Paulo Fontes, sociólogo e professor da Universidade dos Açores

“Com a canábis regulada grande parte dos jovens consumidores de São Miguel já não passaria para as drogas sintéticas”

 Correio dos Açores - Pode fazer um ponto de situação do consumo de substâncias psicoactivas em São Miguel?
Paulo Fontes (ex-Coordenador da Novo Dia  onde esteve 20 anos e, desde há algum tempo, é Professor de Ciências Políticas na Universidade dos Açores) - Em termos gerais, até há 10 anos, havia grande preponderância do consumo de heroína na nossa sociedade, pelo que houve um conjunto de tratamentos que se vocacionaram para os toxicodependentes heroinómanos. Nos últimos anos, houve uma mudança significativa, principalmente em São Miguel, passando do consumo de heroína para as chamadas drogas sintéticas. Estas drogas são muito difíceis de catalogar a nível legal, isto é, de estarem na lista de drogas da lei, acabando até por não ser punidas, pois quimicamente as suas moléculas vão sendo alteradas.
Estas novas substâncias psicoactivas não são controladas nem são conhecidas pela lei ou pelos médicos. Quando existem overdoses ou pessoas que dão entrada no hospital após consumirem estas drogas, os médicos não sabem o que hão-de receitar, pois desconhecem os seus efeitos. Não existe um tratamento ou protocolo específicos. As pessoas que as consomem ficam com grandes alucinações, em estados psiquiátricos agudos e os hospitais não conseguem dar a resposta adequada, visto que os seus efeitos são completamente imprevisíveis.
Além disso, o impacto destas drogas é visível. A população micaelense já está a notar pessoas a andar pela cidade num estado muito descompensado, muito magras, a falarem sozinhas na rua, por exemplo.
Outra agravante é o preço a que se consegue adquirir estas substâncias. Ao que parece, é mais barato que as outras drogas, encomenda-se pela internet e muitas nem são apanhadas pela polícia. Ora, efeitos muito fortes, preços baratos, faz com que estas substâncias tenham bastante sucesso entre os seus consumidores.
As drogas sintéticas encontraram em São Miguel um nicho de mercado. Houve um ‘boom’ nesta ilha. Fizemos um estudo sobre os sem-abrigo nos Açores e nas reuniões que tive com outros técnicos, constatei que o grande problema das substâncias psicoactivas se verifica em São Miguel, nem é em Lisboa.

A Polícia tem grande dificuldade em controlar a situação…
 A Polícia não tem maneiras legais de actuar, pois certas substâncias não estão catalogadas na lista de substâncias psicoactivas proibidas.

O que faz a Novo Dia em relação a estes casos?
Na Novo Dia existe um psiquiatra e uma equipa de enfermagem, mas o psiquiatra fica limitado em termos de tratamentos. Quando as pessoas estão em consumos activos, é muito difícil, não se pode fazer nada. Temos que esperar que passe, que a pessoa fique minimamente mais calma, para depois podermos conversar com ela e saber se quer fazer algum tratamento. O tratamento é complicado, tendo em conta que as drogas não são conhecidas nem foram desenvolvidos ainda medicamentos antagonistas para estas substâncias, o que constitui mais um problema. Para as outras substâncias clássicas, como a cocaína, a heroína, pastilhas, entre outras, já existem alguns tratamentos hospitalares e farmacológicos. No caso das novas substâncias psicoactivas, vamos por tentativas, experiências…

Há situações de netos a bater em avós, de pessoas a partir carros, de cenas de pancadaria na rua...
Eu desconheço os efeitos que estas drogas têm, efectivamente, nas pessoas, porém ouvem-se estes relatos. Devem ter efeitos psicoactivos muito fortes e as pessoas ficam completamente fora de si. Realmente, não havia estes problemas tão grandes e graves com as drogas mais “clássicas”. Sempre houve roubos associados a consumos, contudo esse índice de violência julgo que tem a ver com o estado de alucinação em que as pessoas ficam.
 
Está espalhado por toda a ilha?
Em muitos casos, principalmente quando as pessoas estão já excluídas, isto é, estão sem-abrigo, vêm parar a Ponta Delgada. Todavia, julgo que este fenómeno das drogas sintéticas já está espalhado por todas as freguesias de São Miguel.

A situação complica-se ainda mais…
Nos lugares mais pequenos e rurais há a agravante de as pessoas estarem mais afastadas das instituições que dão apoio, embora São Miguel seja uma ilha pequena.

