Maria Teresa Flor de Lima

“Tem crescido na humanidade a incerteza e a insegurança, levando a alguns retrocessos, sobretudo no apoio aos mais vulneráveis...”

 Correio dos Açores - O século XXI trouxe um novo olhar sobre como o indivíduo se posiciona na sociedade, uma nova visão sobre o conceito de família e uma relação deferente de como o ser humano cuida do corpo. Como parte da geração que viveu boa parte do século passado, que diferenças encontra na forma como as pessoas se vestem e nos cuidados que têm com o visual?
Teresa Flor de Lima – Primeiro, há que salientar a evolução das sociedades no aspecto tecnológico e económico, o que influenciou a diversificação das ofertas e o acesso mais alargado a uma grande variedade de objectos e sujeito às influências da moda. E as pessoas são bombardeadas com muita publicidade. Por exemplo, às vezes, penso que “não se encontram muitas pessoas mal vestidas ou mesmo mal cuidadas”.
Podemos incluir aqui, na questão do visual, a grande procura pelas cirurgias corretoras e de estética. Mas, numa época em que as preocupações sociais são cada vez mais evidentes, este é um tema em que a acessibilidade é prejudicada pelas questões económicas e é mais uma forma de mostrar as desigualdades.  

Para muitos, viver em ilhas é sinónimo de qualidade de vida mas há necessidade de sair e abrir novos horizontes. Olhando para trás, em comparação com os dias de hoje, como vê a possibilidade que os açorianos têm de viajar para além do arquipélago e que melhorias encontra na promoção das viagens cá dentro?
Indiscutivelmente, hoje, os açorianos estão mais conectados com o mundo, viajam muito mais porque houve melhoria das condições de vida e do acesso a viagens. O viver nestas ilhas era diferente há 40 anos, quando cá cheguei e só havia um voo diário para Lisboa e, por vezes, nem todos os dias. Os colegas e amigos perguntavam-me “como era possível viver aqui devido ao isolamento”. Nunca senti isso!
Na verdade, “ultrapassei a vivência numa terra mais pequena, devido aos projectos profissionais e aos sonhos que fui sempre pondo em acção”. Por último, também é as famílias que constituímos que é o grande suporte dos desafios da vida.
A promoção das viagens dentro do arquipélago permite aos açorianos conhecerem melhor outras ilhas, facilita a participação em eventos culturais e outros e permite quebrar o isolamento, sobretudo nas ilhas mais pequenas. Os açorianos ficam a conhecer-se melhor e a partilhar aspectos culturais específicos de cada ilha. Devemos agradecer e felicitar esta iniciativa.

As famílias hoje têm dimensões diferentes. Em seu entender, o que difere?  
Os padrões das famílias sofreram grandes alterações na organização porque surgiram novas formas, mas também no funcionamento. Atribuo muito ao facto do trabalho da mulher fora de casa e a sua diferenciação que levou à necessidade de partilha de tarefas entre todos os elementos, incluindo os filhos. No entanto, quebrou-se alguma união pela falta de convívio e de valorização das experiências dos mais idosos que, em muitos casos, saíram do seu ambiente. Este é um aspecto muito negativo, já que os idosos são verdadeiras enciclopédias e  uma forma de ensino insubstituível para os mais novos.

O facto de haver hoje muitas actividades e uma panóplia de interesses, acha que a relação entre pais e filhos se alterou? Há mais proximidade, ou não?
Os filhos são mais autónomos e reivindicativos desde muito cedo. Basta ouvir os filhos e até os netos, aos 3 anos, dizerem “tu não mandas em mim, faço o que eu quiser…”
A proximidade deve ser criada pelos mais velhos, isso faz parte da educação e da ponderação do acesso excessivo à internet e redes sociais. Acho que é preciso muita atenção e inovação na comunicação que se vai construindo com os mais novos.

E na relação com os amigos, o que destaca?
A convivência com os amigos tem evoluído no sentido positivo, no aumento da convivência social, no lazer e nas relações profissionais. A sociedade está mais aberta. Não esquecer que o ser humano é um ser social. Até no aspecto cultural, felizmente, a maior oferta dos eventos é um factor multiplicativo. Aprecio muito a evolução que se tem dado.
Por vezes, a responsabilidade profissional e os compromissos familiares podem prejudicar os convívios.

