação, ou porque têm muitas actividades ou outros interesses. Não sei. Mas noto que as crianças de Ponta Delgada não têm esse entusiasmo que eu verifico nas que estão mais distantes da cidade, que nos recebem com muita alegria e entusiasmo, que estão atentos, que estão a aplaudir e que estão a puxar por nós. É algo que, sinceramente, deveria ser caso de estudo”, refere.
Quanto ao feedback deixado pelas crianças em relação ao seu primeiro livro, cuja apresentação pública decorreu no passado dia 18 de Junho na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, a autora refere que recebeu já “gravações das mães com as crianças a cantar “A Centopeia Doroteia” porque disseram que a música ficou muito no ouvido, e também houve uma outra mãe que mandou um vídeo com a filha a dramatizar a centopeia. A mãe contava a história e ela fazia a parte do teatro da história da centopeia, mas foi muito bonito”, conta.
Por este motivo, defende que o papel dos pais no que diz respeito à aquisição do gosto pela leitura é fundamental, uma vez que existem actualmente imensos livros, inclusive para bebés, “de tecido e fofinhos”, que podem e devem ser utilizados, por exemplo, na hora das refeições em substituição dos telemóveis, “para a criança começar a ter contacto e a visualizar aquilo que é importante”, uma vez que “um livro é um brinquedo com letras que nos leva para onde quisermos”, inclusive até “ao mundo da fantasia e do imaginário”.
Fruto desta sobre-exposição aos conteúdos digitais transmitidos através de plataformas como o Youtube, realça que é frequente encontrar nas escolas açorianas crianças que falam português do Brasil: “No início, ficava sem saber se a criança era brasileira ou se tinha pais brasileiros, mas as educadoras explicam que tem a ver com o tempo que eles passam no Youtube a ver conteúdo do Brasil e que eles acabam por adquirir a pronúncia”.
Por esse motivo, salienta que tanto os pais como os educadores e os professores devem procurar contrariar esta tendência, e “arranjar actividades de leitura apelativas e alegres”, nas quais “as canções são também importantes quando se está a contar as histórias”. Nesse sentido, Carla Cabral procurou também incluir músicas na apresentação deste seu primeiro livro, em conjunto com a artista Marina Pimentel Pereira, embora tenha apenas conseguido constituir duas músicas a tempo do lançamento de “A Centopeia Doroteia”.
Questionada se a pandemia veio a piorar a relação entre as crianças e os livros, a professora responde que este é o cenário mais provável, embora esta fosse também uma oportunidade para que, em sentido contrário, as crianças se ligassem mais à leitura.
“A pandemia trouxe-nos coisas muito más, mas também trouxe momentos sobre os quais podíamos reflectir e corrigir para darmos mais valor às coisas mais simples, mas também mais importantes da nossa vida, como a família ou como os livros, mas penso que, se calhar, esta relação piorou e que as crianças acabaram por estar mais vidradas no Youtube”, salienta.
Porém, neste período procurou continuar a dar histórias às crianças, gravando-as e colocando-as nas redes sociais para que pudessem ser visualizadas sempre que fosse pretendido pelos pais ou pelas próprias crianças. Neste processo, a autora confessa que, por vezes, passava “um dia inteiro a perceber que história ia ler e contar para ser apelativa”, processo que valeu a pena por cada testemunho que recebia das crianças através dos seus pais.
No futuro, especialmente no próximo ano lectivo, Carla Cabral espera poder levar a história da Doroteia às escolas com alunos até ao primeiro ciclo, afirmando, no entanto, que o ideal seria poder chegar também às crianças que vivem em todas as ilhas dos Açores, e não apenas em São Miguel.
“Fazer leituras é algo que eu vou fazer sempre, porque faz parte do meu trabalho, mas espero ir às escolas contar esta história. Gostava também de ir às escolas das outras ilhas, porque acho que lhes devemos dar esse conhecimento, pois, por vezes, há a sensação de que as outras ilhas estão um bocadinho esquecidas. Por isso, era também importante levar um bocadinho daquilo que se faz cá às outras ilhas”, conclui a autora.
                        

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