Como prometi ao concluir o artigo anterior, vou transcrever o Projecto-lei n.º 86 – B, tal como consta da acta do Diário das Sessões da Câmara dos Deputados.1 Ei-lo: ‘Sala da Câmara dos Deputados, 16 de Junho de 1852 – João José da Silva Loureiro, Deputado pela Ilha de São Miguel. Foi admitido e remetido às Sessões. / PROJECTO DE LEI N.º 86— B— Senhores: É um acto verdadeiramente justo elevar as povoações à categoria que lhes compele pelo estado do seu desenvolvimento intelectual e material, e pela sua extensão e riqueza, porque o título de cidade deve ser considerado como o prémio devido às terras que mais se têm avantajado, pela glória do trabalho e da civilização, muito embora os seus habitantes não gozem por isso de mais foros. / É com este poderoso e fecundo estímulo que pequenos Lugares se têm elevado a Vilas, e a Cidades florescentes; e por consequência os interesses do País exigem que ele se empregue todas as vezes que a justiça o recomendar. / Eu não conheço, Senhores, Vila alguma que tenha melhores títulos, do que a Vila da Ribeira Grande da Ilha de S. Miguel, para dever ser elevada a Cidade, e por isso com o oferecimento desta proposta não faço senão cumprir um acto de justiça. / Esta Vila tem um quarto de légua de comprimento sobre outro de largura; e se compreendermos a Ribeira Seca, e a Ribeirinha, que se acham contíguas; e se devem considerar como subúrbios dela, abrange mais de uma légua de extensão. / A sua população, sem compreender a dos referidos subúrbios, é de quase oito mil almas, e tem cinquenta e seis ruas. O seu Concelho tem sete grandes Freguesias, quinze lugares, e dezanove mil quatrocentos e vinte e quatro habitantes; e a Comarca de que ela é sede abrange três Julgados. / Alem disto tem esta Vila grandes edifícios e belas ruas, e possui duas sociedades de instrucção e de recreio, que são documentos da sua civilização. / Por todas estas razões tenho a honra de apresentar o seguinte Projecto de Lei. / Artigo 1.º É concedido pela presente Lei o título de Cidade à Vila da Ribeira Grande da Ilha de S. Miguel. / Artigo 2.º Fica revogada a Legislação em contrário. / Sala da Câmara dos Deputados, 16 de Junho de l852. — J J. da S. Loureiro, Deputado pela lha de S. Miguel. Foi admitido e remetido às Sessões.’2
Enquanto transcrevia o texto, vi que se podia dividir em duas partes: um preâmbulo, que justifica a proposta, e dois artigos, que pretendem ser o seu culminar lógico. Dispensando estes de outra explicação, irei concentrar-me na análise do preâmbulo. Antes, porém, para conferir ordem à narrativa, arrumei os temas que identifiquei em torno de eixos: A) Urbanismo – Da Vila; B) Demografia – Da Vila; C) Divisão Administrativa – No Contexto da Ilha. Um quarto eixo: D) Progresso Intelectual, e um quinto E) Progresso Material, mercê da sua complexidade e importância, serão tratados no próximo artigo (III). Quero comparar esses indicadores com os de igual natureza das cidades de Angra, de Ponta Delgada, da Horta e de Vila Franca. Para quê? Para tentar conhecer a posição relativa da Ribeira Grande, enquanto candidata a cidade, no contexto das cidades ao tempo existentes nos Açores e de Vila Franca, sua rival mais próxima. Não conhecendo, para esse período, qualquer legislação regulatória de elevação de Vilas a Cidade, resta-me essa abordagem. Que valor terá essa comparação? Não irá além de uma informação (inicial) indicativa. Ainda assim, útil. Creio.