A internet é um dado deste século. Acha que as tecnologias nos afastam das pessoas ou consegue aproximar-nos? Quais as vantagens e desvantagens.
A internet tanto aproxima como afasta, há que dosear, seleccionar, questionar, para não cairmos nas desvantagens. É um acontecimento da evolução dos tempos e permitiu um desenvolvimento extraordinário da minha geração.
Tivemos que acelerar a formação para não sermos ultrapassados pelas novas gerações e para podermos acompanhá-las. E, profissionalmente, fez-nos mudar o paradigma do relacionamento com todo o mundo.
É inconcebível, e temos que reconhecer as vantagens: Veja-se o que aconteceu nos tempos de isolamento da pandemia: ”ajudou a suportar melhor esse isolamento, permitiu alargar os contactos além fronteiras, o aparecimento de novas profissões e o desenvolvimento de competências nos que souberam não ficar para trás”.
Como desvantagens, saliento a questão dos ciberataques e a demonstração da perda de privacidade, num mundo tão agitado e em mudança. Quando as coisas pendem para o lado do mal, veja-se o que diz a ONU em que as crises que se têm vivido atrasaram o progresso humano em cinco anos e está criada uma onda global de incerteza.

Também a alimentação tem acompanhado os tempos. Em que medida o excesso de informação e oferta diversificada, em muitos casos processada, faz com que acabemos por não ter os melhores hábitos?
O excesso de informação deve sempre ser acompanhado de uma boa dose de selecção.
Os hábitos alimentares têm mudado, mas para melhor, pois já se nota preocupação acrescida com as influências de uma alimentação cuidada na prevenção de doenças e melhoria da saúde. Há programas muito interessantes, com o início de campanhas nas escolas. Veja a minha neta de 4 anos a pedir alface e a ensinar a avó que “faz bem à saúde”.
E são os mais novos a ensinar as famílias!
Saliento o papel dos nutricionistas, muito relevante em todas as áreas, da prevenção ao tratamento de distúrbios alimentares e à colaboração nos tratamentos de muitas doenças.
Temos a sorte de conhecer a dieta mediterrânica e poder divulgá-la, património cultural imaterial da humanidade, que se traduz num dos padrões alimentares mais saudáveis e sustentáveis do mundo e deve ser utilizada como uma ferramenta promotora de um estilo de vida saudável e de hábitos alimentares equilibrados. Está associada a uma maior longevidade, melhor qualidade de vida e à diminuição do risco de desenvolvimento de doenças crónicas não transmissíveis, menor prevalência de excesso de peso e de obesidade.

Acha que o trabalho influencia as tendências alimentares?
Sempre notei que as grandes modificações que se têm verificado nos empregos influenciaram, às vezes, para mal, os resultados da alimentação. Recorda-se aqueles que têm horários desregrados, que comem em pé ou apressadamente ou recorrem à chamada fast food. Parece que se ganharam alguns hábitos nocivos.

E na relação com a família e com os amigos favorece ou não as relações quando comparamos com o passado?
“As refeições devem ser um momento de convívio familiar (sem telemóveis)”. As relações com os amigos são facilitadas com a mudança do hábito de frequência dos restaurantes, o que não se verificava no passado, ainda próximo. Quem não gosta de organizar uma comemoração num restaurante, onde a comida é desculpa para festejar e, pelo contrário, a organização dos eventos, é desculpa para ”ir ao restaurante”?  Até os “almoços de negócios” entraram nos hábitos das pessoas.

E nas relações profissionais com o outro? Como tem sido a evolução?
O desenvolvimento tecnológico, em Portugal, pelo menos nos últimos quarenta anos, tem modificado muito as relações profissionais e o desenvolvimento humano. Como médica, não posso deixar de valorizar as oportunidades de mudança e de evolução nos índices de saúde, como o aumento da esperança média de vida. Já não trabalhamos sozinhos ou isolados do que se passa em outras latitudes. Contactamos colegas, participamos em investigação científica global, conhecemos os estudos e baseamos a nossa prática num conhecimento alargado. Todos ficam a ganhar, a sociedade, os cidadãos, os profissionais.
No entanto, nos últimos tempos, tem crescido na humanidade a incerteza e a insegurança, levando a alguns retrocessos, sobretudo no apoio aos mais vulneráveis e desfavorecidos. Surgem, então, outras preocupações porque podemos estar a enfrentar um grande revés para o Índice de Desenvolvimento Humano (medida das expectativas de vida, níveis de educação e padrões de vida dos países).

          

 

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