Correio dos Açores: Sendo natural de Évora – onde não há mar – como surge o seu interesse pela biologia marinha?
Ana Besugo (bióloga marinha): Sempre fui apaixonada pela natureza, de uma forma geral passei a minha infância muito ligada ao campo, sempre gostei muito de ver as flores e de estar ligada aos animais. Nos primeiros 20 anos da minha vida apenas via o mar cerca de 15 dias por ano, quando ia de férias para o Algarve com os meus pais, mas sempre tive um grande fascínio pela natureza em si. Este bichinho foi crescendo ao longo da minha infância e adolescência com os documentários que apareciam na televisão, como o “BBC Vida Selvagem”, e depois fui também bastante alimentada pelos meus pais com livros sobre a natureza e pelo facto de ter passado os primeiros anos de vida, no jardim-de-infância, numa quinta onde tinha ligação com vacas, ovelhas, galinhas e com uma horta biológica.
A ligação ao mar veio mais tarde. A partir dos cinco anos comecei a fazer natação, nadei desde os cinco aos 12 anos e, por isso, desde muito cedo, comecei a ter muito à vontade dentro de água e com o mar. Era uma satisfação muito grande quando ia de férias e quando ia para o Algarve e, se pudesse, ficava o dia inteiro na praia.
A biologia marinha foi sempre a sua primeira opção?
Entrei na universidade com 21 anos, em 2014. (…) Tive, infelizmente, um acidente de mota que me fez perder alguns anos na escola. Eu estava muito ligada ao desporto na altura em que tive esse acidente de mota. Jogava futebol feminino profissional mas, com o acidente tive que parar porque os médicos disseram-me que estava impossibilitada de fazer desporto de uma forma profissional, aí é que me virei para essa paixão de infância, porque o meu sonho era ser professora de educação física, ou ter alguma empresa de desportos radicais.
Esse era o meu sonho inicial, mas depois passei por estes anos um pouco complicados e depressivos. Recuperei do acidente, que foi bem grave, e tive que fazer uma mudança radical na minha vida. (…) Podia simplesmente ter ido para Biologia, que havia em Évora, mas nos anos antes de entrar na universidade, comecei a perceber a importância que o mar tinha em mim, na minha vida e no meu bem-estar, e foi aí que decidi sair de Évora e escolher um curso que não havia perto de casa, daí ter escolhido Biologia Marinha. Entrei primeiro em Peniche, onde estive um ano, mas sabia que não era aquilo que queria logo no ano em que entrei. (…) Percebi depois que era no ambiente da Universidade do Algarve que queria estudar e que era aquele ambiente que eu queria para mim, por isso, no ano a seguir mudei-me para Faro.
Terminei o curso em 2010, e depois tive um ano sabático em que fiz voluntariado e aperfeiçoei a minha vida no mergulho recreativo, e depois entrei na Universidade dos Açores, no ano seguinte, em 2011, quando entrei no mestrado, na Horta.
O facto de ter tido este acidente fê-la olhar para a vida de uma forma diferente?
Foi um marco muito importante para mim, uma reviravolta e um despertar muito grande que me fez pensar. Neste momento, aos 38 anos, sinto que não vivo a minha vida no limite da aventura, mas sou uma pessoa aventureira, gosto muito de viajar e de explorar coisas novas, de ir por caminhos novos. Sou cautelosa mas gosto de aventura. (…) Mais jovem, era extremamente inconsequente, vivia no limite.
Antes de se mudar de forma mais permanente para o Faial viveu em vários países. O que motivou a sua escolha pelos Açores?
Uma grande amiga minha, que neste momento vive também no Faial, foi uma das pessoas que me fez vir para cá. Em 2010, após terminar a licenciatura, vivia em Cabo Verde, praticamente, mas, entretanto essa minha amiga entrou no mestrado no Faial e dizia-me que o ambiente era incrível, que o mar era espectacular, que havia imensas oportunidades de trabalho e de investigação e que ia adorar conhecer algo diferente.
Eu não conhecia os Açores, nunca tinha vindo aos Açores. Pensei “porque não? Estou em Portugal, estou relativamente perto da família, é um lugar novo, vamos explorar”. Acabei por chegar tarde no mestrado, a 6 de Novembro de 2011. O mestrado tinha começado em Setembro, mas eu estava a trabalhar na época de desova numa ONG de conservação de tartarugas marinhas em Cabo Verde, na ilha da Boa Vista. Quando terminou a temporada de desova das tartarugas, foi quando tive oportunidade de vir e entrei mais tarde no mestrado.
Concluí a minha tese em 2013, sobre a caracterização da pescaria do peixe-espada preto nos Açores (…) e fiz um trabalho paralelo sobre a diferenciação genética de duas espécies que ocorrem no arquipélago dos Açores que não são distintas morfologicamente.
Comecei a explorar muito o mergulho aqui, bem como a fotografia, mas quando terminei o mestrado surgiu a oportunidade de ficar enquanto investigadora na Universidade dos Açores, fiquei quase dois anos ligada à universidade a dar continuidade ao meu trabalho sobre o peixe-espada preto, ou seja, a analisar mais amostras vindas de todas as ilhas dos Açores, e paralelo a isso, desenvolvi e fiz parte do grupo de investigação das tartarugas marinhas da Universidade, do Departamento de Oceanografia e Pescas. Entretanto, conheci um rapaz por quem me apaixonei e decidi seguir viagem para outras bandas. Saí dos Açores em Julho de 2014 e regressei em 2020 e há dois anos que vivo mais ou menos permanentemente aqui no Faial.
