27 de agosto de 2022

Cesto da Gávea

A morte da morsa


A morsa, conhecidas internacionalmente pela designação inglesa de walrus, é um mamífero marinho de família aparentada com a das focas, de distribuição geográfica restringida ao Ártico e zonas subárticas, relativamente comum no extremo norte da América e na Europa. Os odobenídeos, família a que pertence, são uma das 3 famílias dos Pinnipedia, as outras 2 sendo os focídeos (focas comuns) e os otarídeos, as otárias ou leões marinhos, estes raros ou ausentes do Oceano Atlântico, embora se encontrem frequentemente noutros mares do globo. As morsas conhecem-se facilmente pelos seus longos dentes incisivos, salientes da boca, que chegam a 1metro de comprimento nos machos e a 80 cm nas fêmeas. Do ponto de vista biológico e ecológico, têm uma adaptação perfeita ao meio ambiente, conseguindo usar as barbatanas tanto para nadar e mergulhar no mar, como para se deslocarem em terra. São seres que desenvolveram as suas capacidades num ambiente misto, marinho e terrestre, conferindo-lhes um comportamento de aproximação aos humanos que lhes pode ser fatal, dado que são presa apetecida pelos caçadores, ao ponto de estarem na lista das espécies ameaçadas.
O primeiro avistamento que tive de uma morsa na Natureza foi no norte do Canadá, aquando da expedição do IFAW-International Fund for Animal Welfar e em defesa das focas bébé, há uns bons 30 anos. São animais em que os machos atingem mais de 1 tonelada, e as fêmeas cerca de 800 kgs, o que os torna apetecíveis como fonte de proteína. Nos casos em que os humanos os deixam aproximar, podem habituar-se ao convívio, como acontece com os golfinhos. Foi este facto que ditou a má sorte de Freya, a morsa norueguesa que se afeiçoou aos turistas, tornando-se uma celebridade mediática. Ao contrário das suas congéneres, Freya era uma fêmea que adorava os humanos, aproveitando barcos de recreio do fiorde de Oslo para neles estender ao sol. Usava os longos dentes para subir a bordo, e com 700 kgs de peso, os resultados transformaram o bronzear de Freya numa sentença de morte. Apesar das recomendações das autoridades marítimas, o público, motivado pelas redes sociais, aproximava-se demasiado para tirar fotos, correndo riscos. Estudadas várias soluções, entre elas o transporte da morsa para longe da costa, que foi considerado inviável, decidiram “eutanasiar” Freya. A Direção de Pescas norueguesa argumentou com a proteção dos humanos, os defensores dos animais insistem que existiam outras soluções, visto que as morsas são migradoras sazonais, saindo do habitat costeiro na primavera.

Se a morte da morsa norueguesa, considerada eutanásia pelos moralistas, chocou um certo público das redes sociais, a aceitação do prolongar da guerra na Europa parece ter deixado de chocar muita gente. Aparentemente, os milhares de vítimas humanas, militares e civis, incluindo famílias e crianças inocentes, vão entrando na nossa normal anormalidade, enquanto nos preocupamos com as subidas do preço do gás, dos combustíveis, dos bens de consumo corrente, da água e da inflação. Preocupações do povo consumidor, não dos acionistas de grandes empresas e dos governos como o português, cujo arrecadar de receitas fiscais aumenta à proporção. Para entretenimento de Verão, atira-se para os noticiários a panóplia de festivais e os anúncios das empresas de apostas online, onde apenas se especula com a possibilidade de ganhar, quando o habitual é perder-se. Mas ninguém regula este setor com a necessária severidade, invocando uma pretensa liberdade de escolha, a começar pelas televisões, que têm nos jogos dos “clicks” um verdadeiro maná. Aliás, um dos principais interessados no status quo é o Estado, que tem nestas fontes uma boa colheita de impostos.

Todos sabemos que os serviços do Estado necessitam da receita fiscal,utilizando para o efeito fontes indispensáveis para o consumidor, como o lixo e a energia. Com a divulgação constante de notícias sobre o aquecimento global, a seca, as alterações climáticas e a guerra russo-ucraniana, sobe a preocupação do consumidor quanto à reciclagem de resíduos urbanos e a qualidade e quantidade da água disponível. Sob pressão das instituições europeias, que durante décadas incentivaram a incineração de resíduos, de acordo com a política de “waste to energy”, foram queimados milhões de toneladas anuais de lixo, num processamento considerado ambientalmente favorável. Pelo menos em países como a Suécia e a Dinamarca, que são conhecidos pelas preocupações ecológicas, continua a ser assim, afirmando a sua confiança na incineração, dado o avanço no tratamento das emissões resultantes. São tecnologias sofisticadas só ao alcance de alguns, conforme sublinham os críticos ambientalistas, especialmente quanto às dioxinas e partículas emitidas, mas isso é outra história. É uma questão de dinheiro. Tal como a própria incineração gera proventos: anualmente, são incinerados na UE mais de 60 milhões de toneladas de lixos, transformados em energia elétrica para 18 milhões de europeus, providenciando aquecimento para mais 15 milhões de pessoas. 

A oposição entre aterros sanitários e incineração, que abrange pelo meio a reciclagem, chegou aos Açores pela incineradora da ilha Terceira, claramente sobredimensionada, mas a funcionar. O projeto da incineradora a construir em São Miguel, igualmente sobredimensionado, está agora a ser travado, porque as regras da União Europeia quanto às novas incineradoras mudaram, ou há razões para além dos aspetos jurídico-legais? Sabemos como é o Direito, quando nasce torto. Acontece-lhe como à morsa, que acabou morta, mesmo sendo amiga.

Vasco Garcia

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Autor: CA

Categorias: Opinião

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