“O facto de a Irlanda ser muito parecida com São Miguel nas suas paisagens teve um papel crucial na decisão de emigrarmos”, diz jovem enfermeira

Correio dos Açores: Como surge o desejo de prosseguir estudos em enfermagem?
Joana Medeiros: No 3.º ciclo – na minha querida Escola Secundaria Antero de Quental – comecei a pensar em enfermagem. Foi nessa altura que, não só conheci amigos para a vida, como professores que também se tornaram amigos e tiveram um grande papel na minha formação. Eu reflecti muito com os conhecimentos, mas também com as experiências pessoais que nos eram transmitidas pelos professores. Comecei a ter um fascínio pela biologia e ciência na saúde, mas naquela altura, não tinha bem a noção do papel do enfermeiro. Comecei a falar com enfermeiros que me contavam o que faziam e as experiências que tinham e isso fascinou-me. Por esse motivo, escolhi a área de ciências no ensino secundário e concorri para o curso de enfermagem na Escola Superior de Enfermagem da Universidade dos Açores. Eu estava tão determinada que foi o único curso a que concorri.
(…) Decidi seguir enfermagem não só como uma profissão, mas também como uma oportunidade de estar próxima das pessoas. Isso agradava-me. Na escola de enfermagem, que se alguma dúvida houvesse, deixou de existir. (…) Durante o curso não só aprendia a parte mais científica associada aos conhecimentos de saúde, como ouvi pela primeira vez o termo “holístico” e percebi o quão importante é olhar para o outro como um todo e não só tratar a doença ou parte específica do corpo. Foi tão interessante aprender todo esse mundo de enfermagem que não tinha noção antes. Perceber o real papel do enfermeiro foi muito gratificante.

Como descreve os seus primeiros anos enquanto profissional de saúde a exercer nos Açores?
Quando acabei a licenciatura era muito difícil conseguir emprego de imediato, muito menos com contratos permanentes. A maioria de nós só conseguia começar a exercer enfermagem através dos programas de Estagiar L e eu não fui excepção. Concorri ao estagiar L e fiquei colocada no Lar de Santo António, e tenho de dizer que guardo essa experiência com muito carinho no coração.
O meu objectivo era continuar a tentar trabalhar para o hospital ou centro de saúde, mas gostei tanto do lar que mudei de ideias. É muito gratificante cuidar do idoso. Aprendi com os meus colegas que já lá estavam, mas aprendi particularmente com os residentes em si. Eles possuem um conhecimento de vida sem igual. Eles fazem-nos olhar ainda mais para o outro como um ser holístico. Eu reflecti muito durante o tempo que trabalhei no lar. Além de ser muito enriquecedor como enfermeira, confesso que tínhamos uma excelente equipa e ainda hoje guardo todos no coração com muito carinho.
O único problema foi mesmo o facto de não ter um emprego permanente. Estava dependente das renovações do programa Estagiar L. Além disso, e isso não é em particular com a instituição em si, a remuneração também não reflecte o trabalho que um enfermeiro tem, as horas a mais que faz, os riscos associados aos turnos de noite. Apesar disso, continuo a dizer que foi uma óptima experiência e não mudaria o facto de ter trabalhado no Lar de Santo António por nada.

Emigrar sempre foi algo que tinha em mente?
Não! Definitivamente não tinha em mente emigrar. Se eu soubesse em antemão que um dia iria emigrar, diria que estava louca. Apesar de durante o curso ouvirmos que muitos colegas emigravam para outros países, eu continuava a não ponderar essa hipótese. Tinha sempre aquela esperança de que não ia precisar de chegar a esse ponto. Pensava sempre que ia arranjar emprego na minha área, num sítio de que gostasse, mesmo que não fosse logo a seguir ao curso. Emigrar não estava definitivamente nos planos.

