Uma grande mudança de paradigma na produção de leite e carne

Abate do número de vacas e redução do efectivo leiteiro já ultrapassou o programa de Alterações Climáticas

 No sector da agricultura, o Programa Regional de Alterações Climáticas dos Açores, datado de 2017, criava dois cenários sectoriais de evolução para 2030, para a Agricultura, Floresta e Outros Usos do Solo na Região.
O cenário um correspondia a um maior dinamismo do sector e o cenário dois correspondia a um decrescimento e maior estagnação do sector primário. No primeiro cenário, partia-se de uma perspectiva que combinava investimento na pecuária, com evolução continuada das tendências do sector agricultura e floresta, e uma maior expansão da área urbana, motivada por um forte dinamismo no sector do turismo; o segundo cenário combinava um decréscimo do peso do sector pecuário com uma manutenção das tendências na agricultura e floresta, e com um crescimento moderado da área urbana.

Entre mais e menos leite

O Programa, datado de 2017, sublinhava que o sector do leite continuará a ser o sector onde a Região é mais competitiva e no qual se pode afirmar de forma mais positiva. No cenário 1 do programa, considerava-se um aumento da produção de leite cru, motivado quer pelo aumento de 10% do efectivo, quer pelo aumento da sua produtividade para 8.500 kg/ano (aumento de aproximadamente 30% face a 2014). Neste cenário, assumiu-se que, apesar das alterações recentes no sector e das dificuldades sentidas em 2012 a 2014, esta será uma situação conjuntural e o sector e a indústria de lacticínios continuarão a ser competitivos, fazendo variar e ajustar à procura o mix de produtos lácteos produzidos entre leite UHT, manteiga, queijos, outros produtos frescos e leite e soro em pó.
Ora, este cenário de aumento da produção de leite cru foi profundamente alterado nos últimos anos. O argumento foi a opção da indústria de lacticínios de não aumentar o preço do leite e a convicção da produção de que, com menos leite, os industriais seriam obrigados pelas circunstâncias, a aumentar o preço do leite à produção para manter a produção de produtos lácteos. As estatísticas dos últimos anos (que inverteram o cenário 1 do Programa de alterações climáticas) levam ao abate de centenas de vacas e à decisão pública (regional e comunitária) de pagar para não produzir leite ou, então, pagar para transformar explorações de leite em explorações de carne. Ora, esta viragem de opções no espaço de cinco anos, levou a uma redução natural e significativa do impacto da produção de gado, sobretudo de gado leiteiro, nas percentagens de azoto e outros nutrientes que influenciam a diminuição da camada do azoto
Esta mudança de paradigma tem um significado ainda maior se atender-se ao facto de, entre 1990 e 2014, o efectivo bovino ter registado um crescimento de 17% de vacas leiteiras, 70% para os vitelos e +82% para os outros bovinos.
Mas, já a partir de 2007 ate, pelo menos, 2014, verificou-se um ligeiro decréscimo do efectivo de vacas leiteiras devido à liberalização do mercado de leite dentro da União Europeia (o fim das quotas), o que afectou negativamente o sector leiteiro açoriano. Acontece, então, em fenómeno relevante: com menos vacas, os produtores açorianos conseguem produzir mais leite. O programa fala num crescimento de 112% de aumento da eficiência de profissionalização e num aumento de 7% no teor de gordura do leite.
 Ao longo dos últimos anos tem havido uma viragem, com uma grande redução do número de cabeças de gado e uma acentuada diminuição de produção de leite. Só nos primeiros seis meses deste ano foram abatidas 8.500 vacas e, no global, ao longo deste ano, a redução de produção de leite rondará os 17 milhões de litros de leite (ler entrevista com Jorge Rita).
Esta realidade que acabou por acontecer aproxima-se mais do cenário 2 criado no Programa Regional de Alterações Climáticas dos Açores (embora continue distante do que veio a acontecer) em que se projectava uma redução de 20% nos efectivos de vacas leiteiras até 2030 e a manutenção da produtividade média das vacas leiteiras, com resultado da redução de actividade, por abandono dos agricultores mais idosos e com menores efectivos, menos competitivos e mais sensíveis.  

