Correio dos Açores - Qual a importância do Dia Mundial de Combate à Injustiça?
Rosa Ponte (Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados) - Considero fundamental a sua existência, no sentido de ter como finalidade alertar as pessoas para situações de injustiça. Todos temos conhecimento, directa ou indirectamente, através da comunicação social ou de algum familiar, de situações de injustiça, pelo que creio que a existência desse dia passa por advertir para a continuação da existência de injustiças e, talvez, proporcione a criação de medidas que impeça uma sucessão dessas situações de forma continuada.
Que injustiças são mais evidentes na Justiça?
Existem muitas injustiças, não só a nível dos direitos humanos como a muitos outros níveis. Cada caso é um caso. Quando temos algum problema, cuja solução passe pela justiça, procuramos satisfazer e realizar os nossos direitos por esta via. Por vezes, as coisas não correm como se espera. A injustiça será toda e qualquer situação, em todos os campos, em que não haja a salvaguarda dos direitos humanos, nomeadamente a dignidade do ser humano, entre outras.
A justiça está muito vocacionada para a área dos tribunais, mas existem outras entidades que as pessoas também procuram com o intuito de ter um tratamento justo.
Em que áreas se verificam mais casos de injustiça?
Verificam-se em todas, não havendo uma área em específico. Se formos para a área do trabalho, verificamos que existem direitos dos trabalhadores que não estão devidamente salvaguardados. Existe legislação que disciplina o número de horas que um trabalhador deve laborar, todavia temos conhecimento da existência de situações em que as pessoas trabalham para além do número de horas que a lei prevê ou em condições demasiado degradantes.
Além disso, normalmente, existem situações de muita injustiça com pessoas idosas. Esta é uma classe que, mais do que ninguém, necessita de protecção, o que não se verifica em muitos casos.Em qualquer ramo do Direito, nomeadamente do Trabalho, da Sociedade, da Família, podem existir situações de injustiça.
O direito de acesso à Justiça é um direito fundamental de todos os cidadãos, salvaguardado na Constituição Portuguesa. Actualmente, continua-se a verificar, nos tribunais, imensos processos, recursos, julgamentos, novos recursos e casos que demoram anos até se resolverem. Ora, isto é uma injustiça…
Pode acabar por ser uma injustiça, mas importa ver sempre os dois lados. Por um lado, para quem entende que as decisões lhe foram desfavoráveis ou injustas, o recurso está a lutar para que se faça justiça e, neste sentido, acaba por não ser uma injustiça; por outro lado, a parte contrária, considera que os recursos e todas as situações de ilação, ou seja, de demora de um processo, com o objectivo de demorar e atrasar a efectiva concretização da sentença, são uma injustiça. É importante analisar as situações na perspectiva de cada uma das partes que está a recorrer à Justiça.
Se não tiver dinheiro, como é que o cidadão acede à Justiça?
O facto de não ter meios económicos não é fundamento para deixar de ter acesso à Justiça. Existe um modelo que pode ou não ser o mais favorável ou justo.
Existe a ideia generalizada de que os advogados que trabalham para os cidadãos economicamente mais desfavorecidos não são capazes e trabalham como se estivessem a “fazer um frete”. Ora, isso não corresponde à verdade. Falo por mim e por muitos colegas que posso garantir que não fazem distinção nenhuma entre um cliente particular, que pode pagar os honorários, e uma pessoa que lhes é delegada em termos do apoio de acesso ao direito.
Este sistema de acesso ao Direito é o apoio judiciário. Por algum motivo, muitas vezes, as pessoas não recorrem a uma das vertentes deste apoio, designadamente à consulta jurídica. Se a pessoa tiver uma dúvida, se não souber se deve fazer de uma forma ou de outra, pode pedir uma consulta jurídica e, assim, poderá tomar a sua decisão, devidamente fundamentada.
Em outras situações, por exemplo, para propor ou contestar uma acção que está pendente em tribunal ou, por outra razão, se a pessoa precisar de fazer um recurso, em qualquer fase do processo, tem sempre a possibilidade de pedir o apoio judiciário. Para tal, terá que se deslocar à Segurança Social da sua área de residência, apresentar os documentos necessários e ser-lhe-á nomeado um advogado, ao mesmo tempo que lhe concederão o apoio judiciário, na dispensa do pagamento dos encargos do processo. O acesso à Justiça é assegurado nestes termos, com requisitos e normas.
