Em Setembro vai lançar em São Miguel um livro de memórias

Padre-missionário José Tavares esteve em vários lugares, mas ainda hoje sente saudades do povo de Moçambique

Aos 64 anos prepara-se para lançar um livro de memórias. Para alguns, será cedo demais, mas para o padre-missionário comboniano José Tavares, nascido e criado na então freguesia de Rabo de Peixe, hoje vila, é a hora certa: “Já vivi três quartos da sua vida” e amanhã não se sabe o que acontecerá. A escrita sobre o que viveu nas suas missões e enquanto padre não surgiu da sua vontade, mas sim por sugestão de uma sobrinha. No início manifestou-se reticente e disse que nunca escreveria as suas memórias, até que a vida lhe pregou uma partida, mas Deus segurou-o, e cedeu a deixar no papel as suas vivências. Uma grave situação de saúde abalou-o, mas não era chegada a hora, havia mais missões para levar a bom porto, como cuidar da saúde mental dos mais desprotegidos da sociedade - os presos -, que continuam a precisar de uma palavra amiga e de conforto. Debilitado, teve de recolher-se mais tempo do que imaginava e no silêncio começou a desenhar o seu percurso missionário.  Numa conversa, recorda as suas origens e a sua partida dos Açores para destinos longínquos, mas traça apenas as viagens, nunca as emoções, que ficarão apenas para a família mais chegada, “sobretudo para ficar como memória para os meus familiares, para as pessoas que me são caras”.
Recorda que está há décadas fora da Região, principalmente “há muito tempo longe dos meus irmãos, dos meus sobrinhos e das pessoas do meu meio. Quando venho de férias, venho sempre a correr”, mas aproveita cada minuto deste período para matar saudades, como o que viveu nas últimas semanas.
José Tavares nasceu em Rabo de Peixe e faz parte de uma família de 8 irmãos. A sua viagem ao mundo religioso começa quando “estava no ciclo preparatório, na Roberto Ivens.  Nesta altura,  “passou por lá um missionário que disse que gostaria que alguém fosse para as missões. Mostrou-nos um filme, ainda a preto e branco. Depois, fomos para a aula e a professora perguntou-nos quem queria ser missionário, e eu levantei a mão. Ela disse que ficaria à espera. Foi o início, li muito sobre o assunto e um dia disse ao meu pai que queria ser missionário, tendo-me respondido que  era melhor que fosse padre diocesano, que fosse para o seminário de Angra”. Mas José Tavares não aceitou a sugestão, seguindo o seu próprio caminho para ajudar os outros. E assim foi. Mas antes explica porque preferiu as missões. “Para ser missionário, teria que ingressar numa instituição missionária”, mas fosse para padre diocesano, e quisesse  ir para as missões, como de facto foram muitos, inclusive bispos, vai-se só por um determinado período e depois regressa-se. É-se padre de uma determinada diocese, ou seja, daqui se partiu, aqui se volta.
No meu caso, não sendo de nenhuma diocese, mas de uma instituição missionária, estou ligado às missões para toda a vida. Ainda hoje, lembra, “o trabalho que faço nos estabelecimentos prisionais está ligado às missões de alguma maneira. E porquê as prisões?“ Os reclusos são dos grupos sociais mais esquecidos, mais marginalizados da nossa sociedade. Pensei que este era o meu lugar e que deveria ir para lá. É um trabalho que não dá nas vistas, mas é um trabalho complicado, mas muito gratificante a nível pessoal”.
O padre-missionário opina que “o mundo prisional é um mundo à parte, com características próprias, por vezes, difíceis de gerir”, pois fala-se de histórias de homens e mulheres privados da liberdade e que deixam fora das grades as suas famílias, e não sendo fácil lidar com toda esta pressão precisam de conforto. Também é preciso trabalhar com os reclusos, para que possam ser reintegrados na sociedade, mas essa também não é tarefa fácil.  