Quando surge esta oportunidade e o que a motivou?
Grande parte dos meus colegas de curso e amigos tinham emigrado para outros países à procura de emprego e melhores condições de trabalho e eu continuava a resistir à ideia, apesar de os admirar e apoiar as suas decisões. Foi difícil ver tantos de nós a sair da nossa ilha à procura do que não era possível onde estudámos e demos o nosso tudo. Eu continuava na esperança. Estava quase a fazer três anos no lar e alguns dos meus amigos já estavam bem “estabelecidos” nos países que tinham escolhido. Lembro-me de ter sido uma altura particularmente difícil para mim porque estava a fazer turnos duplos (16h) e na altura não havia remuneração, por exemplo, pelos feriados e estava a ficar um pouco exausta. Ainda estava a contrato por programas financiados pelo Governo. No entanto, o momento crucial para a decisão, foi após um acidente de trabalho que o meu marido teve. Foi nessa altura que ele começou a ponderar sair para procurar melhores condições, o que me fez entrar em contacto com os meus amigos já emigrados, até que tomamos a difícil decisão de emigrar.

A Irlanda foi sempre a primeira opção?
Não, curiosamente (e sinto-me ignorante hoje em dia), quase que não ouvíamos falar na Irlanda. Não tinha a noção que país era este, nem da sua cultura ou papel na União Europeia. A maioria dos meus colegas e amigos tinha emigrado para o Reino Unido, portanto, começámos a ponderar emigrar para lá, pois, de acordo com o feedback deles, tudo tinha corrido bem (após o período de adaptação, claro). No entanto, isso nunca chegou a acontecer.

Quando e como se dá a emigração para a Irlanda?
A expressão “há males que vem por bem”, aplica-se na nossa emigração para a Irlanda. Não que nenhum de nós tenha saudades do que se passou, mas foi devido àquele incidente, que hoje estamos na posição em que estamos. O meu marido, também natural de São Miguel, freguesia da Salga, Nordeste, era cozinheiro no Restaurante Associação Agrícola. Tal como referi antes, ele teve um acidente de trabalho, numa altura particularmente difícil para os dois.
Era início do ano de 2016. Ele precisou de fazer cirurgia e de ficar hospitalizado, e durante esse tempo começou a ponderar sair de São Miguel. Ele, tal como eu, também gostava do sítio onde trabalhava e dos colegas, mas trabalhava imensas horas e a remuneração não reflectia a carga de trabalho e os descontos eram um absurdo. Ele quase que ficou em pânico por saber que ia ter de voltar a trabalhar imenso, quase sem folgas, para depois estarmos os dois a “contar os trocos” dos nossos ordenados após pagar as despesas mensais.
(…) Primeiro eu resisti e quase que estava num estado de negação, no entanto, aos poucos comecei a perceber que infelizmente, a nossa situação profissional não iria melhorar. Foi com muita angústia que comecei a perceber que ele tinha razão. (…) Passando a fase da decisão, conheci a Luísa, de uma empresa de recrutamento que já tinha ajudado os meus amigos no mesmo processo, e que teve um papel crucial na nossa ida para a Irlanda.
Primeiro decidimos seguir com a entrevista para um hospital no Inglaterra, no entanto, era preciso o exame de inglês OET, o que poderia demorar e era bastante difícil na altura. Ao falar com uma das minhas colegas no lar, ela disse que uma amiga dela tinha ido para a Irlanda do Norte ao invés de Inglaterra e gostava de lá estar.
(…) Confesso que o facto de a Irlanda ser muito parecida com São Miguel nas suas paisagens teve um papel crucial na decisão. Pensámos que seria uma transição menos brusca mudar para outro meio parecido aos Açores. Apesar de sabermos que Dublin seria bem mais desenvolvida que Ponta Delgada e haveria diferenças culturais, em geral ouvíamos falar bem dos irlandeses. A maioria dizia que eram bastante acolhedores. Além disso, a proposta de emprego era muito apelativa a nível monetário, e era para trabalhar num lar, tal como estava em São Miguel que tanto gostava.
 (...) Não foi fácil, até que obtivemos a data em que chegaríamos à Irlanda, a 26 de Setembro de 2016. Foi a primeira vez que sai dos Açores, apenas tinha saído para outras ilhas açorianas.