Já deveria haver um laboratório pericial em São Miguel...
Esta é uma questão interessante. Julgo que seria importante, embora também seja muito pertinente, uma sugestão dada pelo psiquiatra que trabalha connosco, que os médicos e até mesmo os polícias quando detectarem pessoas com esses consumos, tentarem saber o máximo de informações, nomeadamente que tipo de substâncias são, como as consumiram, entre outras, na medida em que tudo isto é um mistério na ilha. Essas informações, designadamente o tipo de consumo, o tipo de substância, o tipo de efeito, são muito importantes para os médicos poderem ajustar a medicação e prescreverem um tratamento adequado. Considero que tem de haver um maior cuidado dos profissionais de saúde, no sentido de tentar agarrar mais informação das pessoas que estão com os consumos activos, tendo em conta que estes são muito desconhecidos e os efeitos são imprevisíveis, chegando a ser mesmo perigoso confrontar as pessoas quando estão sob estes consumos.

Devia haver maneiras mais restritivas de vigilância para impedir a entrada...?
Pela via restritiva e policial não se resolve o problema das drogas, aliás nunca se resolveu. Podemos ter mais polícia e fiscalização, mas creio que a solução não passa por aí. Nos Estados Unidos, por exemplo, o consumo de drogas não pára de crescer e eles declararam guerra aberta à droga, inclusive aos países produtores de droga. Mesmo assim, nunca conseguiram eliminar droga nos Estados Unidos, pelo que não acredito que nós, ou qualquer outro país, o consigamos.
No meu entender, tem que se abordar as substâncias de outra forma e encarar as pessoas que as consomem como doentes, os quais têm de ser tratados com dignidade e com recursos para isso.
Julgo que algumas destas substâncias deveriam ser legalizadas e reguladas pelo próprio Estado, tal como a Holanda fez e os Estados Unidos estão a fazer com a canábis, por exemplo.  Penso que se a canábis for regulada, grande parte dos jovens consumidores já não passará para as drogas sintéticas. Como a canábis é tratada como uma droga igual às outras, as pessoas pensam que é tudo igual e metem-se drogas que são verdadeiros perigos.
Não temos que gastar apenas dinheiro dos nossos impostos a tratar as pessoas toxicodependentes e a prendê-las, devemos também ganhar dinheiro com alguns impostos sobre as drogas, o que só é possível se houver alguma regulação. Creio que esta é a maneira de vivermos com elas, como vivemos com o álcool.

Deve legalizar-se a canábis nos Açores?
Nos Açores e em Portugal já há projectos para legalizar a canábis. Além disso, pensar em integrar nesta regulação drogas como a heroína e os opiáceos, visto que algumas destas são usadas a nível medicinal, como por exemplo a morfina, o subutex, entre outros. Há países que utilizam a própria heroína em tratamentos, “com qualidade”, em que controlam os aditivos que se usam, entre outras coisas, não dando as tais overdoses. Tínhamos que ter a coragem de intervir no mercado das drogas e o primeiro passo era com a canábis. A canábis está a ter um movimento medicinal enorme à sua volta e as pessoas começam a perceber que, realmente, não é uma droga como as outras. Claro que é uma substância que pode ter efeitos negativos, mas também tem efeitos positivos e é preciso desmistificar um pouco esta questão.

No mercado não regulado é o caos...
Há 30 e tal anos, houve um acontecimento em São Miguel de uns contentores de haxixe, ou de “chamon” como se chamava na altura, que deram à costa, que estavam afundados à frente de São Roque e muita gente foi presa. Creio que alguém ia mergulhar, com o pretexto de apanhar polvos, e trazia o haxixe para terra. Segundo me contaram, houve uma caça enorme ao haxixe e, de seguida, o consumo de heroína aumentou exponencialmente. Houve uma maior pressão sobre as pessoas consumidoras, prenderam traficantes do haxixe e abriram a porta à heroína, levando a que esta fosse a droga de iniciação. Ora, a heroína é uma droga perigosíssima, porque é extremamente viciante.
Ao fim e ao cabo, não conheço nenhuma sociedade que não tenha drogas, só que umas são reguladas e outras não. Para nós, o álcool é livre; para os árabes a canábis é livre e o álcool é proibido, havendo inclusive tráfico de álcool lá. A cultura árabe tem uma droga de escape que é a canábis, a nossa é o álcool, que não é melhor considerando que os resultados e as consequências estão à vista.

Acredita que a legalização da canábis resolvia parte do problema das novas substâncias psicoactivas?
Com este movimento, a nível mundial, da importância da canábis medicinal, pode ser que as pessoas comecem a perceber que a canábis não é uma droga como as outras. Pode ser usada para tratamentos, para variadíssimas coisas. Talvez, pudéssemos até ganhar dinheiro com isso. Neste momento, temos as maiores multinacionais da área da canábis a produzir em Portugal, por causa do nosso clima, contudo os portugueses não podem comprar o produto. Ora, isto é um contra-senso. A canábis deveria ser regulada e legalizada, pois resolveria parte dos problemas de iniciação nas drogas da juventude.
 Importa salvaguardar que há sempre excepções...

 João Paz/Carlota Pimentel *

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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