In MEMORIAM

A entrevista do Padre Cipriano Pacheco como Jesus na Páscoa de 2005 : Se Ele hoje andasse por aqui, que diria?

Entrevistar Jesus

Quem não gostaria de poder entrevistar Jesus Cristo, o Homem que mais nos disse acerca de Deus? E quem não O admira, ainda que não acredite na Sua origem divina?
Nós atrevemo-nos a imaginar umas perguntas que Lhe faríamos se Ele estivesse por cá acessível à curiosidade da imprensa, em vez de Se revelar apenas no mais íntimo daqueles que O procuram de coração limpo. Respondeu em Seu nome um teólogo nosso amigo. E a conversa tornou-se num momento de grande beleza literária e de um suavíssimo sentimento cristão. Provavelmente, se nos sentássemos a dialogar com Jesus num remanso qualquer do Mar da Galileia, não seria muito diferente disto

 Há 17 anos, era eu proprietário e editor do jornal “Correio do Norte”, iniciámos a publicação de uma pequena série de entrevistas, ditas e, reconhecidamente, improváveis e, portanto, só possíveis na nossa imaginação. Na minha e na do, ao tempo, redactor-mor, Daniel de Sá. Assim, e só para citar algumas, entrevistámos, pelo Natal, os Reis Magos e, pela Páscoa do ano de 2005, Maria Madalena e Jesus. No que diz respeito à entrevista a Jesus Cristo (Se Ele hoje andasse por aqui, que diria?), as questões foram postas a um teólogo, amigo e pensador, que, em nome d’Ele e por Ele, respondeu com a sabedoria, o entusiasmo, o encanto e a profundidade teológica de que, ora, podemos voltar a desfrutar.
Esse amigo, que, na altura, nos pediu para manter o anonimato, era o Padre Cipriano Franco Pacheco, o" Jesus" que nos respondeu e que acabou de nos deixar, definitivamente, há dias.  Creio ser uma forma de o homenagearmos, promovendo a republicação desta peça jornalística, na esperança de que possa servir para mitigar um pouco a sua ausência e melhorar a vivência dos conturbados dias que atravessamos.
Também Daniel de Sá nos deixou. Já em 2013. Muita falta nos faz os dois.
Carlos Sousa, 28 de Setembro de 2022

 

Se Ele hoje andasse por aqui, que diria?

 Incomoda-o que haja tantos romances de ficção sobre a Sua vida?
Pois, olhem, que não me incomoda nada. E sabem porquê? É que a maior parte do tempo que vivi entre os meus conterrâneos, levei uma vida super-normal. Nasci em Belém, donde se dizia que nada de relevante sairia dali. Fui apresentado como um “filho de um carpinteiro” e de uma mulher de nome Maria, bem conhecidos de todos os da minha aldeia.
Por outro lado, também não fui escritor. Não deixei nada escrito. A única vez que escrevi, foi no chão, a propósito de uma mulher acusada de adultério. Mas, decerto que alguém passou por cima dessa escrita, e pronto.
Foi assim que, durante cerca de 30 anos, a minha vida foi tão obscura que, posteriormente, até foi designada como uma “vida oculta”.
Por tudo isso, é que, não me espanta nada que, quem pretender inventar coisas sobre a minha vida, seja para romances de ficção ou para simples histórias mais ou menos edificantes, tenha sempre campo aberto para esse efeito.
O que me apetece dizer é que estou grato àqueles que conviveram comigo durante os últimos anos da minha vida na terra e que sentiram que a experiência que vivemos juntos mudou as suas vidas, tendo vislumbrado ali, o que seria viver neste mundo ao jeito de Deus. Isso fez com que alguns deles, dentro das suas possibilidades e sem pretensões de rigor histórico sobre a minha vida, preferissem deixar aos vindouros o necessário para perceberem o significado que para eles tiveram as palavras, os acontecimentos e o convívio que nos uniu.
Eis aí o que mexeu tanto com eles que foram capazes de se tornarem mártires do que viram e ouviram. É por isso que, para mim, acho que, quem me quiser conhecer de verdade, basta que escute o que os meus amigos deixaram nos chamados “evangelhos”, já que, escritos de ficção a meu respeito, sempre houve e, certamente, continuará a haver.
 
E a proliferação de seitas em seu nome?
 Quanto à proliferação de seitas em meu nome, embora não ache grande piada, penso que era inevitável. É que, como escreveram os meus amigos dos quatro evangelhos, o que eu fiz, disse e propus não o fiz de mim mesmo, isto é, fi-lo na condição de “Enviado”, ou seja, em nome d’Aquele que me enviou, a saber, o Deus-meu-Pai que me mandou como seu filho.
Ora, nestas coisas de Deus e da religião, as pessoas têm a tentação de ter um Deus e uma religião à sua medida, que lhes dê segurança, certezas absolutas, respostas feitas de uma vez por todas a que se possam agarrar como a lapa à pedra. Precisamente, o Deus que me enviou é um Deus que não se deixa manipular nem fica sob o controlo de ninguém. É um Deus que se deixa encontrar a quem se dispõe a procurá-lo sempre. Ora, isso é um pouco exigente e desinstala-nos. As seitas não gostam disso. Querem ter uma bitola certa, única e segura onde Deus se encaixe e os seus membros se sintam dispensados de se pôr em causa no modo como vivem a sua relação com Deus. Eles estão sempre e só certos. Errados estão sempre os outros. Foi por isso que preferi que os meus seguidores vivessem em forma de “Igreja” e não de “seita”. É que, “Igreja” é assembleia, reunião que inclui a diferença na prática da mesma fé e a pluralidade de caminhos de acesso ao mesmo Deus, coisa que não é possível numa “seita”.
 
