Correio dos Açores - Onde nasceu?
Abel Vallejos (Médico) - Nasci na Argentina, mais concretamente na Patagónia argentina que se localiza no sul do país. É quase o sítio mais austral que existe no continente sul-americano. Venho de uma pequena aldeia chamada Centenário, que se situa na cidade de Neuquén. Na minha aldeia produzem-se maçãs muito boas. Em Centenário, temos um ditado “terra de pioneiros e da melhor maçã”.
Como surge a decisão de se tornar missionário?
O meu país não é um país tradicionalmente “enviador”, mas sim receptor de missionários, provenientes, maioritariamente, da Europa ou da América do Norte. Eu pertenço a uma família protestante evangélica e, nos últimos 50 anos, o Cristianismo evangélico tem crescido muito na América latina em geral, mas na Argentina em particular. Neste momento, há quem diga que supera 15% da população. Há cerca de 25 a 30 anos correspondia apenas a 1% da população. Ainda assim, é o dobro dos cristãos evangélicos em Portugal, que são quase desconhecidos.
Os cristãos protestantes evangélicos em geral adoptam a ideia, diferente do catolicismo, que diz com a bíblia tudo, se não está na bíblia nada.
Uma delas assenta em um mandamento de Jesus Cristo de ir pelo mundo enunciar o evangelho; a outra é fazer ao próximo o que gostaríamos que nos fizessem a nós, ou seja, amar ao próximo e servi-lo. Neste contexto, para mim foi fácil.
Na Argentina, há um divórcio entre o que a Universidade produz e aquilo que o mercado absorve. No meu país de origem sobram médicos, pois produzimos mais do que necessitamos. Há lugares na Argentina, onde há um médico para cada 200 pessoas. As Nações Unidas sugerem um médico para cada duas mil pessoas.
Portugal considera que faltam médicos, porque há um profissional para cada mil pessoas. Eu trabalho em África, num lugar onde existem, pelo menos, 100 mil pessoas sem médico. Aliás, até há quem diga 500 mil pessoas, mas eu não consigo precisar tendo em conta que não fiz nenhuma contagem. Posso afirmar que a grande maioria dos meus doentes chega às minhas mãos após inúmeros tratamentos com medicina tradicional, que quer dizer bruxaria literalmente.
Onde faz a sua missão em África?
Comecei na Guiné-Equatorial, o único país de língua hispana, visto que era uma ex-colónia espanhola. Depois, fui para os Camarões, para a Guiné-Bissau e, de seguida, para o Senegal. Neste momento, regressei com a minha esposa para a Guiné-Bissau e estamos a trabalhar no Norte com aldeias islâmicas, onde praticamente 0% da população sabe ler e escrever, isto é, há aldeias inteiras em que ninguém sabe ler e escrever. São aldeias pequenas.
No interior profundo da Guiné-Bissau, especialmente nas aldeias islâmicas, os jovens fogem para a cidade, ficando os velhos e as raparigas. Estes jovens regressam à sua aldeia para ir buscar uma rapariga quando vão casar. Aí, as raparigas compram-se e vendem-se…
Há quanto tempo começou?
O nosso trabalho começou há 33 anos. A minha referência é que, quando lá cheguei, caiu o muro de Berlim, portanto, no ano de 1989. Comecei as missões tinha 29 anos.
Trabalha no Verão nos Açores para ganhar dinheiro para se sustentar nas suas missões?
Há uns anos, houve uma guerra civil na Guiné-Bissau e nós tivemos que fugir com todos os portugueses que estavam lá também e Portugal acolheu-nos.
O Cônsul argentino em Lisboa, perguntou-nos se queríamos estatuto de refugiados ou se preferíamos estatuto de turista, uma vez que tínhamos possibilidade de entrar no país sem ser com o estatuto de refugiado, que é uma questão política. Ao fim de seis meses, podíamos renovar a nossa estância em Portugal. Ora, tendo saído por causa da guerra, não pensávamos ficar em Portugal. Porém, a guerra prolongou-se durante três anos, pelo que tivemos que obter autorização para residir e trabalhar em Portugal. E tem sido assim, nos últimos anos, vou e venho.