Aumento da carne transformada

No que diz respeito ao sector da carne, no cenário 1 em análise, assumiu-se um aumento de 10% do efectivo bovino de vacas aleitantes. Para este aumento considerou-se que a melhoria no sector de carne seria acompanhada pela continuação de estratégias de melhoria genética, em particular da produção de vitelos por cruzamento de vacas de raças leiteiras com touros de raças com melhores aptidões para produção de carne e por melhoramento genético das raças aleitantes presentes na Região. Neste cenário considera-se também que será possível concentrar maior valor acrescentado, conseguida por redução do número de animais exportados vivos e pela sua substituição pela exportação de produtos transformados. Neste cenário assume-se também que ocorrerá um aumento da produção de vitelos, motivado pelo aumento de efectivos de gado leiteiro e aleitante.
Neste cenário 2,  projectou-se uma manutenção dos efectivos existentes de vacas aleitantes que, combinados com a redução de efectivo de vacas leiteiras, resultará numa redução na produção de carne.
De acordo com o que é avançado no Programa Regional de Alterações Climáticas dos Açores para os cenários 1 e 2, foram assumidas variações de ±10% em 2030, quando comparados com o efectivo de 2014. Estas variações incorporam uma pequena variação na população residente e pequenas variações na procura interna na Região de carne de porco, assumindo que neste sector não é expectável que a exportação para fora do arquipélago venha a ser competitiva. Ora, esta previsão está distante da realidade de hoje sobretudo com a grande redução do efectivo de leite em todas as ilhas.

Redução de 25% no azoto utilizado

Face aos cenários apresentados, a previsão era que a agricultura podia vir a representar entre 34% e 46% das emissões de GEE - Gases com Efeito de Estufa, da Região em 2030.
 Os solos agrícolas, através da aplicação de fertilizantes azotados e as emissões de N2O associadas à drenagem de turfeiras para usos agrícola (pastagens e outros) ou florestal são duas das principais fontes de Gases com Efeito de Estufa.
Neste enquadramento, o documento definia uma redução de 25% de azoto total, inorgânico e orgânico, aplicado no solo por ano como medida proposta para a agricultura, assim como a racionalização da fertilização, através da integração nas acções de formação aos jovens agricultores.
O programa considerava a quantidade de lamas de tratamentos de águas residuais e composto de resíduos sólidos desviados do aterro para a agricultura “fulcral”, assim como a reversão da drenagem em solos orgânicos actualmente utilizados para agricultura e/ou pastagens, sendo a meta para 2030 de 100.150 hectares de turfeira com uso agrícola recuperadas.
Considerava também necessário compilar a cartografia das áreas de turfeiras (já existente em alguns estudos) numa cartografia única; proceder à compensação aos agricultores por perda de rendimento nas áreas recuperadas, através da manutenção das actuais medidas do PRORURAL+, nos próximos programas operacionais; o pagamento de compensação para zonas agrícolas natura; a aquisição e recuperação de zonas sensíveis por parte das autoridades regionais e/ou locais (intervenções destinadas à atenuação e adaptação às alterações climáticas e projectos e práticas ambientais em curso); instrumentos legais que limitem o uso intensivo deste tipo de áreas; sensibilizar a população para a importância das turfeiras e a sua manutenção com enfoque especial na conversão de turfeiras em zonas de pastagens.
No que diz respeito à conservação dos solos orgânicos e turfeiras actualmente não utilizados e restauro de situações degradadas, a meta é de 1970 – 2620 hectares de turfeiras com pressão de uso agrícola mantida e 260-350 hectares de turfeiras com pressão de uso florestal mantida.