Há quem julgue que andou com os essénios. Que pensa deste grupo religioso?
É verdade que conheci os essénios – uma espécie de monges refractários e críticos de um certo modo de viver a religiosidade centrada à volta do Templo de Jerusalém – e admirei muito o esforço ascético a que se entregavam, tentando emprestar rigor a um outro modo de viver a fé judaica. Sujeitavam-se a muitos rituais de purificação demonstrando que podiam viver a fé sem dependência das práticas institucionais típicas do templo de Jerusalém.
Contudo, apesar de os admirar, não me identifiquei com o seu posicionamento religioso, enquanto marcado por um acentuado rigorismo e radicalismo em termos religiosos e ascéticos.
Para mim, sempre foi claro que sobriedade de vida não é incompatível com o gosto de viver e de ser feliz. Sempre achei que a vida, por vezes, nos leva a ser capazes de sofrer ou sacrificar-nos por amor, mas nunca fui a favor do amor do sacrifício nem do sofrimento. Talvez por isso, ao contrário dos essénios, chegaram a apelidar-me de “glutão” e de não andar sempre a fazer a apologia dos “jejuns” e penitências, a propósito de tudo e de nada
 
Ainda lhe parece que valeu a pena o que sofreu por ter sido o mensageiro de Deus?
 Claro que, apesar de todos os descaminhos e desvios que em meu nome se cometeram ao longo dos tempos, por aqueles que se reclamam de mim, acho que valeu a pena ter passado por tudo o que passei. Primeiro, porque inumeráveis foram e são os que procuraram andar pelos meus caminhos. Em segundo lugar, porque, vivendo o que vivi, deixei uma porta aberta de uma vida outra – marcada pelo sentido do dom – ao alcance de todos os que queiram entrar ou sair por ela.
 
Quando pensa em nós (e pensa sempre, sem dúvida), fá-lo como Deus ou como Homem?
Se alguma coisa me distinguiu entre todos os seres humanos foi o ter revelado o jeito divino de viver o humano. Daí que em mim, não consigo separar o humano do divino pelo que, quando penso em tudo o que é humano, não consigo fazê-lo senão com os olhos da carne que o divino fez seus.
 
Como sentiu o abandono de dez dos doze que escolhera, sendo que o único que se insurgiu contra a sua condenação foi aquele que o entregou à prisão? (E só as mulheres que o seguiram desde a Galileia o acompanharam até ao fim...)
Ninguém gosta de se sentir abandonado pelos que lhe são mais próximos, sobretudo nos momentos difíceis e decisivos da nossa vida. É uma experiência muito dolorosa. Mas foi, precisamente, a minha experiência do que é o ser humano que me fez compreender até onde pode ir a fragilidade humana. Realmente, só um grupo de mulheres nunca me abandonou ou esteve comigo até ao fim. Foi isso que ninguém esperava e que muita gente, incluindo romancistas, custam a engolir. É que, comigo, as mulheres fizeram a diferença. Elas que, no meu tempo e no meu país, nem sequer eram dignas de aprender e de se instruir na “Lei”, nem podiam ser discípulas de nenhum Rabino e, muito menos, servir de testemunhas num tribunal, fizeram-se não só minhas discípulas e, mais do que isso, foram as primeiras testemunhas da minha Ressurreição. Foram elas que a anunciaram aos meus discípulos. Tivesse eu me limitado a casar com a Madalena ou outra qualquer delas, como seria de esperar, e os romancistas ter-se-iam desinteressado completamente dos meus problemas afectivos. Como não andei sempre pelos trilhos do costume, toca de inventar...
 
Que lhe parece mais tolerável: um ateu honesto ou um cristão água morna?
Uma das indicações que deixei aos meus amigos foi que não julgassem para não serem julgados e que não pusessem os “bons” para um lado e os “maus” para o outro. Dito isto, acho que um “ateu honesto” tem sempre, pelo menos, uma vantagem sobre um “cristão água-morna”, que é a de não invocar o meu nome em vão e, assim, não se enganar a si nem a ninguém.
 
Os que tentamos seguir os seus ensinamentos somos mesmo só cristãos ou judaico-cristãos?

Não posso negar que sou judeu de origem e foi na Religião Judaica que cresci na fé bíblica de Abraão, de Moisés, dos Patriarcas e dos Profetas. Simplesmente, O Judaísmo representou uma determinada interpretação e modos de expressão daquela fé, que, no domínio religioso, levaram a muitas perversões e a uma determinada visão de Deus que não era a d’Aquele que me enviou. Daí os muitos problemas que tive com a ortodoxia religiosa judaica e com a instituição sinagogal. A instituição religiosa judaica não me reconheceu, fui rejeitado até ao ponto que se sabe e, depois, os meus seguidores judeus acabaram por ser expulsos da Sinagoga pelos mesmos motivos. Assim é que, apesar das raízes comuns com a Religião Judaica, o caminho cristão, o que eu segui, é diferente. De resto, a minha ressurreição foi o modo encontrado por Deus-meu-Pai para dizer ao mundo que o caminho que eu segui não foi o do particularismo judaico, mas uma via capaz de ser seguida por gente de todas as nações em pé de igualdade.  
 
Agora, para terminar a nossa entrevista, peço-lhe uma mensagem especial para as crianças, os jovens, os adultos e idosos de hoje.
Por tudo o que vivi, é que continuo a dizer às crianças de hoje que não tenham medo de ser generosas e não calculistas.
Aos jovens, que tenham a ousadia de ir além do sempre-o-mesmo.
Aos adultos, que aceitem o risco da fé como a aventura das suas vidas com Deus.
Aos idosos, que não tenham receio de testemunhar o gosto pela vida e de ir com confiança ao encontro do Deus da vida.
 

Entrevista preparada por Daniel de Sá e Carlos M. Sousa.
 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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