O número de utentes sem médico de família tem vindo a aumentar em Portugal, tendo em 2022 ultrapassado 1 milhão. Para mitigar esta lacuna, o atual Governo da República apresentou uma proposta que veio gerar uma onda de descontentamento por parte dos médicos de família, que se afirmam “de luto pelo SNS”.
Em causa está o ponto 9 do Artigo n.º 206 da Lei do Orçamento de Estado de 2022, que refere “enquanto não houver condições para assegurar médico de família a todos os utentes”, o Serviço Nacional de Saúde pode “a título excecional” celebrar contratos “com médicos habilitados ao exercício autónomo da profissão”, vulgo, médicos não especialistas. Esta medida não é mais do que um atentado à dignidade da especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) e aos próprios portugueses utilizadores dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).
Mas afinal, o que diferencia um médico sem especialidade de um médico de Medicina Geral e Familiar? Um médico sem especialidade completou 6 anos de curso teórico-prático, conferente ao grau de mestre em medicina. Um médico especialista em Medicina Geral e Familiar completou os mesmos 6 anos de medicina que o anterior referido, seguindo-se de 4 anos de formação pós-graduada especializada na qual compreendem diversos estágios, muitos deles hospitalares, e exige ainda aproveitamento num exame teórico-prático anual, a participação em congressos e a produção de conteúdo científico. Ora, o que dita na lei em questão vem a anular a importância de todo este percurso académico.
Pode, portanto, afirmar-se que existem médicos que são qualificados para assumir uma lista de utentes com o intuito de prevenir a doença, promover a saúde, fazer o seguimento de doenças crónicas e atendimento de situações agudas, porque em tal se especializaram.
Existem portugueses que serão os privilegiados (por serem vistos por alguém com qualificações) e outros que serão os remediados (por serem vistos por alguém sem qualificações para tal). Esta desigualdade, fruto de uma alteração legislativa que vem apenas correr atrás do prejuízo, vai contra os próprios princípios do SNS: equidade, solidariedade e dignidade.
Abordemos o problema numericamente. Portugal forma cerca de 500 especialistas em MGF por ano, no entanto, a percentagem dos que permanecem no SNS é pequena, em 2022 apenas 35% das vagas abertas foram preenchidas. Existem cerca de 1 milhão de portugueses sem médico de família e por volta de 1400 especialistas em MGF fora do SNS. Calculando que, e de acordo com o panorama atual, cada médico de família assume uma lista de 1900 utentes, seriam necessários cerca de 600 especialistas para se conseguir uma cobertura total da população portuguesa. Logo, Portugal tem neste momento os recursos humanos necessários, não só para assegurar que todos os portugueses tenham médico de família, mas também para que haja uma redução do número de utentes por médico, proporcionando-se assim uma melhoria nos cuidados prestados. Então, o que é que não há em Portugal? Capacidade de gestão de recursos por parte da tutela.
A solução passa por tornar o SNS mais atrativo para os médicos recém-especialistas, o que começa por se devolver a dignidade aos Cuidados de Saúde Primários, valorizando os seus trabalhadores e garantindo-lhes condições técnicas para que possam desempenhar as suas funções. O SNS carece também de uma atualização dos sistemas informáticos no sentido de diminuir a carga administrativa do médico, para que este tenha mais tempo a dedicar ao contacto com o utente. Urge ainda uma atualização da grelha salarial, que permanecendo inalterada desde há 10 anos, vem a contribuir para uma drástica diminuição do poder de compra dos que permanecem no público. Acompanhando o aumento do salário base devem surgir incentivos para a fixação dos médicos nos locais mais remotos.
Ordem dos Médicos, Sindicato Independente dos Médicos, Federação Nacional dos Médicos, Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, todas estas instituições, de grande peso na saúde em Portugal, votam contra esta medida. Até ao momento não houve consenso entre o governo e estas instituições, e os médicos, não se sentindo ouvidos nem respeitados, continuam a abandonar o Serviço Nacional de Saúde.
Sara Moniz Pimentel *