Que diferenças estranhou aquando da mudança para a Irlanda?
Tenho de confessar que os primeiros seis meses foram extremamente difíceis. Quis desistir muitas vezes. O Rafael foi o meu grande pilar. A nossa família em São Miguel também apoiou imenso, apesar de longe.
Foi impossível não reagir à diferença que havia na enfermagem que estava habituada em Portugal, com a praticada na Irlanda. Esse foi o primeiro grande choque cultural, a par da gastronomia. Na Irlanda, existem bastantes lares de idosos, embora continuem a precisar sempre de mais, no entanto, a maioria é privado, e regulado por uma entidade que faz inspecções regulares de modo a garantir a qualidade de cuidados. Apesar de hoje em dia perceber e concordar com as medidas implementadas, na altura não faziam sentido para mim.
Na Irlanda, o lar é a residência dos idosos. É a continuação das suas casas e, uma vez que precisam cuidados de 24 horas, todos têm de garantir que eles se sentem em casa e pode ser um tanto desafiador quando envolve residentes com demências avançadas.
O outro choque cultural de que falei foi a gastronomia. Após a nossa chegada à Irlanda, reparámos que os irlandeses não têm muito o hábito de cozinhar e que não têm assim tantas comidas típicas. Além de as suas comidas não serem tão condimentadas como as nossas. Sentimos muito a falta dos nossos condimentos tais como pimenta da terra, o próprio sal é diferente, o azeite, pimentão-doce, etc. Começámos a trazer certos condimentos connosco – a pimenta da terra foi a primeira! – e por vezes também trazemos bacalhau e chouriço.
(…) Outro aspecto que me custou bastante foi o facto de a maioria dos empregos serem de turnos de 10 a 12 horas, principalmente no caso da enfermagem. No entanto, temos mais dias de folga também.
Também há coisas boas. Aprendemos com os irlandeses a aproveitar mais o tempo livre. Eles aqui adoram estar ao ar livre e aproveitar os seus dias de folga. Também são pessoas que fazem muito exercício físico e fomos na “onda”. Em geral, os irlandeses têm empatia pelo outro, são um povo alegre e não julgam. São mentes abertas e aceitam pessoas de todas as nacionalidades. Tenho mais colegas estrangeiros que propriamente irlandeses, e não vejo, de uma forma geral, racismo nem discriminação.

Como progrediu até ser assistente de directora de enfermagem?
Comecei como enfermeira geral, num lar. Cerca de sete meses depois recebi uma proposta monetária melhor, também, num outro lar, o que aceitei. Fiquei lá quase quatro anos até que surgiu a oportunidade de mudar de área a decidi aceitar o desafio.
Mudei para o meu actual emprego, que é uma unidade de cuidados transicionais. Por outras palavras, aceitamos pacientes que necessitam continuar a receber apoio de enfermagem, fisioterapia, apoio social, de terapia ocupacional, após uma cirurgia, à espera de que tenham auxiliares de apoio domiciliário ou até mesmo cama num lar. São pacientes que à partida não necessitam de estar a ocupar uma cama nos hospitais, mas não estão prontos a ir para casa ainda.
Tem sido um desafio bastante bom até. Tenho aprendido bastante. O local abriu em Novembro de 2020 e comecei a trabalhar lá em Dezembro de 2020. Sendo um sítio muito novo, a expandir, a necessidade de expandir equipas também foi surgindo até que em Maio de 2021 concorri ao cargo de Clinical Nurse Manager e em Janeiro de 2022 a Assistant Director of Nursing. Tem sido bastante desafiador, mas igualmente gratificante.

Considera que em Portugal - ou nos Açores - seria possível ter o mesmo tipo de progressão/reconhecimento num período de tempo tão curto?
Infelizmente, penso que não teria a mesma oportunidade em Portugal. Apesar de já ter saído de São Miguel há quase seis anos, penso que a situação se mantém igual. É difícil progredir na carreira de enfermagem em Portugal. É, inclusive, difícil conseguir ser reconhecido na carreira de enfermagem em que se especializaram, quanto mais cargos de chefia. É pena, porque o enfermeiro português tem bastantes conhecimentos e deviam ser mais bem reconhecidos. Quando menciono ser portuguesa, em geral, os colegas de outros países dizem ter trabalhado com outros enfermeiros portugueses e referem-se a eles como sendo muito bons profissionais. É gratificante ouvir isso, por outro lado, é triste que esse reconhecimento seja feito mais fora do nosso próprio país do que nele.

