Os pais foram de São Miguel trabalhar para a Base das Lajes

Empresário açoriano “de cultura africana” tem empresa de biotecnologia no Brasil e está a passar férias em São Miguel

 A história de vida de Herculano Anjos começa a partir do momento em que uma furnense conheceu e casou-se com um residente no Porto Formoso. O casal foi residir em Santa Clara onde viveu mais de 10 anos. “Tenho dois irmãos que nasceram em Santa Clara e um irmão que nasceu nas Capelas, e eu fui nascer na Terceira tal como outro irmão meu”, recorda. Foi na época em que os americanos aumentaram a construção da Base Aérea e contrataram técnicos e mecânicos para os ajudarem que a família foi à procura de uma vida melhor. Foi toda a família para as Lajes, na Terceira, e a Força Aérea Portuguesa, na Base Aérea 4, acabou por contratar o pai, Herculano José dos Anjos Júnior, por ser um bom mecânico.
A Força Aérea Portuguesa estava satisfeita com o trabalho do pai de tal forma que, quando Herculano tinha sete anos, o pai Herculano José foi contratado para Moçambique e levou toda a família para Lourenço Marques, actual Maputo. “Meu pai tinha, então, cerca de 50 anos, e ficou com a responsabilidade da manutenção das centrais eléctricas da Força Aérea Portuguesa em todo o Moçambique desde Norte a Sul”. 
“Fomos para Maputo fazer uma vida normal”. O salário que a Força Aérea Portuguesa pagava ao pai em Lourenço Marques era muito superior ao que recebia na Base das Lajes, na Terceira. “Éramos uma família humilde. Mas ele, ao aceitar ir para África, tenho de o agradecer porque nos abriu novos horizontes. Se tivesse ficado na Terceira, não sei se teria emigrado como outros conterrâneos meus para a América ou para o Canadá ou se teria ficado ali (Terceira) ”, desabafa Herculano.

Em Maputo têm uma vida aceitável…
Herculano Anjos fez a terceira e a quarta classe em Lourenço Marques e seguiu os estudos para a escola preparatória, para a escola comercial e para a Faculdade. “Já fiz parte de uma geração em que não havia nenhuma exploração do colono para com os negros. Nós crescemos juntos, estudávamos juntos, andávamos na mesma escola, praticávamos desporto e também discutíamos política. Naquela época, juntávamo-nos em grupos pensando no futuro e na independência de Moçambique, não nos moldes em que estava a ser divulgado. Portugal tinha uma guerra em Moçambique não só contra os grupos armados locais, mas suportados por duas potências enormes, que eram a China e a Rússia. Até nós sabíamos, mesmo com tenra idade, que tínhamos exemplos de outros países, mesmo africanos, que o pós-independência seria terrível, seria a pobreza imediata e veio a acontecer.

Quando deixou Moçambique?
Eu nunca deixei Moçambique. O meu coração sempre esteve e está em Moçambique. Vivi 16 anos em Moçambique até à independência. Saímos de Maputo, após a independência com destino a Lisboa em 1976. Meu pai, entretanto, é chamado pela Força Aérea, como todos os militares são chamados para voltar à base. E como ele conseguiu comprar uma casa para nós morarmos todos, então, eu, em vez de ir para outro país, fiquei em Lisboa onde chegamos em 1976 e fomos maltratados. Todos os retornados passaram uns anos muito difíceis para sobreviver. Foram quase um milhão e meio de pessoas que regressaram de Moçambique a Portugal. Não tinham roupa de Inverno, não tinham comida. Não foi fácil.