Mercado da carne mais competitivo

Também, nos últimos anos, o mercado da carne tinha-se tornado mais competitivo, quer através do melhoramento genético, quer por redução do número de animais exportados vivos e pela sua substituição pela exportação de produtos transformados, o que tem permitido aumentar o valor acrescentado deste subsector na Região Autónoma dos Açores. Esse efeito é também visível no recente aumento no número de bovinos para carne (categorias vitelos e outros bovinos). As restantes espécies pecuárias têm tido um comportamento inverso, com reduções desde 1990 de 28%, 29%, 55% e 46%, respectivamente nos suínos, caprinos, equinos e aves.
 Estas reduções traduzem uma especialização no uso das pastagens para a produção bovina, em detrimento da produção de ovinos, caprinos e equinos, e uma menor competitividade da Região Autónoma dos Açores na produção de animais em sistema intensivo, traduzida na redução no número de aves e de suínos. Os sistemas de gestão de estrumes e efluentes não têm sofrido alterações, sendo o sistema dominante, para a generalidade dos animais produzidos em regime extensivo na região, a deposição directa pelos animais na pastagem.
A alimentação dos bovinos, ovinos, caprinos e equinos é fortemente alicerçada na existência de pastagens naturais com boas produtividades, complementada com forragens e silagem produzidas na Região e com pequenas quantidades de rações, produzidas com matérias-primas oriundas, na sua maioria, do exterior da Região Autónoma dos Açores. Esta realidade, que constitui um dos maiores factores de competitividade da produção animal dos Açores, é também uma das suas imagens de marca. Já a alimentação dos suínos, aves e coelhos é baseada na importação de rações ou de matérias-primas para transformação em rações na Região. A alimentação dos bovinos (prados e culturas forrageiras), representa a maior parte da área dedicada à agricultura na Região (97% da área em 2014). A restante área agrícola está associada à produção de milho para grão, feijão, batata, tabaco, beterraba (para a produção de açúcar), citrinos pomares de frutos frescos, frutos subtropicais e vinhas.
 Segundo os dados compilados pelo IRERPA - Inventário Regional de Emissões por Fontes e Remoções por Sumidouros de Poluentes Atmosféricos, a área agrícola utilizada teve um aumento de 2,6%, desde 1990. A área agrícola, excluindo as pastagens e as culturas forrageiras, que aumentaram 90% desde 1990, tem vindo a reduzir-se, nomeadamente em 56% do total das culturas permanentes e mais de -70% em quase todas as culturas temporárias.

 
Usos do Solo

Segundo dados do inventário florestal de 2007, a floresta na Região é composta pelas seguintes espécies: criptoméria, pinheiro bravo, pinheiro japonês, camacipáris, resinosas diversas, eucalipto, acácia, vinhático, faia das ilhas, incenso e folhosas diversas.
A Cryptomeriajaponica e Pittosporumundulatum contribuem para 75% do território florestal regional, respectivamente com 26% e 49% da superfície, estando a segunda espécie classificada como invasora. As restantes espécies têm uma contribuição individual inferior a 10%, somando na totalidade 25% da área florestal. Tendo por base os mapas CORINE entre 1990, 2000 e 2006 e dados do IRERPA para 2014, verifica-se que a natureza das alterações na ocupação e/ou uso do solo na Região Autónoma dos Açores foi dominada, maioritariamente, pelo aumento das áreas artificiais e florestais fundamentalmente por redução das áreas agrícolas e áreas naturais, sendo que a maior parte destas ocorreu no período 1990-2000.
O balanço líquido anual (entre ganhos e perdas de área), mostra que, entre 1990-2014, houve um incremento da área florestal (35 hectares/ano), de matos (10 hectares/ano) e de zonas urbanas (70 hectares/ano), e uma redução das áreas sob ocupação agrícola (40 hectares/ano), de pastagens (60 hectares/ano) e de zonas húmidas (2 hectares/ano).

Redução da produção de leite vai rondar os 17 milhões
de litros ao longo deste ano

A Federação Agrícola dos Açores, presidida por Jorge Rita, já tem o prognóstico feito para o futuro do sector leiteiro: “Nós não queremos mais animais nos Açores. Queremos menos e melhores animais. A estratégia que tem sido seguida é aquela que pretendemos no momento, que é com a possibilidade que temos de agir cada vez mais a nível da evolução genética e a nível da evolução científica no sector agrícola. Cada vez mais vamos ter as melhores vacas a produzir fêmeas e as vacas inferiores a produzir carne. Ou seja, vamos ter uma melhor especialização nas vacas de leite e muito melhor especialização nos cruzamentos de carne daquilo que existe, daquelas que são cruzadas com o leite”.