Além disso, os nossos filhos cresceram e já não dependem economicamente de nós. Então, temos estado a morar em África e regressamos a Portugal, onde trabalho dois meses como médico, tanto no Continente como nos Açores, de modo a obter rendimentos suficientes para o ano todo. Ultimamente, trabalho apenas no Verão português que é quando há mais falta de médicos. Presto serviços através do Sistema Nacional de Saúde, tanto nos hospitais,como nos centros de saúde. Durante a pandemia, trabalhei em centros de vacinação.Enfim, faço qualquer trabalho que me permita ganhar o que preciso para me sustentar o resto do ano em África, onde se gasta muito pouco.
Há quanto tempo vem trabalhar nos Açores?
Este é o sétimo ano. Trabalhei em Angra do Heroísmo, na Praia da Vitória, no Pico, em São Jorge, na Povoação, na Ribeira Grande, e em Vila Franca do Campo, onde estive até ao fim-de-semana passado. Neste momento, estou a fazer os preparativos para voltar a África.
A sua missão de vida é ser missionário?
Os seres humanos encontram, mais cedo ou mais a tarde, o dia da sua morte. Em Portugal, as pessoas morrem como nos países desenvolvidos, da Europa ou do resto do mundo, por motivos vinculados a excessos, nomeadamente excesso de peso, de tabaco, de álcool, de drogas, de velocidade, de medicamentos, de açúcar, de colesterol, de ácido úrico, entre outros.Por exemplo, uma das coisas que mata em Portugal é a tensão arterial, ou seja, sal a mais. Essas doenças acabam por conduzir à morte as pessoas que padecem destes excessos. Os nossos doentes, normalmente, morrem por excessos, mas tendo vivido um número de anos considerável.
A Argentina não se assemelha muito a Portugal na forma de vida, mas parece-se na forma de morte. Os argentinos também morrem pelos seus excessos.
Em África, em alternativa, as pessoas morrem muito novas e morrem por motivos de carência. Por falta de médicos, de medicamentos, de dinheiro, água limpa, escolas, caminhos, proteínas, vacinas, e há instituições que se preocupem, por falta de amor ao próximo.
O que pode fazer um médico para que o cidadão coma menos, fume menos, beba menos álcool, tire o pé do acelerador? Pouco é o que um médico pode fazer em termos de persuasão, aliás quase nada na realidade. Não podemos lutar contra os excessos, aliás, podemos, contudo não tem o mesmo sentido para mim que lutar contra as faltas, de água, de médicos, de medicamentos, de alimentos, de atenção primária da saúde de crianças.
Metade das crianças em África morre por causa do paludismo, da malária. Essa doença é possível de ser combatida com menos de um euro. Claro que dentro de 15 dias a um mês esta criança terá um novo episódio, porque o estado não combate a doença endémica. No passado, houve paludismo nos Açores, todavia o Estado conseguiu exterminar o vector, que é o mosquito. Não há doenças de transmissão endémica nos países europeus. Em África, tratamos o doente, mas não podemos tratar o meio ambiente. Então, eles estão condenados a apanhar, inúmeras vezes, paludismo, lombrigas, tuberculose, até lepra, uma doença desconhecida na Europa, e tantas outras doenças vencidas pela ciência. As crianças de África, às vezes, morrem por uma simples diarreia, pois estão tão desnutridas e vulneráveis por falta de alimentação e cuidados.
Considero que não é um esforço, é uma espécie de privilégio que tenho e foi essa a maneira que escolhemos viver. A minha esposa tem ido muito mais longe, na medida em que se tem dedicado a ensinar, educar e preparar. Eu apenas tenho tentado controlar os danos. O meu trabalho é, mais ou menos, como os bombeiros que apagam fogos.
A sua vida faz mais sentido ao fazer este percurso…
Para mim, é muito mais gratificante lutar contra as necessidades do que contra os excessos. O que posso fazer para que aquele paciente, que tem de emagrecer, coma menos? O seu tratamento depende, exclusivamente, da sua própria decisão e mudança de vida. Por outro lado, o que pode fazer uma mulher grávida em África para que o seu bebé não nasça desnutrido? O que pode fazer uma criança de um ano de idade para ter água potável? O que podem fazer as crianças, em geral, para terem vacinas, comida, latrinas?
Evidentemente, sou muito mais útil lá do que cá. Lá, consigo ser útil à população e é isso que sinto; cá, a população é que me brinda com o benefício e o Estado português com a oportunidade de ganhar o que preciso para servir lá. Tento fazer o meu melhor e creio que há pessoas interessadas em poder ajudar, pois é uma causa que vale a pena.