Durante a sua vida em África, privou com o então presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, em Lusaca…
Não temos ideia do que pode acontecer com o nosso destino. Mas ele nos leva a tomar decisões muito importantes e as ocasiões que surgem na nossa vida, às vezes, passam uma vez e não passam mais. 
Aquando da independência de Moçambique, a Zâmbia e a Tanzânia foram os primeiros paises a enviar uma delegação de diplomatas para criarem Embaixadas reconhecendo Moçambique como país. E a delegação da Zâmbia era enorme porque tinha funcionários de todos os ministérios zambianos para apoiar e para ajudar a Frelimo a montar o governo. Naquela época, eu trabalhava de dia, estudava à noite, praticava desporto e vendia móveis para escritório. E foi assim que fui entrando em todas as embaixadas que se instalavam em Maputo, entre elas a embaixada da Zâmbia. Comecei a vender móveis e encontrei um zambiano do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Zâmbia que era, na época, o tradutor oficial do Dr. Kaunda para francês. Houve uma empatia entre os dois e nos tornamos amigos. E em todos os meus dias livres, eu ia para o hotel onde ele estava com um bloco e uma caneta ensinar-lhe português e ele ensinava-me inglês. A nossa relação foi de tal maneira forte que o levou a contar-me que o cunhado dele era o Ministro dos Negócios Estrangeiros do presidente da Zâmbia. 

O primeiro português a entrar 
na Zâmbia após a guerra
Tive tanta curiosidade em conhecer a Zâmbia que, um dia, com 20 anos, tomei o avião, e fui para a capital Lusaca. E comuniquei a meu amigo que ia para Lusaca. E ele enviou um telex para o cunhado a informar que ia a Lusaca um português, seu amigo e fui recebido muito bem. Sem eu saber, eu fui o primeiro cidadão português a entrar na Zâmbia após aquela guerra de 16 anos. Quando a Frelimo declarou guerra a Portugal, tinha bases na Zâmbia e o Salazar e o Marcelo Caetano cortaram relações com a Zâmbia. Quando cheguei ao aeroporto de Lusaca, o homem pegou no passaporte e não queria acreditar. Mas fui muito bem recebido. E no hotel encontrei o Dr. Ruphia Banda que, na época, era Ministro dos Negócios Estrangeiros. Depois veio a ser Ministro das Minas, Governador de Luzaca e, depois, Presidente da República.
Mais tarde, jantei com o Dr. Ruphia Banda em sua casa e disse-lhe que tinha muita curiosidade em conhecer o Dr.Kenneth Kaunda porque gosto muito daquilo que dizia. Eu, em Lourenço Marques, tinha uma rádio com uns amigos que ouvíamos, à noite, escondidos da PIDE. Com este rádio apanhávamos a BBC de Londres e, através da BBC, sabíamos o que estava a acontecer no norte de Moçambique em espaços de guerra. E, muitas vezes, eles entrevistavam o Dr. Kaunda na frente das batalhas. E, da forma como ele falava, em cada 10 palavras, cinco eram palavras católicas. Ele era um homem de paz, um homem de visão, um homem de futuro e consideravam-no um excelente estadista.
Por diligências de Ruphia Banda, fui recebido pelo Dr. Kaunda. Tinha 15 minutos para mim e deu-me uma hora e meia. Foi uma conversa amena sobre a situação portuguesa em Moçambique, o que ele vislumbrava do futuro da independência e pouco mais. E ele disse-me a mim directamente: Herculano, eu sempre fui um não alinhado. Claro que esta conversa abriu-me uma porta porque não é qualquer Presidente da República que recebe uma criança de 20 anos assim, de ‘mão beijada’. E, além da admiração que eu já tinha por ele, passei a ter respeito por aquele homem.
Depois de a minha família ter casa em Lisboa, a partir de 1978, comecei a ir à Zâmbia com muita frequência, procurando uma aproximação entre Portugal e a Zâmbia, através do embaixador da Zâmbia em Lisboa. Eu ia à Zâmbia, voltava e conversava com ele.