Tendo vivido na ilha do Sal durante alguns anos, acabou por criar uma empresa dedicada ao ecoturismo. Em que consistia?
As actividades que eu exercia na ilha eram essencialmente, e especialmente, o turtle watching (a observação, à noite, da desova das tartarugas). Depois comecei a desenvolver outras actividades, como o snorkling costeiro, a volta à ilha, a visita cultural a alguns pontos da ilha do sal, e o meu objectivo com a ZUGAdventures era colmatar uma lacuna que havia na ilha do Sal, que é visitada por um turismo massivo. Comecei a perceber que havia uma janela de oportunidade para grupos pequenos, pessoas interessadas num serviço mais personalizado, e então eu era uma micro empresa. Só levava comigo cerca de seis pessoas, no máximo, e fazia tudo sozinha.
O que se seguiu à ZUGAdventures?
(…) Fechei a empresa com um lucro brutal, como eu nunca imaginei que fosse possível, e, em Janeiro de 2019, fiz uma viagem com uma grande amiga minha da Universidade do Algarve, uma espécie de retiro espiritual, até São Tomé e Príncipe. Foi a minha quarta viagem a São Tomé e Príncipe, mas foi uma viagem muito importante.
Fui apresentada ao director de um hotel de cinco estrelas que tinha aberto recentemente no Príncipe e que, depois de me ter conhecido, de ver um bocadinho o meu perfil profissional e académico, convidou-me para trabalhar em São Tomé e Príncipe para ser a directora das actividades turísticas da cadeia de hotéis do grupo. Eu embarquei nesta aventura porque já conhecia o país, já tinha muitos amigos e sentia-me em casa em São Tomé e Príncipe, e lá cheguei em Junho de 2019.
Com a pandemia fiquei em layoff, que foi passado essencialmente nos Açores. Fui deportada para Portugal, estive uns meses em Évora com os meus pais mas fiquei muito agoniada porque me faltava o mar e vim para os Açores. Trabalhei aqui no Verão de 2020 e tive a oportunidade de comprar um terreno no Faial, onde estou, neste momento, em processo de construção da minha casa. Olho para os Açores e para a ilha do Faial como a minha base. É onde pretendo, um dia, criar a minha família, ter a minha casa e o meu retiro, mas não deixar de viajar e de ter outras oportunidades de trabalho noutros locais, e poder passar mais o Verão nos Açores e o Inverno – que é um bocadinho duro devido à chuva e às tempestades – talvez mais nos trópicos, como Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe.
O mergulho e a fotografia subaquática são também uma parte muito importante na sua vida…
Neste momento, desenvolvo mergulho recreativo por lazer. Não faço mergulho de uma forma profissional. A fotografia é também um passatempo, já a fiz de forma profissional, mas neste momento não. (…) Neste momento, quando mergulho, ao fim-de-semana ou quando posso fazer mergulho numa forma de lazer, levo sempre a máquina fotográfica. Aliás, eu não saio de casa em qualquer dia da minha vida sem máquina fotográfica. Desde os oito anos que fotografo.
(…) Talvez por circunstâncias da vida não tenha ainda apostado forte na profissionalização, até porque têm surgido outras oportunidades. Na ilha do Sal já tive a oportunidade de criar uma exposição com fotografias minhas e de as ter tido expostas durante dois meses no museu da ilha do Sal. Gostava de fazê-lo mais vezes e, obviamente, o meu intuito com a fotografia é, realmente, documentar o comportamento (das espécies) ou de alguma espécie nova que possa surgir. Tenho um olho muito crítico debaixo de água, temos que ser oportunistas ao máximo no que diz respeito à fotografia debaixo de água porque nós nunca sabemos se aquilo que estamos a observar é algo único ou não, por isso, dessa forma, tento recolher o máximo de informação possível, seja de animais como de botânica, como algas ou corais.
Quais os problemas que ameaçam a biodiversidade do mar dos Açores que mais a assustam enquanto bióloga marinha?
O que me choca mais é a poluição, nomeadamente dos plásticos. Cada vez mais vê-se lixo à superfície. Obviamente que esse lixo pode ter várias origens: pode vir pelo mar, através de correntes, ou através de terra, após alguma chuva ou vento mais forte que pode levar esse lixo aos oceanos. Este lixo acaba por se degradar e fragmenta-se, e faz com que esses fragmentos sejam ingeridos pelos peixes e pela vida marinha de uma forma geral, e isso é realmente preocupante. (…) Nós temos que mudar alguma coisa, não conseguimos acabar com o plástico porque neste momento é impossível viver sem plástico, mas temos que olhar para ele de uma forma mais ecológica, acabando com os utensílios de uso único, como palhinhas e descartáveis e apostar mais na reciclagem, mas sobretudo apostar na redução e reutilização.
Mas gostava de partilhar uma história de um dos meus últimos mergulhos no Banco Princesa Alice, localizado a 45 milhas náuticas a sul do Faial, que é um ponto de mergulho excepcional. (…) No regresso do mergulho observámos um fragmento muito grande de lixo, deu-me ideia de ser um fragmento de um bidão de plástico, e agarrado a este bidão estavam algumas caravelas portuguesas, que este ano têm sido muito abundantes.
Debaixo desse fragmento estava uma tartaruga marinha que se estava a proteger, mas que, ao mesmo tempo, estava a alimentar-se das caravelas portuguesas que estavam agarradas a ele, ou seja, conclui-se que é um dano ao ambiente, o facto de existir plástico, mas também podemos olhar para o plástico e pensar que a biodiversidade está já a aproveitá-lo de uma forma positiva.