Faz as missões por sua conta ou trabalha para alguma organização?
Já trabalhei para uma ONG da Argentina e para as Nações Unidas. Acabei por deixar, visto que, muitas das vezes, as regras e obrigações eram maiores que os benefícios de trabalhar para eles. Infelizmente, encontrei mais corrupção do que eficiência e isso atribui-se ao pessoal estrangeiro e nativo também. Na realidade, a maldade é inerente ao coração humano e não ao passaporte.
Tento fazer as coisas a um nível muito menor, sem recursos. Quando trabalhava para as Nações Unidas tinha um condutor, uma carrinha, uma boa moradia que eles me davam. Em contrapartida, ficava com as mãos atadas sem poder fazer o que queria e devia, para fazer o que estava escrito nos projectos. Enquanto médico das Nações Unidas tinha à minha responsabilidade 80 a 90 brancos e 1.500 nativos. A diferença entre os cuidados proporcionados a uns e outros era tão grande e evidente que eu acabei por desistir. Economicamente, e em termos de conforto, estava muito bem servido, porém não fui para estar bem servido, mas sim para servir.
Que perspectivas tem de futuro?
Tenho tentando, quer na Argentina, quer em Portugal e outros países da Europa, nomeadamente Espanha, angariar novos profissionais que queiram dar continuidade a um programa que estou a desenvolver, denominado projecto Oasis e é facilmente multiplicável. Este é um programa de saúde ambulatória, mensal, num grupo de aldeias.
Em África, a maioria das aldeias não têm serviços nenhuns, ou seja, não têm polícia, hospitais, escolas, redes de esgoto, electricidade, entre outros. Este programa poderia ser feito em qualquer lugar e contexto, isto é, é aplicável à maioria das aldeias africanas, pelo que pode ser levado para uma região ou mesmo um país vizinho, onde as condições de vida rural sejam semelhantes.
Em todo o país não há um único dentista. Ora, a boca da Guiné-Bissau merece tratamento dentário como qualquer ser humano.
Pensei, com a minha esposa, seleccionar jovens qualificados, que acabem o liceu nos seus países de origem,e levá-los a estudar na universidade na Argentina.
A Argentina é um dos poucos países do mundo, onde a universidade é completamente gratuita. A ideia é que eles estudem, que se licenciem como médicos, engenheiros, dentistas, enfermeiros e que regressem aos seus países de origem como profissionais, de modo a que possam continuar o trabalho que nós, em quase completa solidão, temos feito ao longo de 30 e tal anos. Esse é o nosso plano para o futuro, mas está a andar lentamente. Gostávamos de trazer alguém para viver e formar-se em Portugal, nomeadamente nos Açores, mas os preços do aluguer de casa, de alimentação e transporte são elevados. Portugal é um país muito agradável, mas muito caro para um africano viver. Talvez haja corações bondosos, em Portugal, que nos possam ajudar a formar jovens, muito bem escolhidos, para que estes voltema os seus países com estudos, capazes de ajudar os outros. Evidentemente é um plano imperfeito, porém é o que temos.
Gostaria que as pessoas reflectissem e soubessem que custa 12 euros por mês alimentar e educar uma criança e que custa 110 euros, por mês, um professor de escola primária que ensina a 80 a 100 crianças, divididas em duas turmas. É mentira que não podemos ajudar, podemos sim. Temos uma conta onde as pessoas podem deixar o seu donativo. Honestamente nem sei como pedir. De facto, necessitamos mesmo. Oxalá que se tornasse uma iniciativa açoriana de apoiar a obra missionário em África. A quem tiver interesse e quiser ajudar, deixo o meu correio electrónico, caso me queiram contactar: acheve2008@gmail.com.
Eu e a minha esposa não temos uma organização, nem sei se queremos ter. Até agora, Deus tem fornecido sempre o que preciso através do meu trabalho. Mais do que dinheiro e apoios gostava de ver pessoas que queiram vir ajudar durante um mês, seis meses, ou até mesmo dedicar um ano da sua vida. Não digo 30 anos como nós. Mas, se tivesse outra vida vivê-la-ia da mesma maneira, a servir os outros.
Carlota Pimentel *