Kaunda: “Eu trabalhei pra o país
não trabalhei para mim”
“Da segunda vez que fui à Zâmbia”, afirma Herculano Anjos, “o Dr. Kaunda fez-me duas perguntas: 1ª Onde é que estão os portugueses que desenvolveram Angola e Moçambique e eu olhei para ele surpreendido e questionei o que queria dizer se tinha ajudado a Frelimo a combater os portugueses. E ele respondeu-me: “não, eu não fiz isso. Eu dei apoio à Frelimo para obtermos a independência de mais um país africano. Eu não sou maoista nem leninista. A minha política não é a política da Frelimo. Mas, como se tratava da independência de mais um país africano, aí sim, acedi a que ocupassem mais um território e daí partir para para a paz em Angola e Moçambique. Agora, se me perguntar o que é que os ingleses fizeram aqui, já viu Lusaca, não se compara em nada com Lourenço Marques. Lusaca, realmente, parece um bairro.”

Os ingleses não se misturavam
“O facto é que os ingleses iam para a Zâmbia e ficavam 10 anos e depois tinham que se ir embora. A mulher inglesa não podia ter uma criança na Zâmbia. A criança tinha que ir nascer em Inglaterra. Os ingleses não se misturavam com sangue africano. E vocês – disse o Dr. Kaumba – não fizeram nada disto. Vocês colonizaram, investiram, multiplicaram-se, misturaram-se. Passaram de geração para geração. Construíram países maravilhosos altamente produtivos e altamente rentáveis e, ainda por cima, quando deram a independência, ainda deixaram dinheiro. Enquanto eu, quano negociei a independência da Zâmbia com a Rainha de Inglaterra, foi-me apresentada a factura de tudo o que os ingleses construíram aqui para pagarmos durante 100 anos”. Com esta descrição, logo no nosso segundo encontro, o Dr. Daunda demonstrou-me a admiração pessoal que tinha pelo povo português. 
“Todas as minhas viagens eram anunciadas pelo embaixador da Zâmbia para Lusaca, informando que eu iria. Em 1997, eu fui à Zâmbia, o dr. Kaunda já não era presidente. Ele governou o país durante 27 anos. Há quem diga que ele não era um democrata, ele era um ditador”.
“É preciso que a Europa entenda”, prosseguiu Herculano Anjos, que África é um continente “aparte. Não podemos, de modo nenhum, aceitar que os Estados Unidos, a Inglaterra, Portugal ou outro país diga: “vamos promover a democracia naquele país à nossa maneira. Isto não acontece. A democracia acontece quando eles querem, como eles querem de acordo com o pensamento deles”.
 “Nesta altura o Dr. Kaunda já tinha a sua idade, fez o que tinha de fazer pelo país dele, entendeu que era reconhecido mundialmente, que a sua voz era ouvida em qualquer parte do globo. E tinha que dar oportunidade aos mais jovens. Ele aceitou novas eleições, abriu o leque partidário a outros partidos que surgiram e, como tudo que é novo, chama a atenção, Frederike Chiluba era um líder sindical bem-falante já muito conhecido no país e foi fácil para ele ganhar as eleições”. 
Entretanto, o Dr. Kaunda retira-se e passa um tempo no Quénia, escreve as suas memórias, regressa à Zâmbia e percorre todas as aldeias do país. Ele passa um ano viajando, ouvindo os líderes tribais a queixarem-se da situação do país. Certo dia, estava na Zâmbia e fui visitá-lo. O Dr. Ruphia Bamba passou no hotel e convidou-me. “Eu vou visitar o presidente. Queres vir comigo?”. E, no caminho, Ruphia Bamba diz-me: “olha, a casa onde vamos não é dele”. Perguntei é de quem? e ele respondeu-me: “É emprestada”. Comentei, então, para mim: um homem que governou este país 27 anos não tem uma casa? E quando o encontrei, apesar do calor terrível ele estava adoentado com um robe. Ele fez uma cara de felicidade quando me viu e eu perguntei-lhe logo: Você não ganhou para fazer uma casa? E respondeu-me ele: “Jovem, eu trabalhei para o país, não trabalhei para mim”. E eu calei-me! (…)