Há uma faixa da sociedade que, com os requisitos que existem nos dias de hoje para o acesso ao Direito, se vê um pouco prejudicada, na medida em que tem recursos económicos superiores aos que são os mínimos requeridos, porém não tem capacidade económica para pagar as taxas de justiça nos tribunais que, em certas situações, são bastante elevadas. Esta faixa da sociedade não estará tão protegida como as pessoas que têm menos recursos económicos.
Como se pode combater esta lacuna?
Existe uma forma, que é a possibilidade de a pessoa pagar em prestações as taxas de justiça. Todavia, a Segurança Social nem sempre cede nesse sentido e é penalizante. Se formos fazer as contas entre o valor que a pessoa tem que pagar, mensalmente, por causa das taxas de justiça e o pagamento da respectiva taxa de justiça verifica-se que acaba por ser penalizante para o próprio em muitos casos. No meu entendimento, esta não é a forma razoável para proteger as pessoas.
Pode fazer uma reflexão sobre injustiça social nos Açores?
Poderá haver várias vertentes. Cada vez mais, há um agudizar das diferenças sociais e das formas em que cada cidadão tem acesso à Saúde, aos apoios sociais, entre outros. De certa forma, as situações de crise agudizam todas as situações desfavoráveis. Não tenho percepção da percentagem referente ao aumento destes casos específicos, mas penso que estamos numa situação agravada em relação há três a quatro anos.
A subida do preço dos bens essenciais é evidente…
O facto de o preço dos bens essenciais estar cada vez a aumentar mais, aliado ao facto de as pessoas continuarem a ter o mesmo rendimento que tinham no início do ano traz muita fragilidade.
Já passou por alguma injustiça? Quer descrevê-la?
Creio que todos nós já passámos por alguma injustiça. Recordo-me de uma situação em que, ao longo dos anos, foram dadas decisões que não eram justas para o meu cliente. Refiro-me a um caso de menores e de um pai que considerava que as decisões não eram as mais favoráveis. Não desistimos de lutar e pode-se dizer que este caso teve um desfecho feliz, visto que o Tribunal Superior veio dar razão ao meu cliente. No entanto, durante uns anos, foi uma vivência complicada e dolorosa, que não se prendia apenas com a questão de entender que era uma injustiça, mas também por causa da própria dor da família que nem sempre transparece na questão da injustiça.
Existem outros casos de injustiça que a tenham marcado especialmente?
Para mim, as situações mais complicadas de lidar são as que envolvem uma família. Por exemplo, a perda de uma casa por não conseguir pagar a prestação, a situação de familiares relacionados com arguidos toxicodependentes, pois não é só a justiça, é também o sofrimento da pessoa que está a ser julgada e toda a família que está envolvida. Estas situações marcam sempre, uns mais do que outros, evidentemente. Há sempre o relacionamento da pessoa que está envolvida no processo e da família em redor.
O que se pode fazer em relação ao sentimento de injustiça?
No meu entender, o sentimento de injustiça traduz-se numa situação de impotência. Perante uma situação, mais simples ou complicada, em que os advogados se tornam na voz das pessoas, acabamos por vivenciar também as situações dos nossos clientes. A sensação de impotência da parte do advogado, de fazer tudo e usar todos os meios que legalmente lhe são permitidos para fazer valer o direito do seu cliente e chegar ao fim e ver que não consegue, é terrível. Queremos sempre fazer mais e, muitas vezes, não dá.
Do ponto de vista do cliente, dependendo das situações, chegar ao fim do processo e ver que não conseguiu fazer valer os seus direitos é como se desabasse o mundo nas suas costas e, muitas vezes, um sentimento de desilusão contra o sistema judiciário. Tendo em conta que qualquer uma das partes que recorre à justiça tem uma expectativa, lidar com a não concretização da mesma é sempre difícil.
Que mensagem quer deixar neste dia?
O meu desejo era que daqui a um ano já não houvesse necessidade de comemorar esta dia, uma vez que significaria que tínhamos conseguido atingir um patamar em que já não haveria necessidade de celebrar esta data. Sabendo que é impossível que esta ideia se concretize em tão curto espaço de tempo, desejo que, diariamente, se consiga lutar e combater a injustiça. Em cada caso com que nos formos deparando e que teremos de lidar, almejo que consigamos ter a sensação de que, no meio de tanta injustiça, houve alguma justiça. Espero que, cada vez mais, a justiça se consiga impor à injustiça, embora tenha a perfeita noção de que a realidade não será bem assim.
Carlota Pimentel