17 de setembro de 2022

Opinião

Carta póstuma a Manuel Maria Barbosa du Bocage

MEU CARO BOCAGE,

Atualmente já ninguém escreve cartas como se escreviam no passado
Hoje enviam-se e-mails, SMS curtos, mas cartas com selo do correio já não se usa.
Todavia as cartas fazem falta, as cartas não podem ser substituídas pelas novas tecnologias de comunicação.
É conhecida a carta escrita ao pai por FRANZ KAFKA, o autor extraordinário do Processo, as cartas do celebre tribuno e advogado SENECA, AS MEMÓRIAS DE ALÉM TÚMULO de Chateaubriand.
No teu caso, amigo Bocage, hoje, fora de uma elite, és mais conhecido pelas chalaças chistes e facécias para gáudio da populaça ignara que sempre fez parte das massas ululantes que povoaram desde sempre este mundo, fazendo dele a desgraça que é.
Quando era rapaz gostava de me sentar nas escadas do adro da igreja a ouvir contar histórias brejeiras relacionadas contigo.
A título de exemplo, trago aqui à colação aquela história segundo a qual uma certa noite, o noctívago inveterado que tu eras, ia sair de um café da capital do extinto império, quando te deparas com um grupo de meliantes que te esperavam, tendo o cabecilha do grupo dito o seguinte: Bocage morres aqui mesmo se não fizeres já uma quadra dizendo quem tu és, de onde vens e para onde vais, ao que tu respondeste assim:

Eu sou Bocage
Venho do café Raimundo
E vou para o café Nicola
E vou para o outro mundo
Se disparas a pistola.

Infelizmente poucos conhecem os teus imortais SONETOS. Escolhi este à sorte

Já Bocage não sou
À cova escura meu estro irá parar desfeito em vento
Eu aos céus ultrajei. O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura,
Conheço agora, quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa tivera algum merecimento
Se um raio de razão seguisse.

Eu me arrependo, a língua quase fria
Brade em alto pregão ã mocidade
Que atrás do som fantástico corria,

Outro Aretino fui... a santidade manchei.
Oh se me crês-te gente ímpia
Rasga meus versos,
Crê na eternidade.

Pessoalmente Bocage, digo-te que gostei particularmente deste teu Soneto.
Tu tomas dolorosamente consciência da tua finitude, a vida a certa altura cravou os seus dentes afiados no teu coração sensível de poeta maior da língua de Camões, cujo fado achavas semelhante ao teu.
O teu génio poético iria parar à cova desfeito em vento, foi um dom provisório que os deuses magnânimos te concederam a prazo certo, assim como a tua vida.
Julgavas em ti quase imortal a essência humana.
Mas eis que sucumbe a natureza humana
Ao mal que a vida na sua origem dana.
Confessas-te em verso que não soubeste viver, mas olha que eu não sei o que significa saber viver.
Quando tinha vinte anos achava que sabia tudo da vida.
Depois, ah, depois o caso muda de figura.
A certa altura da caminhada terrena fiquei como o Sócrates da Antiga Grécia que só sabia que nada sabia.
E tão difícil ser homem que até Deus teve medo de ser homem, como egregiamente escreveu o meu saudoso amigo e escritor brilhante Daniel de Sá.
Amar a vida, Bocage, e ao mesmo tempo desprender-se dela é muito mais do que permite a inteligência humana.
As coisas que para mim, Bocage  eram importantes com o passar do tempo perderam a sua importância.
Tudo muda, não há base segura e definitiva onde firmar a nossa vida.
Estamos no vento.
A vida é um punhado infantil de areia ressequida, um som de água ou de bronze e uma sombra que passa como disse, creio que Américo Durão, numa carta dirigida à poetisa Florbela Espanca.
Eu pessoalmente oscilo entre a morgue e as pirâmides como o grande E. Cioran; entre o tudo e o Nada, entre o ser finito e o ser infinito.
Amo a solidão, as montanhas onde habita um espírito imortal nos seus altos cumes.
Amigo Bocage:
Se lá no céu, onde subiste memória desta vida se consente depois de teres partido desta vida descontente, roga a Deus que tenha piedade dos pobres mortais aqui em baixo onde os homens desde há muito que estão loucos, continuando a matar-se uns aos outros sem dó nem piedade, tornado a vida uma sucessão de lástimas, um verdadeiro vale de lágrimas,
Aqui em baixo as musas também cantam ao dinheiro e ao poder que encantam quase todos,
Já agora, o teu irmão poeta confessava que nunca se pode ser nada.
Tanto que se sonha e depois onde cabe, onde por o nosso sonho?
Outro poeta disse:
Desta altura vejo o amor
Viver não foi em vão se é isto a vida
Nem foi demais o desengano e a dor
Só lamento que para tão grande amor seja tão curta a vida.
Graças à la vida, Bocage, como disse Violeta Parra.

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