Que vantagens oferece um país como a Irlanda quando em comparação com os Açores?
Como em tudo, tem os seus prós e contras. A nível profissional, é sem dúvida um país que oferece bastantes melhores condições. Tanto a nível de remuneração como a direitos do trabalhador. A facilidade de mudar de emprego para outro com melhores condições aqui é bastante favorável. O Rafael, por exemplo, já mudou de emprego bastantes mais vezes que eu, por ter sempre ofertas melhores que a anterior.
Por outro lado, o reconhecimento do nosso trabalho não é apenas com o nosso salário. Os empregos por onde passei e inclusive o actual, têm sempre ou gala de prémios monetários e de reconhecimento, ou fazem um mimo em oferecer vouchers em alturas mais desafiantes e durante as épocas festivas também. Além disso, os contratos de emprego cá, são, na sua maioria, oferecidos de forma permanente, sendo que passemos a fase de experiência inicial com sucesso. Engane-se quem pense ser um mar de rosas, e só coisas boas, pois não é. É-se reconhecido, mas também se trabalha bastante e temos de mostrar um bom desempenho. Temos avaliações de desempenho com frequência e é também baseado nessas avaliações que surge melhores oportunidades nos próprios locais de trabalho.
Por outro lado, o poder de compra aqui na Irlanda também é bastante mais avantajado e confortável. Temos muito mais facilidade de obter bens sem recorrer a empréstimos bancários, o que dá um outro conforto. Temos também uma melhor oportunidade de conhecer sítios novos, tanto na Irlanda, como viajando, uma vez que, associado ao poder de compra, tem-se outro conforto para viajar ou fazer uma “escapadinha” nem que seja de um ou dois dias, sem ter de ficar apertados economicamente. Basicamente, nos dias de folga é possível fazer algo diferente, ou jantar fora. Desde que cá chegamos que já fizemos muitas coisas que não tínhamos tido oportunidade antes. A Irlanda não é propriamente um país imensamente desenvolvido, mas tem o desenvolvimento suficiente para se passar boas experiências.

Como o seu caso, existem muitas outras histórias de migração ainda hoje nos Açores. Como olha para esta fuga de talentos?
Muito raramente vi casos em que as pessoas regressaram após a emigração. Penso que isso deve-se muito ao facto de haver um outro conforto na vida após sairmos da situação que estávamos antes.
Não podemos negar que é bastante difícil não estar juntos dos nossos quando bem nos apetece, ou desfrutar do bom que a nossa ilha nos oferece tal como o bom tempo, a beleza natural, as águas quentes, a comida boa, isso tudo faz falta, sim. No entanto, se não tivermos os meios a poder desfrutar, de pouco serve. E penso que a nível profissional não houve assim tanta diferença ou melhoria desde que daí sai, portanto, é difícil, apesar de tudo, sair do conforto actual, para voltar a situação que nos levou a sair no primeiro lugar.
Além disso, prevê-se uma crise económica muito em breve e nesse caso penso termos mais possibilidades de continuar com os nossos empregos tal como estão na Irlanda do que propriamente em São Miguel. Gostaria que essa realidade mudasse porque muito provavelmente sim, muitos emigrantes regressariam, com muitas outras experiências e conhecimentos para partilhar e implementar com intuito de melhorar sempre. Portugal teria muito a ganhar se incentivasse ao regresso dos seus emigrantes.

Optaram por casar em São Miguel. Porquê?
Após termos adiado o casamento duas vezes devido à pandemia, finalmente aconteceu em Junho.
Apesar de a Irlanda ter sítios maravilhosos para se casar, a nossa terra, seria sempre a que seria testemunha do nosso dia. A nossa história começou e cresceu em São Miguel. As nossas famílias, amigos e pessoas queridas estão maioritariamente em São Miguel. E os que não estão, fizemos questão de convidar, e alguns, inclusive foram (e ficaram maravilhados com a nossa ilha).
 

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