João Mota Vieira defende maior acutilância dos Açores e Madeira face à República

Atraso na substituição de cabos submarinos pode ter consequências nefastas em quase todos os sectores de actividade nos Açores

Correio dos Açores: O anterior Ministro das Infraestruturas e Habitação considerou ser indispensável o Anel CAM “para a concretização da coesão territorial e assegurar a fiabilidade e a qualidade das comunicações electrónicas entre o território de Portugal continental e os territórios das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”, razão pela qual, conforme referiu, “foi desencadeado o processo de substituição do actual sistema de comunicações por um novo sistema de cabos submarinos de titularidade pública”. Mas o que se sabe é que no final de 2024, o actual Anel CAM deixará de existir e pouco se avançou. Em sua opinião estará em causa a interligação directa entre a Região Autónoma dos Açores e o continente?
João Mota Vieira (eng. electrotécnico): Nas suas ligações ao exterior os Açores são servidos por dois cabos submarinos de fibra óptica: o Columbus 3 e o Açores Madeira. Desde 2003, estes sistemas estão integrados no chamado anel CAM (Continente-Açores-Madeira). É um sistema submarino de fibra óptica com amplificadores ópticos tele-alimentados.
Os cabos submarinos são construídos para uma vida útil de 25 anos. O anel CAM termina em 2025. O consórcio internacional proprietário do Columbus 3 não esperou por aquela data. Em Janeiro de 2021 decidiu desactivar os segmentos internacionais e retirou-se do sistema.  Manteve-se a ligação doméstica Ponta Delgada-Carcavelos, agora unicamente na responsabilidade do Operador Altice.
Com a aproximação de 2025, naturalmente os riscos técnicos e operacionais aumentam. Por conseguinte haverá um incremento da probabilidade estatística da indisponibilidade dos sistemas e, também, uma redução de características das capacidades de transmissão dos sistemas. O cenário de incerteza é cada vez mais uma certeza.
Com o fim da vida útil dos sistemas há também que considerar os riscos regulatórios, uma vez que a concessão ao Operador Incumbente termina, concluindo-se um conjunto de obrigações inerentes. Poderemos assistir a um aumento significativo dos custos de operação e manutenção, e ficar em causa novos investimentos de aumento de capacidade ainda nos sistemas existentes.

A Região pode vir a sofrer graves prejuízos em termos de comunicações?
Os cabos submarinos são a única “auto-estrada” digital que serve os Açores. Uma indisponibilidade, mais ou menos prolongada, daquela infra-estrutura, introduzirá uma disrupção funcional muito acentuada em todos os sectores da sociedade açoriana. Os impactos sécio-económicos serão tremendos, na impossibilidade de chamadas telefónicas, no acesso à internet, aos centros de dados da nuvem, à TV, etc. Haverá consequências em áreas críticas como a saúde, transportes, educação, transacções financeiras. A título de exemplo, todos estamos recordados dos efeitos nefastos que a produção clínica do hospital de Ponta Delgada experimentou, quando este cortou a ligação à rede de dados e impossibilitou o acesso ao centro de dados externo. Uma das principais actividades económicas, como é o turismo, será fortemente afectada, com consequências na degradação no acesso e prestação dos serviços inerentes.
Além dos aspectos socioeconómicos, há também que considerar as perdas de reputação. Talvez estas até sejam mais significativas, porque são mais difíceis de recuperar. Serão factores bastante negativos quando a Região pretende implementar uma “transição digital” e deseja atrair investimentos de base tecnológica na área aeroespacial, só para dar um exemplo.

Os políticos defendem que esta pode ser vista como uma oportunidade para capitalizar investimento, permitindo a expansão para novos mercados, onde podem surgir novas profissões e novas formas de adaptação às atividades profissionais, combatendo também o isolamento da Região. Qual o seu entendimento nesta matéria?
Não será pelo facto dos Açores poderem vir a possuir uma nova rede de cabos submarinos que haverá uma reconfiguração da economia açoriana. Sendo uma condição necessária, não será só por si suficiente.  Não ocorrendo a modernização daquela rede, os Açores alimentam riscos de custos oportunidade, num mundo onde a competitividade pela retenção e atracção de investimento de capital e conhecimento é bastante intensa. Os cabos submarinos de fibra óptica permitem a eliminação virtual do isolamento geográfico dos Açores. No mundo digital, os Açores estão tão ou mais no centro que muitas regiões, o que poderá ser colocado em risco, por uma deficiente gestão do processo de substituição dos actuais cabos submarinos.