Começo pelo eixo A-Urbanismo – Da Vila da Ribeira Grande: ‘Esta Vila tem um quarto de légua de comprimento sobre outro de largura; e se compreendermos a Ribeira Seca, e a Ribeirinha, que se acham contíguas; e se devem considerar como subúrbios dela, abrange mais de uma légua de extensão.’ Recorrendo ao Sistema de Informação Geográfico (SIG), com o apoio já habitual dos colegas André Franco e Manuel António Ferreira, confirmei (mais ou menos) a dimensão urbana atribuída por Loureiro à Ribeira Grande.3 Seguiu-se a comparação com Ponta Delgada (da Calheta, a Nascente, a Santa Clara, a Poente), com Vila Franca, Angra e da Horta (das Angústias a Poente à Conceição a Nascente). Resultado: valores sensivelmente aproximados aos atribuídos à Ribeira Grande. Dizendo respeito à Ribeira Grande, a Vila Franca e a Ponta Delgada, conhece-se uma entrada do diário da Norte-Americana Elisa Nye. Indo almoçar à Ribeira Grande, no dia 25 de Outubro de 1847, Nye registou: ‘[a Ribeira Grande] é muito maior do que Vila Franca, sendo a segunda [depois de Ponta Delgada] em tamanho na Ilha.’4
‘E tem [a Vila da Ribeira Grande] cinquenta e seis ruas,’ continuou Loureiro. Para o confirmar, recorri aos Róis de Confessados de 1852 das (então) duas paróquias da Vila da Ribeira Grande. Nos Róis de Nossa Senhora da Conceição (com a ajuda da colega Lucélia Furtado) contabilizei dezassete ruas; nos da de Nossa Senhora da Estrela, cheguei a trinta ruas, o que somado, perfaz o número de quarenta e sete ruas. Faltam ainda encontrar nove ruas para completar as cinquenta e seis avançadas por Loureiro. Como explicar a diferença? Não consegui consultar os Róis do então Curato do Santíssimo Salvador do Mundo – Ribeirinha. No entanto, pelo que conheço de investigações anteriores, sei que existiam aí ruas que seguramente completam as cinquenta e seis de Loureiro.5 Para a Horta, Ponta Delgada e Angra, nem pesquisei.6 Ainda que não tenha apurado outros dados quantitativos de ruas, além dos da Ribeira Grande, recorrendo a testemunhos escritos, é possível ficarmos com uma ideia aproximada da importância relativa das ruas da Ribeira Grande no contexto da ilha de São Miguel e dos Açores. Talvez à volta do ano de 1890, ao comparar a Vila da Ribeira Grande com as Vilas dos Açores e com a cidade de Ponta Delgada, Guilherme Read Cabral (1821-1897) é bastante claro: ‘a Ribeira Grande é a primeira Vila dos Açores. – Ponta Delgada não possui uma rua como é a rua direita da Ribeira Grande. Extensa, espaçosa e bem calçada, vai de um a outro extremo da Vila.’ Read era inglês de nascimento e português de cultura, sobrinho do cônsul inglês na Ilha de São Miguel. Já em 1839, os irmãos Bullar o haviam dito: ‘(…) Na Vila cujas ruas são mais largas e limpas do que as de Ponta Delgada (…).’7 O que confirmará Loureiro, quando diz ‘tem esta Vila (…) belas ruas.’ De Ponta Delgada, em 1852, o jornalista continental José Carlos Caldeira (1811-1882), excelente conhecedor do mundo português, disse: ‘A cidade é vasta, asseada, e pela sua riqueza, trato, e comércio é a terceira da monarquia.8 No entanto, Read tinha outra apreciação: ‘nem é cidade, nem é aldeia; ou é uma e outra coisa. Junto à casa solarenga, a humilde habitação baixa, térrea e pobre do camponês, do jornaleiro, e do pescador: tudo em promiscuidade. Não pode pois aspirar nunca a ser cidade distinta.’9 Em 1949, o insuspeito Francisco Carreiro da Costa diria outro tanto.10
‘Tem esta Vila [Ribeira Grande] grandes edifícios (…).’ O que à época achariam disso? Descobrimos duas opiniões que se aplicam à generalidade da realidade açoriana. Existirão outras, claro. A de Francisco Arruda Furtado (1854-1887), em texto de 1880. Referindo-se à ilha e não só, manifesta o seu profundo desagrado pela ‘arquitectura dos edifícios públicos testemunha da falta absoluta de gosto das nossas classes dirigentes passadas: os templos e as casas da Câmara são os piores que há pelos Açores.’11 E a de Manuel Faria Marques (1880-1950), artigo de jornal de 1910, que não fica atrás da de Arruda Furtado. Referindo-se à fonte quinhentista da Ribeira Grande, demolida pouco depois, escreve com cargas de ironia e profundo desdém: ‘(…) aquela obra monumental, coeva dos Visigodos, arquitetada sob um estilo groenhandico (…).’12 No que toca ao património edificado, pelo que sabemos de Leite de Ataíde, de Carreiro da Costa e de Nestor de Sousa, entre outros que estudaram as demais ilhas, não haveria grande distância entre Ponta Delgada, Vila Franca, Horta e Ribeira Grande. Angra seria uma excepção? Sim.
B-Demografia – Da Vila. Loureiro, de forma vaga, bastante imprecisa, adianta que ‘a sua população, sem compreender a dos referidos subúrbios,13 é de quase oito mil almas.’ 14 O censo de 1849 foi o primeiro realizado em moldes modernos nos Açores.
