24 de setembro de 2022

Opinião - Cesto da Gávea

Lua mentirosa

Um destes crepúsculos pré-tempestade tropical que o calor do mar anuncia, observei que a serra de Água de Pau ostentava um colar de nuvens baixas a meia encosta, enquanto por detrás da montanha surgia uma pálida Lua, numa visão quase mágica. Vista da minha varanda, a magia levou-me a outras imagens de outras luas, estas despontando sobre cenários montanhosos africanos. E recordei os tempos de “chinchinho” da minha infância micaelense, quando ouvi pela primeira vez dizer que a “Lua é mentirosa”, porque quando está no minguante, tem forma de C, enquanto no crescente, tem o D de decrescente. Só que a mentira lunar do Norte, é verdade no Hemisfério Sul, onde o C da Lua indica que está no quarto crescente, e o D que vai decrescendo, o que permite toda a sorte de jocosas interpretações. Qualquer delas, obviamente ocultando a realidade astronómica, resultante do lado por onde a Lua é iluminada pelo Sol, que começa a encher pela direita do satélite no Norte (D) e pela esquerda, no Sul (C).Assim, a mesma Lua que “mente” a Norte do Equador, “fala verdade” a Sul.

A Lua é um bom exemplo para quem acompanha a atualidade política no mundo conturbado em que vivemos, submetido ao domínio da tecnologia mercantilista, do mediatismo controlado, das guerras ao vivo como na Ucrânia, ou larvadas como a que se perfila para Taiwan, sem considerar as lutas pela hegemonia económica e financeira global e outras que tais “pandemias”, capazes de fazer esquecer a Covid-19. A arte de mentir parecendo falar verdade, generalizou-se ao ritmo da globalização, relegando para a prateleira valores e princípios. Que, com o maior dos descaramentos, são agitados como bandeira por quem menos os segue, numa estratégia coordenada, habilmente montada pelos senhores dos destinos mundiais. Portugal é um excelente exemplo, quando os poderes instituídos divulgam constantemente as virtudes da “geração mais qualificada de sempre”, contrastando com a gritante falta de mão-de-obra daí resultante, que vai dos canalizadores aos engenheiros informáticos, ou dos médicos aos diferentes ramos da eletricidade e/ou eletrónica. A rede do ensino superior português pulverizou o país de instituições, muitas delas de duvidosa qualidade, conseguindo rácios instituição/população duplos ou triplos de países europeus avançados. Não havendo planificação da economia e da indústria, submetidos à lei dos mercados, os diplomados portugueses, ou aceitam trabalhar com salários próximos dos mínimos nacionais, ou emigram para paragens mais atrativas.

O endividamento do país, espelhado nos milhares de milhões enterrados na TAP e na banca privada – alguma dela, vendida a saldo a fundos estrangeiros – numa série de operações misturadoras de interesses políticos com negócios, limitou por muitos anos a soberania nacional. Assistir a um debate na Assembleia da República é um exercício deprimente, tão evidentes são as jogadas partidárias, cujo fim é mais a caça ao voto, do que a defesa do superior interesse nacional, neste incluído o dos cidadãos eleitores. Compreende-se, uma vez que o País se colocou totalmente à mercê dos mercados internacionais, a começar pelos europeus, depois de arrasada a estrutura industrial, agrícola, naval e pesqueira portuguesas. Para reerguer o que ainda existe e resiste, é necessário um genuíno plano de salvação nacional, algo que devia há muito estar pensado para aplicação. Porém, o objetivo são as taxas de execução dos fundos europeus, para fazer figura nos quadros do Eurostat, o que tem também a vantagem de deixar espaço televisivo aos “esgrimistas” parlamentares. Já o impacto futuro da aplicação do PRR e similares, é coisa para os vindouros.

Sob a capa do risco sistémico, chavão anestesiante em voga, salvou-se alguma banca que devia ter sido anestesiada definitivamente - ou eutanasiada, usando o léxico em vigor. Debaixo do slogan do crescimento económico, entregaram-se as democracias aos mecanismos dos mercados, reduzindo a dimensão as classes médias e empobrecendo os países mais vulneráveis, entre os quais nos contamos.Um dos instrumentos da corrente anestesia geral é a burocracia, aquela que o famoso Simplex visava melhorar, mas pelos vistos, piorou. Não há transição digital que salve um país de Administração viciada, Justiça em crise permanente, ou Finanças e Economia desentendidas. Uma aposta nas competências, em vez do cartão partidário, talvez ajudasse, mas estamos longe disso. Li algures que “Portugal é para espertos e para os do partido”, e que “Em Portugal digitalizou-se a burocracia, dando milhões às consultoras”, ou que “um funcionário público que trabalhe bem ou mal, ganha o mesmo”. No Reino Unido, segundo a mesma fonte de informação, “não existem Repartições de Finanças e tudo funciona às mil maravilhas, foram eliminadas e tudo funciona com um profissionalismo eficiência incríveis”. Era oportuno que os portugueses se lembrassem de realidades como estas, na altura de colocar na urna o boletim de voto.Apesar do Estatuto de Região Autónoma, os Açores continuam espartilhados pela burocracia nacional, agravada pelo suplemento da regional, o que qualquer cidadão pode constatar diariamente. Era tempo de assumirmos a responsabilidade das mudanças, para que a Lua da Autonomia não seja minguante, quando cresce, ou pareça crescente, quando está minguante.

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Categorias: Opinião

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