Nos primeiros seis meses deste ano abateram-se 4.500 vacas… Isso corresponde a quantos litros de leite?
Não é fácil fazer essa previsão de leite. Estamos a falar no primeiro semestre, de perto de 17 milhões de litros de leite a menos, independentemente do número de vacas que se abateram. Há outras reduções, nomeadamente uma diferenciação de alimentação dos animais. Houve uma baixa substancial do consumo de rações. Ou seja, não deixou de se alimentar os animais, mas suplementou-se menos. Ao reduzir nas rações, as vacas produzem menos leite e também face ao abate destas, a redução está na ordem dos 5,8% a menos de produção de leite em relação ao ano passado. Vamos acabar nos 6% com menos 30 e tal milhões de litros a menos no final do ano.

Os produtores de leite de São Miguel acabaram por atingir as expectativas na adesão à transformação das explorações do leite em carne?
Os direitos que tínhamos adjudicados ligados a São Miguel na prática estão resolvidos. Tem que se dar algum mérito a essas pessoas, devido à ousadia que tiveram de sair do leite, que não é algo fácil, apesar da produção leiteira ser uma autêntica escravatura. Quem está habituado a produzir leite para depois produzir carne, não é um processo muito fácil. Tiveram coragem, mas também algo as levou a isso. Não só a baixa de rendimento, a forma como o leite era pago todos nós sabíamos, mas também por falta de mão-de-obra. Estamos a viver uma situação dramática por falta de mão-de-obra na agricultura. Não vale a pena pensarmos que queremos produzir muito mais das outras produções agrícolas, se não analisarmos friamente a situação da mão-de-obra na Região Autónoma dos Açores. O abandono da produção de leite e transferência para a carne é, por vontade própria, muitas vezes, mas também em muitos casos por falta de mão-de-obra.

Apesar do próximo quadro comunitário de apoio, e do próximo plano e orçamento para 2023 darem indicações para uma a diversificação agrícola, vamo-nos confrontar com um problema grave de mão-de-obra?
Exactamente. Todos somos defensores, - e eu na qualidade de Presidente da Federação também o sou -, das produções agrícolas de forma transversal na Região Autónoma dos Açores, desde as produções biológicas ao aumento das produções agrícolas convencionais de todas as áreas que tivermos disponíveis para continuar a produzir. A questão do seguro é problemática, mas não é só. A carência de mão-de-obra nessas produções pode inviabilizar claramente qualquer tipo de produção. Se não assegurarmos mão-de-obra na agricultura e isso também é transversal a outros sectores da actividade, essa situação irá agravar-se.
Podemos ter muitas verbas para a agricultura, mas se não tiver mão-de-obra, podemos ter uma dificuldade dos empresários agrícolas, quer jovens, quer doutores de uma forma normal. Poderá faltar-lhes visão de estratégia na agricultura por falta de mão-de-obra. Ou seja, a mão-de-obra pode ser um problema grave para o bom aproveitamento das verbas disponíveis para  a modernização das explorações agrícolas, para a mecanização, modernização e criar novas áreas de produção associadas à nova tecnologia.

O que aconselha? Como se pode fazer uma aposta em mão-de-obra? Tem que se pagar bem?
Nós temos as escolas de formação. Precisamos todos, sem excepção, de estar envolvidos na formação da Região Autónoma dos Açores para aproveitar o capital humano que temos na e não podemos continuar a aceitar que haja muita gente a receber ajudas estatais e não trabalhe. Isto é inadmissível. Se não houver determinação para que se consiga dar a volta a isso, vamos ter necessariamente, em vários sectores da actividade, mão-de-obra do exterior. Não temos nada contra as pessoas que vêm de fora, até porque nós somos uma Região e país em que muita gente saiu para ir para outros países. Portanto iremos recebê-los de braços abertos, mas, obviamente, não é com tanta gente no fundo de desemprego, com tanta gente nos rendimentos de inserção social, que temos necessidade de recorrer a mão-de-obra exterior, porque há muita mão-de-obra cá. É preciso ensinar, criar auto-estima, pagar, melhorar todas as condições e dar formação para que as pessoas voltem ao trabalho, que gostem de trabalhar e que se sintam confortáveis perante a sociedade, porque estão a trabalhar.
                                        

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Autor: João Paz

Categorias: Regional

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