Correio dos Açores - Em que consiste o vamping?
Tiago Sá (Especialista em Medicina do Sono) - O vamping é um nome recente para um conceito antigo. Desde sempre e por uma razão fisiológica, os adolescentes têm mais dificuldade em adormecer cedo, às horas que são socialmente mais aceites. É natural que um adolescente tenha sono mais tarde e que tenha vontade de dormir até mais tarde, visto que ocorre na adolescência uma alteração do nosso ritmo circadiano chamado atraso de fase fisiológico, que condiciona isso.
Ao longo da nossa vida e à medida que a idade avança, acontece que vamos avançando a nossa fase cada vez mais, o que significa que vamos ter sono e acordar mais cedo. Não é de estranhar que um idoso se deite às 21h00 e acorde às 05h00. Isto deve-se ao facto de existir esta alteração do nosso ritmo circadiano.
Antes não havia dispositivos electrónicos, mas era natural que os adolescentes fossem para a cama e estivessem a ler um livro até mais tarde. Já todos ouvimos as histórias de alguém que usava uma lanterna para ler na cama, porque os pais não deixavam ter a luz acesa. O comportamento nocturno, em si, não é nada de novo.
O vamping, enquanto definição, é um termo que foi cunhado pelos próprios jovens. Não é um termo científico, é um hashtag. A etimologia da palavra tem a ver com o texting ou messaging, com o escrever mensagens durante a noite, utilizando de dispositivos electrónicos até mais tarde. Estes dispositivos electrónicos podem ser usados para jogar, para comunicar nas redes sociais, ver vídeos de interesse no Youtube ou em outro tipo de plataformas. Basicamente, significa manterem-se acordados a interagir com os dispositivos electrónicos até altas horas da madrugada. Importa salvaguardar que isto não acontece apenas com os jovens. Tenho pacientes adultos que jogam até altas horas da madrugada e que trabalham no dia a seguir.
Outra questão muito importante nos jovens, sobre a qual falamos geralmente em congressos, que é o FOMO – Fear of Missing Out. Há jovens que se sentem obrigados a responder aos chats, pois os colegas estão a falar naquele momento e eles não querem chegar à escola no dia seguinte e estar fora da discussão que foi tida no dia anterior, ou dos vídeos que foram partilhados. Muitas vezes, isso é ansiogénico e stressante, tendo em conta que há miúdos que querem dormir e estão numa luta para não serem socialmente excluídos.
É importante falar com os jovens sobre esta temática, para que percebam o quão negativo isto pode ser para eles, bem como encontrar outros espaços onde se tenham este tipo de conversas e de partilhas. O vamping era mesmo isso, era um hashtag em que os jovens nas redes sociais punham fotografias deles na cama. Portanto, o termo é algo muito social e de interacção social. O comportamento é uma coisa e o termo para designá-lo é outra.
Resumidamente, o cunhar do termo vamping é uma coisa recente. Todavia, não é de agora que há este tipo de comportamento. É preciso naturalizar a questão de os jovens terem apetência por quererem fazer coisas à noite, na medida em que não é algo dos dias de hoje e até tem bases fisiológicas. Não é por acaso.
Que impactos tem a falta de sono na saúde dos adolescentes?
O maior impacto é a privação de sono. Os dados internacionais são bastante preocupantes em relação aos hábitos de sono dos adolescentes. A recomendação de horas de sono diárias, na faixa etária dos 13 aos 17 anos, é entre 8 a 10 horas. Na verdade, é muito frequente os nossos jovens dormirem menos do que 7 horas por noite. E há várias razões para isso, nomeadamente o referido atraso do ritmo circadiano, aliado ao facto de as aulas começarem cedo e à utilização de dispositivos electrónicos à noite faz com que os teenagers vão para a cama e adormeçam muito mais tarde. Passado poucas horas, o despertador toca para iniciar o seu dia.
Importa referir que é recorrente os jovens terem agendas muito ocupadas, entre o que são as obrigações académicas, as tarefas extracurriculares, desportivas, entre outras. Ficam apenas com o período depois do jantar para interagir socialmente, de uma maneira menos controlada, com os amigos e, por isso, acabam por ter alguma propensão para aproveitar esse tempo.
Que consequências?
As consequências da privação do sono são dificuldades de aprendizagem, fadiga, sonolência durante o dia, pior rendimento escolar e desportivo. A longo prazo, se se mantiverem estes padrões ao longo da vida adulta, teremos consequências fisiológicas, nomeadamente o aumento do risco de doença cardiovascular, o aumento de risco de doenças como a diabetes mellitus, entre outras.