“A meu ver, temos um sistema prisional que não está, em boa parte, vocacionado para a reinserção do recluso”, sustenta José Tavares, a que questionamos se a sociedade está preparada, mas a resposta é clara: Temos um sistema que em prática pune, mas não reinsere. Sempre trabalhei com leigos e eles visitavam os reclusos, na medida do possível, para apoio psicológico e, eventualmente, para contactos, para alguma reinserção. Eu coordenava tudo”, sabendo que era preciso trabalhar muito para reinserir o recluso. “Eu trabalhei numa prisão sabendo que a determinado momento entrava e às 17h00, o mais tardar, tinha que sair. Todavia, o recluso entra e não tem hora de saída. No fundo, era um hóspede que vivia naquele mundo nas horas que ali estava. Os estabelecimentos prisionais em Portugal são complicados. No México também me liguei às prisões e em Moçambique, sempre que possível, ia às prisões. No México e em Moçambique a qualidade é muito inferior, mas em Portugal  temos ainda muita coisa que não funciona”, pois em seu entender tinha de haver uma maior ocupação para que estivessem sem pensar na sua condição. “Há reclusos que estão, todo o dia, desocupados. Gente nova que passa o dia na camarata, ou porque estão deprimidos ou porque não têm interesse. Este sistema não funciona, a nível psicológico, nem a outros níveis”, garante o padre que conhece bem três estabelecimentos prisionais portugueses. “Sou apologista de que estejam ocupados todo o dia. Também não estão a congeminar seja o que for. Por vezes, as prisões, em vez de ajudar, desajudam. Não fomentam a inserção e o desenvolvimento da pessoa. Nesses estabelecimentos, encontrei gente das ilhas, inclusive da minha terra que não fazia absolutamente nada durante o dia. Também porque os técnicos, o pessoal ao serviço não é assim tanto. Às vezes, dá a impressão de que os reclusos estão entregues a si mesmos. Considero que todo o sistema teria que ser revisto. O período que recluso passa na prisão, além de desconto da pena, devia servir para reinserção. Se o queremos reinserir temos que usar outra política com eles, outro modo de agir, claro desde que eles queiram”.
José Tavares tem amizade por alguns presos. “Sim, tenho amigos, porque temos pessoas à nossa frente. A mim não me interessava o crime, aliás nunca perguntei a ninguém por que crime estava detido. Interessava-me a pessoa. Partia do princípio de que é uma pessoa que necessita do meu apoio, da minha estima, da minha palavra. O que é que eu fazia? Não fazia milagres. Era estar com eles, acompanhá-los no seu o dia-a-dia. Chegava às 13h30 e ficava até às 17h00. Passeava com eles, falava com um e outro. No estabelecimento prisional não há muito mais a fazer, nas actuais circunstâncias. Ouvi-los, estar com eles, perder tempo com eles”, é o suficiente para ajudar quem está atrás das grades, defende o padre.
José Tavares admite que “não é fácil ganhar a confiança de um recluso. O capelão é identificado com o sistema, o sistema que lhe tirou a liberdade. Para reverter esta situação, é preciso muito tempo, trabalho e delicadeza, e acima de tudo diplomacia. Por exemplo, quando um recluso me pedia para o visitar na cela, na medida do possível, não aceitava que fechasse a porta da cela. Claro que a cela era aberta pelo guarda prisional e ele sabia que lá estava, mas o facto de o recluso fechar a porta, podia dar azo a uma infinidade de coisas. Por mais amigo que fosse deles, conversávamos na cela, mas com a porta aberta, de modo a que quem passe no corredor veja o que estamos a fazer. Não queria ser sequestrado ou acusado de tráfico ou de outra coisa (...)”.
Para além de apoiar, é necessário estar altera. “Sim. Num estabelecimento prisional tudo pode acontecer. É preciso muita paciência, também com o pessoal que lá trabalha, que está sujeito a muita pressão. Os guardas, os técnicos e todo o restante pessoal pessoal precisam também que “o capelão lhes dê uma palavra” amiga. O capelão ouve, cria empatia e a outras cria rejeição. É assim mesmo. Tendo em conta que os trabalhadores do estabelecimento, estão identificados com o sistema, requeria, da minha parte, ainda maior sensibilidade. Ser amigo, mas não me identificar nem com o sistema nem com o recluso. (...)Isto dava-me mais liberdade, porém exigia de mim mais atenção”.  Um padre na prisão podia ser o título do livro de memórias de José Tavares, mas não, como faz questão de sublinhar, porque “já há um livro editado, muito lindo, ‘O Padre das prisões’, da autoria “do padre João Gonçalves, de Aveiro, que conheci pessoalmente”.
Faz questão de sublinhar que sua vida “há duas coisas às quais dediquei tempo, energia e que para mim foram motivos de alegria: o trabalho essencialmente em Moçambique, em tempos muito difíceis, de guerra civil; o México, sem dúvida, gostei muito, mas por pouco tempo; e o trabalho nas prisões”.