(O Dr. Kaunda tentou voltar ao poder na Zâmbia e, depois de uma passagem em Portugal e em Londres, é preso durante dois meses pelo então presidente Frederike Chilupa com a alegação de que se queria recandidatar. A sua libertação só é possível com a intervenção dos presidentes da Tanzânia e da África do Sul, este último Nelson Mandela. Como condição, o Dr. Kaunda apenas tinha que assinar um documento a assumir que não voltaria à política).

A África do Sul disponibiliza, entretanto, meios financeiros ao Dr. Kaunda para montar uma fundação contra a SIDA. “Comprou uma casinha e a partir daí passou a viver para a sua fundação. De quando em vez recebia apoio da Suécia e acabou por falecer aos 98 anos”.
 
Empresa de Biotecnologia no Brasil
Herculano Anjos residiu com os pais até aos 27 anos. Casou em Lisboa e foi pai. “Sempre me mantive em Portugal continental com os meus pais, eles morando em sua casa e eu na minha. Em paralelo com o meu trabalho, tinha esta paixão por África e pela Zâmbia”.
Fui para o Brasil em 2005. “Na minha área de trabalho eu vislumbrei o Brasil como um mercado muito grande com 210 milhões de pessoas”.  Fui para Fortaleza, montei uma empresa no Brasil, mas como este não seria o local ideal, dois anos depois transferi a empresa para São Paulo, tendo como sócio o meu filho. E Ruphia Bamba, já enquanto Presidente da República da Zâmbia, visitou-me em São Paulo em 2011 numa visita de Estado que fez ao Brasil na altura do Lula a Silva. Então, passou por São Paulo para nos encontrarmos. Tivemos várias conversas”.
Mesmo no Brasil, Herculano Anjos manteve a sua ligação à Zâmbia. “Ajudei várias vezes o embaixador da Zâmbia no Brasil a encontrar eventuais investidores para o país”, disse.
Em 2010, o Presidente Lula da Silva foi à Zâmbia em negócios e, em 2011 Lula recebeu a visita do Presidente da Zâmbia e “tivemos oportunidade para conversar. Isto porque a Zâmbia é um país no meio de África com oito a nove outros países à sua volta. Existem quase 500 milhões de bocas ali à volta. Então é mais barato, em vez de produzir em Moçambique ou em Angola, produzir na Zâmbia e distribuir. E este era o trabalho que fazia nas explicações que dava aos investidores no Brasil. 
Actualmente, Herculano Anjos, com 67 anos, apesar de continuar com o coração em África, tem uma empresa de biotecnologia em São Paulo, no Brasil. Produz testes rápidos para gravidezes, drogas, coronavírus e outras doenças e faz a sua distribuição em todo o país.
Em viagens de negócios, fez uma a duas passagens nos Açores para deixar encomendas mas, desta vez, entendeu ficar 18 dias de férias em São Miguel para conhecer a terra de seus pais num autêntico regresso temporário às origens. Como descreve, “há quatro meses abriram-me o coração e, então, prometi que se me livrasse desta, iria conhecer a terra de minha mãe e de meu pai. E por isso estou aqui. Passei a prova do coração, e eu estou a cumprir a minha palavra”.
Que fique claro que “eu não me considero um emigrante. Eu saí da Terceira com quase sete anos. Cresci em África. E hoje a minha cultura é mais africana do que portuguesa. Enquanto crescemos é que vamos assimilando, é que vamos aprendendo... Eu não estava na minha terra quando eu cresci. Estava em África e fui assimilando rapidamente a cultura africana”, conclui Herculano Anjos que, depois, se desfaz em elogios às paisagens da ilha que viu nascer os seus pais., São Miguel.
 João Paz

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Autor: CA

Categorias: Regional

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