Na adolescência e nos jovens adultos, os dados são inequívocos em relação ao baixo rendimento académico, desportivo, isto é, menor performance. E isso depois pode ter impactos na sua vida, pois terão oportunidades de trabalho diferentes do que poderiam ter, se tivessem tido uma performance mais elevada.
Tenho falado com alguns atletas e feito palestras nesse sentido. Os jovens não têm noção da importância que o sono tem para o seu rendimento. Treinam com afinco e esforçam-se em outras coisas, mas depois, à noite, em vez de irem descansar vão jogar ou falar com os colegas. No dia a seguir têm treino e não percebem o quanto isso impacta negativamente o seu rendimento. Eu fui atleta quando era mais novo e também não tinha, na altura.
A privação de sono tem consequências globais a nível de saúde durante toda a vida. As doenças cardiovasculares são significativamente importantes. A quantidade de evidência existente a relacionar a privação de sono com as doenças cardiovasculares é enorme e com as doenças metabólicas, como a diabetes mellitus, também. Além de que a privação de sono altera os nossos padrões alimentares e as nossas hormonas que regulam o apetite, nomeadamente a grelina e a leptina. Ora, isso faz com que tenhamos apetência para comer mais e alimentos mais calóricos, o que leva à obesidade.
Além destas, existem muitas outras relações, designadamente patologia neurológica, demência. São tudo coisas que continuamos a investigar. Sabemos que a privação de sono tem impactos multissistémicos, na verdade, em quase todos os sistemas do nosso corpo. Cada vez mais, a evidência vai crescendo nesse sentido.
Do ponto de vista médico, o que os pais podem fazer, além de conversar com os filhos e alertá-los para esses perigos?
Honestamente, é muito desafiante. Sou pai de um rapaz, que ainda é pequeno, e vou ter que passar por isso como pai também. O mais importante é a informação. Digo aos meus doentes, nas minhas consultas, que é importante as pessoas estarem bem informadas para fazerem as melhores escolhas. Para isso, é importante os pais partilharem com os filhos informação sobre o impacto negativo daquele comportamento, para que eles percebam o porquê de agirem de uma maneira diferente.
Além disso, é extremamente importante definir estratégias e rotinas. Para a grande maioria dos jovens, deixar o telefone fora do quarto parece algo impensável. Porém, provavelmente, a melhor estratégia será tirar do quarto os dispositivos que possam ser apelativos.
Recentemente li um artigo engraçado, onde o autor dizia que quando ia para a cama, tinha o hábito de ler à noite. Contudo, havia uma grande diferença para os dias de hoje: naquela altura, o seu livro não apitava a pedir para ser lido e o telemóvel apita a pedir para o adolescente o ler.
Retirarmos o potencial distrator do quarto é muito importante. Será, igualmente, relevante que os pais ajam de forma semelhante e que se crie uma rotina, em casa, de remover os dispositivos nas últimas horas do dia e na hora de ir para a cama.
Do ponto de vista médico, em jovens que têm o atraso de fase fisiológico muito acentuado, nos casos em que não podem mesmo haver distracções, pois existe grande dificuldade em adormecer, pode ser importante a avaliação médica. Existem estratégias, nomeadamente com recurso a fármacos, bem como outro tipo de estratégias, no dia-a-dia, que podem promover um sono mais cedo nestes casos. Nestas situações, a procura de ajuda médica pode ser de extrema importância.
Há muitas pessoas a procurarem a Consulta do Sono nos Açores?
Tem havido cada vez mais pessoas a procurarem esse tipo de consultas. Os pais também estão mais atentos para os problemas de sono. Nos últimos anos, os distúrbios do sono têm ganho atenção mediática e especial, o que resulta num aumento da procura das pessoas por esse tipo de consultas, sem dúvida.
Tem pacientes com o problema do vamping?
Sim. A grande maioria dos adolescentes que já observei em consulta têm este tipo de comportamento. É muito frequente e é natural. Claro que temos que fazer alguma coisa para mudar, nomeadamente do ponto de vista social, de interacção e de educação perante os jovens. A meu ver, mudar as regras em casa é o mais difícil. Mesmo na minha consulta de sono com adultos, o mais difícil é mudar comportamentos. Muitas vezes, na insónia, o tratamento a seguir e a estratégia com mais evidência é a terapia cognitivo-comportamental, que passa por mudar rotinas, horários, comportamentos. É muito fácil tomar um comprimido, mas mudar rotinas e o nosso dia-a-dia é difícil.
Carlota Pimentel