O jornalista e escritor Ben Macintyre tem hoje um nome firmado na grande investigação. A história que ele vai desenvolver com uma escrita magistral (Operação Secreta, por Ben Macintyre, Publicações Dom Quixote, 2022), gerando uma associação espetacular entre a pesquisa e o romanesco, era já conhecida e até foi alvo de um filme que chegou a Portugal nos meados dos anos 1950 com o título O Homem que Nunca Existiu. Contudo, pesquisou muito sobre as personagens que montaram ou decidiram esta ímpar operação de desinformação, e o resultado é este livro surpreendente, uma galeria de agentes secretos, secretárias, médicos, militares que concretizaram a bem-sucedida Operação Mincemeat, um logro, quase uma armadilha à prova de bala, que convenceu os alemães que os Aliados, depois de terem conquistado o Norte de África e desbaratado o Afrika Korps do marechal Rommel, em vez de irem atacar a Sicília, tinham planeado invadir a Grécia. Induzido pelas informações dos seus serviços secretos, Hitler vigia uma importante divisão Panzer em direção à Grécia, quando os Aliados atacaram a Sicília, após renhidos combates, os italianos renderam-se e as forças alemãs até conseguiram subtrair-se à rendição. A guerra ia mudar, dentro de pouco tempo Mussolini será demitido, a Itália rendeu-se. E tudo começara quando em abril desse ano de 1943 apareceu a flutuar perto de Huelva o corpo de um oficial britânico que trazia uma pasta cuja documentação, ardilosamente preparada pelos serviços secretos britânicos, enganou os chefes da espionagem nazi.
Asseguro ao leitor que tem pela frente uma obra de arromba, pena é que lhe tenham posto em português um título tão insípido e incolor, operações secretas houve muitas. O autor, logo no prefácio, nos adverte para o sucesso do ataque à Sicília, temia-se grandes perdas, tal não aconteceu graças a uma trapaça espetacular engendrada por uma equipa de agentes secretos liderada por um advogado inglês. Havia já um livro escrito por esse advogado, Ewen Montagu, importante, mas bastante incompleto, Macintyre logo se entusiasmo por este enredo fora de série: “um brilhante advogado, uma família de agentes funerários, um patologista forense, um prospetor de ouro, um inventor, um comandante de submarinos, um mestre-espião inglês travesti, um condutor de rallies, uma secretária bonita, um nazi demasiado crédulo e um rabugento almirante entusiasta da pesca com mosca.” É assim que se torna um quase romance, esta operação de engano montada à volta de um homem que nunca existiu, mas a fraude resultou, aquela pasta só transportava mentiras e despiste, viajou de Madrid para Berlim e chegou à secretária de Hitler, que fez de trouxa, os Aliados entravam no continente europeu.
O autor sabe despertar-nos o apetite, conta-nos os antecedentes desta montagem de engano, somos convocados para uma sala de operações e apresentados à equipa que vai urdir a tão rendosa operação de contrainformação. Não havia ninguém com discernimento, como Churchill observou que não sabia que o próximo alvo seria a Sicília, estava já decidido, os altos comandos, a princípio reticentes, aceitaram esta operação de engano, seria uma bênção salvar milhares de vidas quando se atacasse a Sicília. E vamos ficar a saber quem era o capitão inventado que apareceu à tona de água num ponto da costa sul de Espanha, parece que estamos em puro romance, monta-se a invenção, procura-se nada deixar ao acaso, desde o que o corpo vai vestir, o conteúdo da pasta, a invenção de correspondência amorosa, com fotografias e tudo. Até entra em cena o irmão de Ewen Montagu, Ivor, um comunista fanatizado, que passava informações a Moscovo, isto só para termos a noção que toda a gente espiava toda a gente, a própria Alemanha tinha espiões a operar no interior dos serviços de informação soviéticos. A cena espanhola foi fundamental, o regime de Franco copiou cuidadosamente a documentação da pasta do alegado oficial Martin, os espiões pró-nazis também ajudaram à festa, e os britânicos até mandaram fazer uma lápide para aquele corpo que ficou depositado num cemitério espanhol, com texto comovente. Dificilmente o leitor esquecerá esta história e os obreiros da operação de engano, sobretudo os membros da Secção 17M, na sala 13, na cave do Almirantado. A espionagem pró-nazi aceitou como fidedigno o conteúdo da pasta do suposto oficial britânico, tudo o que se julgava ter pertencido ao major Martin seguiu para Berlim, naturalmente que levantou dúvidas, a espionagem pró-nazi em Espanha foi crivada de perguntas, mas aqueles espiões crédulos julgavam que estavam a dar de bandeja um segredo de Estado de primeiríssima água. E rapidamente os serviços de informação alemães transferiram para os altos dignatários nazis a informação de um desembarque na Grécia e na Sardenha, estava-se perante um exemplo clássico de vontade de acreditar, misturado com autoilusão e falsificação pura e simples. Os serviços secretos alemães exararam o seu despacho: “Não restam mais dúvidas a respeito da fiabilidade dos documentos capturados. O exame da possibilidade de terem sido intencionalmente postos nas nossas mãos mostra que é muito improvável. É possível que o inimigo nada saiba da captura dos documentos, mas saberá de certeza que não chegaram ao seu destino. Não sabemos se o inimigo tenciona alterar as operações que tem planeadas ou acelerar a sua execução, mas continua a ser improvável.” Hitler comunica a Mussolini que os Aliados planeavam invadir o Peloponeso e informa o seu aliado: “Dentro dos próximos dias ou semanas, um grande número de divisões alemães deve ser enviada o mais rápido possível para o Peloponeso.” No círculo privado de Hitler só Joseph Goebbels estava profundamente cético quanto ao conteúdo daquela pasta, mas o isco fora incluído. Realizou-se com pleno sucesso o ataque à Sicília, os italianos renderam-se rapidamente, as forças alemãs lutaram valorosamente, mas foram forçadas a retirar. O autor dá-nos um relato vivacíssimo dos combates na Sicília. Na sala 13, em Londres, os autores da Operação Mincemeat batiam as palmas. Hitler nunca admitiu que tinha sido enganado, embora tenha ordenado, tardiamente, a deslocação de duas unidades para a Sicília.
Os historiadores consensualmente consideram esta operação de dissimulação como o mais sensacional episódio isolado da contrainformação no decurso da guerra. Temos depois a operação revelada pelo seu coordenador, Ben Macintyre lançou-se ao trabalho para nos dar esta narrativa que se equipara a um romance mirabolante, com odores ficção, tão vigorosa é a descrição destes protagonistas, alguns deles figuras excêntricas.
A não perder este documento histórico confundível com o que há de melhor nos romances de aventuras.
Por: Beja Santos *