José Tavares gostaria de ter voltado para Moçambique, pois “o coração ficou lá”, só que, entretanto, com o agravar da sua situação de saúde, ficou em Portugal. “Não posso apanhar malária neste momento e a zona onde estava, a província Nampula, era considerada, no tempo colonial, o cemitério dos brancos, por causa da malária. Contudo, sinto, que lá ficou metade do meu coração. Sentia-me pai. Os meus filhos ficaram lá. Não os meus filhos biológicos, mas considerava-os meus filhos. No fundo, eu e as irmãs, éramos o único ponto de referência. Chorei no dia em que parti de Moçambique. Como disse, não tenho filhos, mas deixei lá muitos com o meu apelido. Ninguém me chama por José, tratam-me pelo meu apelido, Tavares. Então, deixei muitos Tavarisi. Perguntava no baptismo qual é o nome e diziam-me Tavarisi e eu respondia se queres este nome está tudo bem. Na Europa é uma coisa que se tem dificuldade em experimentar, o sentido da paternidade, de sentir-se responsável por… Dou-lhe um exemplo: estávamos em guerra civil, vivi lá boa parte do meu tempo em guerra civil, que durou 16 anos e em 1991, creio que no Verão de 1991, numa reunião só de missionários, debaixo de uma árvore qualquer, resolvemos para pressionar o governo, sair em bloco de uma parte da província. Seríamos umas dezenas de missionários e vínhamos em bloco embora. A notícia iria ter repercussões no mundo católico e era um modo de pressionar o governo e  os rebeldes a fazerem um acordo de paz, que veio a acontecer uns meses ou um ano depois”. Em teoria, isso não interessava ao Governo  , mas na prática sim, porque dava uma imagem extremamente negativa do país. Então, os missionários vão-se todos embora em protesto. Não aceitam que essa situação de miséria, guerra e exploração se prolongue”.
Voltando à história, “fizemos a reunião e no outro dia veio uma senhora e disse-me que tinha ouvido dizer que os missionários iam embora. Eu expliquei-lhe, na língua dela, que era uma hipótese que estávamos a estudar. Olhando-me fixamente, perguntou se tinha coragem de os deixar ali sozinhos. Eu caí em mim e respondi-lhe que não, que os outros se iam todos, mas que eu ficava lá com eles. É isso que se experimenta. Eu não tinha armas, ai de mim se tivesse, mas a minha presença física no meio daquele povo era fundamental. Era a única esperança que eles ainda tinham”. Contudo, lembra, que regra geral os rebeldes respeitavam os missionários. Não eram todos, mas a minha experiência é positiva. A minha missão estava dividida. Mais de metade pertencia aos rebeldes e um pouco mais de uma terça parte pertencia ao governo; ao Estado moçambicano. Eu tentei, na medida do possível, ser autónomo em relação a ambos. Isto nem sempre era fácil, sobretudo, com o governo. Claro que eles também assaltavam a missão, atacavam, roubavam e matavam pessoas. Sempre que no meio de um ataque chegavam à missão, eu tentava negociar. Pediam-me medicamentos, mas tínhamos poucos e os possuíamos estavam separados em dois pequenos conjuntos, de modo a que não levassem todos os antibióticos e seringas, e eu ficasse sem nada. Negociava com eles, por exemplo, um monte de antibióticos ficava para eles e o outro monte para mim. Eles, regra geral, acatavam (...)”.
Recuando  à escolha pelas missões, a caminhada de José Tavares também foi muito académica. Estudou Filosofia em Coimbra, em Santarém fez a sua introdução religiosa, em 1981, padre-missionário comboniano. Daí, como conta, parte para Roma, onde permanece para estudar Teologia até 1985, ano em que regressa a Portugal para nova formação em Coimbra, “a casa onde havia estudado oito anos antes”, partindo novamente para  Roma para finalizar uma especialização. Em 1989, parte para Moçambique onde permanece até 1998. “De Moçambique, vim de férias aos Açores e parte o México – México central - para trabalhar entre os índios chinantecos. Na ocasião, diz, “não estava preparado para aquele tipo de trabalho. Vinha extremamente cansado de Moçambique e não aguentei. Tive dificuldades em adaptar-me e optei deixar o país, também por dificuldades de língua. Voltei à Europa, altura em que se começaram a notar algumas dificuldades a nível de saúde, e tem-se mantido em Portugal, desenvolvendo o seu trabalho, sobretudo, no mundo das prisões, como capelão carcerário, tendo estado ao serviço no Estabelecimento Prisional de Coimbra, Porto e Lisboa.
Neste momento, José Tavares não está ligado ao mundo prisional, desde que começou a pandemia, e depois por questões de saúde retirou-se. “Faço actualmente animação missionária. Isto traduz-se em passar pelas comunidades cristãs, a falar das missões, a sensibilizar o povo de Deus para a sua responsabilidade missionária”, explica José Tavares.
 

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