Os mapas com os resultados haviam dado entrada na Câmara dos Deputados a 19 de Fevereiro de 1851. Loureiro não o teve em conta, como se depreenderá. Não existem dados demográficos para os anos de 1851 e de 1852, no entanto, o Censo da População dos Açores de 1849, para as duas freguesias da Vila, Conceição e Matriz (que inclui a Ribeirinha), regista 7 189 pessoas.15 Ainda assim, número que não anda longe dos ‘quase oito mil,’ avançados por Loureiro. Porém, se acrescentássemos aos 7.189 (soma da Conceição e da Matriz) os 2.728 habitantes de São Pedro (Ribeira Seca), já contígua à Conceição, e que em 1981 iria fazer parte da Cidade, a população dispararia para 9.917.16 Conforme diz Loureiro: ‘se compreendermos a Ribeira Seca, e a Ribeirinha, que se acham contíguas; e se devem considerar como subúrbios dela.’ 17
E se (fiando-me nos números do censo de 1849) comparar a população da Vila da Ribeira Grande com a das três cidades capitais de Distrito? A cidade da Horta, cidade há dezasseis anos, com 7.053 habitantes, fica ligeiramente atrás da Vila Ribeira Grande.
A cidade de Angra, que inclui São Bento, com 11. 230, ficava muito à frente da Ribeira Grande. No entanto, a diferença justificava-se: além de ser já cidade há 515 anos, e de ser sede de Distrito, era igualmente sede do Bispado. O que, obviamente, atrairia população. Ponta Delgada, com 13.855 habitantes, ficava ainda mais à frente. No entanto, a justificação é a mesma da de Angra: era cidade há 303 anos e sede de Distrito. Lá havia o porto, a fortaleza e a alfândega. E a Vila rival da Ribeira Grande? Vila Franca apresenta 6.120 pessoas, um número visivelmente inferior à Ribeira Grande.18
C-Divisão Administrativa – No Contexto da Ilha - ‘E a Comarca [da Ribeira Grande] de que ela é sede abrange três Julgados.’ 19 Uma explicação: da Comarca da Ribeira Grande, faziam parte as vilas da Ribeira Grande, das Capelas e do Nordeste. Existindo mais duas na Ilha, a de Ponta Delgada e a de Vila Franca. Ainda que Ponta Delgada se situasse num patamar político e administrativo superior à Ribeira Grande, e esta dispusesse de vantagem sobre Vila Franca, havia partilha do poder da ilha em três polos. Essa partilha torna-se ainda mais evidente se se acrescentar que ainda dividiam entre si as três Ouvidorias Eclesiásticas da Ilha e dispunham das únicas Misericórdias e dos únicos hospitais da Ilha. Ainda mais, a Ribeira Grande (em 1856), e Vila Franca (em 1861) disporiam de um círculo eleitoral. Ponta Delgada mantivera o monopólio até 1856.20 Vindo certamente dos tempos da ‘grande Ouvidoria,’ que então abrangia a quase totalidade da costa Norte da Ilha, o título de capital do Norte - hoje pura ironia e motivo de troça -, virá possivelmente também do facto de o Julgado da Ribeira Grande abranger toda a costa Norte das Bretanhas ao Nordeste.
O que concluir do que já se disse? De forma provisória, pelos padrões da época a Ribeira Grande seria uma muito normal candidata a Cidade. A reforçar esta ideia de normal candidata, a aceitação da proposta e o seu envio para as secções pela Câmara dos Deputados. Ou pelo governo para uma segunda leitura. Em Outubro de 1863, Supico escreveu: ‘Com tamanha população, riqueza e progresso, a Vila da Ribeira Grande excede a algumas povoações portuguesas condecoradas com títulos de cidade.’21 José Carlos Caldeira, no Verão de 1852, colhendo e ouvindo certamente as opiniões das pessoas, deixa-nos ficar com a ideia de que pairava no ar a expectativa de a Vila ser proximamente Cidade: ‘Vila da Ribeira Grande, importante povoação que pode pretender os foros de Cidade.’22 Como é referido no preâmbulo, ‘com este poderoso e fecundo estímulo,’ ainda iria florescer mais, a exemplo do que acontecera a Angra, a Ponta Delgada e à Horta, digo eu.
No próximo artigo (III), analisando os eixos D (progresso intelectual) - E (progresso material) do preâmbulo da proposta de 1852, estou em crer, se reconfirmará a naturalidade da candidatura da Ribeira Grande a Cidade.
Mário Moura
Historiador