Fala-se de que é urgente um ecossistema de inovação empresarial nos Açores?  Qual a sua opinião?
Os Açores têm características interessantes que podem propiciar o desenvolvimento de empresas e actividades inovadoras, com base no conhecimento. Todavia, para que tal aconteça terão que ser implementadas durante anos políticas públicas consistentes e consequentes, que teriam de beneficiar de um acordo político alargado, para mais do que uma legislatura. Existem já alguns investimentos que merecem aprofundamento e evolução, como por exemplo o Nonagon - Parque de Ciência e Tecnologia de São Miguel, o Terceira Tech Island e em Santa Maria na área espacial.

Em matéria de comunicações, como vê hoje a situação que se vive nos Açores e o que era necessário para nos posicionarmos neste mercado?
Os Açores, nomeadamente a cidade da Horta, de 1893 até 1969, desempenharam um papel central na rede de comunicações do Atlântico Norte. Foi o tempo dos cabos submarinos telegráficos e coaxiais. Ou seja, a ilha do Faial esteve para os cabos submarinos, tal como a ilha de Santa Maria esteve para as ligações aéreas transatlânticas. Os cabos submarinos ópticos intercontinentais têm características que dispensam os Açores. Todavia, isto não quer dizer que um qualquer sistema internacional não venha a ter amarração nos Açores, até por razões de geopolítica.
As telecomunicações dos Açores gozam de uma aparente normalidade, que poderá ser colocada em risco a dois níveis: pela fragilização das ligações ópticas submarinas inter-ilhas e externas, e pela redução do investimento nas capacidades dos engenheiros e dos técnicos que suportam e mantêm em operação as redes. Numa altura em que se está a desenhar uma nova ordem mundial, aqueles dois factores conjugados introduzem riscos acrescidos. Os Açores sendo uma região com risco sismo, deverá ter sempre muita atenção com as suas redes de comunicações, porque estas desempenham um papel essencial nas situações de emergência.

Sabendo-se que não está ligado à esfera política, o que acha que em termos políticos era possível fazer para que o processo dos cabos submarinos avançasse para que não percamos o comboio da era digital?
Preferencialmente a substituição dos actuais cabos deveria ter sido assegurada por um consórcio entre operadores privados e pelo Estado, certamente, com incentivos públicos. O Governo da República poderia ter lançado uma consulta pública para a respectiva concessão. Não foi esta a opção.
O Governo da República entregou directamente à IP-Telecom a substituição do anel CAM até 2023. A IP-Telecom é um operador grossista do Grupo CP (Comboios de Portugal). Não possui identificação com a realidade das ilhas, nem conhecimento e experiência em sistemas submarinos. Tudo isto são factores adversos, a que se soma uma grande procura num mercado de fornecimento e instalação reduzido e muito especializado. Acresce a actual conjuntura inflacionista e de alguma escassez de matérias-primas.
Não havendo mais atrasos, não ficarei admirado se só em 2028 os Açores tiverem em operação um novo anel CAM. E ainda há para resolver o Anel Inter-Ilhas (serve 7 ilhas), do qual a República não fala e que termina a sua vida útil já em 2023.
A substituição do anel CAM não tem sido uma prioridade da República. É um projecto orçamentado em 120 milhões de euros, que deverá ser revisto em alta, devido ao actual contexto internacional desfavorável.
Os governos regionais dos Açores e da Madeira deveriam ser mais acutilantes nesta matéria. Deviam exigir à República que cumpra com o seu papel de assegurar a coesão, a segurança e soberania nacional, onde justamente, não há muito tempo a República fez valer as suas prorrogativas aquando da pandemia.

É possível haver um apagão de comunicações nos Açores?
Não será de todo impossível. Há um incremento muito significativo de riscos, para os quais é da mais elementar prudência a introdução de factores de gestão e mitigação. É preciso não esquecer que reparações nos segmentos submersos podem demorar 30 dias, com a mobilização de navio, de equipas e equipamento especializado. Por outro, poderá haver escassez de equipamento sobressalente, problemas mecânicos no próprio cabo e todo um conjunto de situações inerentes a equipamento electrónico e mecânico em funcionamento em permanência há mais de 20 anos, num ambiente muito agressivo.
 

 

Print

Categorias: Regional

Tags:

Theme picker