Gualter Furtado, Presidente do Conselho Económico e Social no ‘Gerações’

“Vivemos hoje numa sociedade em que o perigo espreita em cada esquina e em cada rua”

 Correio dos açores - Como se cuidam as gerações nascidas nas décadas de 50, 60 e 70 e quais as diferenças que sentem nas gerações nascidas no novo milénio? No trabalho?
Gualter Furtado (Economista, Presidente do Conselho Económico e Social dos Açores) - Diria que as gerações de açorianos nascidas nas décadas de 50, 60, e até meados de 70, vieram a este mundo num regime político e realidade económica e social muito diferente das gerações que já nasceram no presente milénio. Esta realidade condicionou, sobremaneira, as opções e mesmo as oportunidades que as diferentes gerações de açorianos tiveram.
O antes 25 de Abril, nos Açores, por exemplo, para  a maioria dos açorianos com quem convivi mais, foram muito marcados pela ruralidade, uma grande taxa de analfabetismo, uma elevada taxa de mortalidade infantil, com muito poucos a terem acesso ao ensino secundário, e muito menos ainda ao ensino superior. Acresce que o garrote da incorporação militar foçada pela guerra colonial que se vivia então, quase que empurrava as famílias açorianas e os jovens para a saída da emigração.
Os que tinham acesso aos cursos técnicos e comerciais da Escola Industrial e Comercial, graças à excelente formação que recebiam, facilmente conseguiam emprego. Por outro lado, a Autonomia Constitucional também veio nas primeiras décadas alargar o mercado de trabalho, mesmo aos não qualificados, ao contrário do que acontece hoje, já que o sector público administrativo e empresarial nos Açores  tem mais dificuldade, presentemente, em absorver recursos humanos, embora seja evidente a necessidade de renovação face ao envelhecimento que se verifica em alguns serviços e unidades, como por exemplo na Universidade dos Açores.
A geração deste milénio tem mais formação académica, mas isto não tem sido suficiente para fixar mais jovens qualificados na nossa Região, e muito menos atrair os muitos jovens açorianos que foram e vão estudar para o continente português, sendo que, alguns deles são brilhantes nas suas especialidades e estão a engrossar o talento no exterior. Isto é, de facto, um problema que em parte a nossa pequena dimensão, dispersão e afastamento dos grandes centros ajuda a explicar, mas não explica tudo, e deveria ser matéria de reflexão permanente nos Açores.

Nas viagens?
 Os jovens da minha geração viajavam pouco, muitos deles só saíram da ilha para combater na guerra colonial, ou, para a emigração e muito poucos para tirarem cursos superiores no continente. Uma ida a outra ilha era motivo de festa, então para o continente, constituía uma situação excepcional.
 A geração nascida no actual milénio teve oportunidade para conhecer todas as ilhas, viajar para o continente com muita frequência e até para o estrangeiro. Estou, por exemplo, a lembrar-me dos programas Erasmus que facilitaram o intercâmbio para centenas de jovens. Os jovens de hoje, neste capítulo das viagens, tiveram muito mais facilidades de circulação e de conhecer outras realidades geográficas e humanas diferentes das nossas.

Na família?
 Nos Açores, as gerações antes do 25 de Abril foram criadas no Estado Novo, sem praticamente apoios sociais como os que existem hoje. Aliás, os primeiros ensaios, por exemplo, de assistência social, só ocorreram na ‘Primavera Marcelista’, com a tentativa de modernização e descompressão do corporativismo, introduzindo algumas medidas de assistência social, apoios aos bolseiros das juntas gerais, mas nada com que se compare com o que foi implementado na Autonomia Democrática.
Ora, neste quadro económico e social do antes do 25 de Abril, foi fundamental a solidariedade das famílias e dos vizinhos nos Açores para mitigar as dificuldades que então se viviam. Muitas vezes, por exemplo, numa situação de viuvez, a família e até os vizinhos tomavam e assumiam a responsabilidade de criar os filhos dos viúvos e viúvas. Hoje, a realidade é bem diferente, existem mais instituições sociais e a própria família tem mais rendimento e instrumentos de apoio  ao seu dispor, mas está mais desestruturada e tendencialmente menos solidária, embora o povo açoriano, mesmo nos dias de hoje, possa ser considerado - e apesar de tudo - um povo solidário, sinal de que ainda na sua matriz cultural não perdeu totalmente as suas raízes, e que foram muito moldadas pela geografia e vivência nestas Ilhas.

Nos amigos?
Os  amigos da minha geração eram amigos de uma vida, julgo que brincávamos mais, falávamos mais uns com os outros. Presentemente, nota-se mais individualismo e solidão, fruto de uma sociedade tecnologicamente mais evoluída, em que as máquinas e as comunicações substituem cada vez mais as relações humanas. Naturalmente, que em todas as épocas e gerações em análise, existiram e existem excepções.

 A relação com a internet?
As gerações de 50, 60 e parte de 70, só muito recentemente tomaram contacto com a internet. Por exemplo, quando estudei na Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada, as nossas máquinas de calcular eram todas manuais, e a maioria das contas eram “feitas de cabeça”, como se dizia na altura. Só no Instituto Comercial de Lisboa, e principalmente na Universidade, em Económicas, tomei contacto com as primeiras máquinas de calcular eléctricas, nada com o que se parecesse com um computador de hoje.
Por outro lado, os computadores eram gigantes comparados com os de hoje e o acesso a eles muito limitado.
Quero crer que um jovem destas gerações mais recentes deve ter dificuldades em imaginar os meios tecnológicos que então dispúnhamos. Em síntese, diria que nesta matéria da internet a diferença entre gerações  é abismal.

A relação com os filhos?
Os meus pais e os dos meus amigos fizeram o melhor que puderam e souberam para nos educar, mas a nossa relação era muito formal; jamais os tratava na primeira pessoa, como ouço  e vejo hoje. Acresce que na nossa educação existiam temas que pura e simplesmente não falávamos, eram tabu, e que felizmente hoje são explicados e até discutidos pelos pais com os filhos, como por exemplo a sexualidade.
 Nas gerações mais antigas não havia o flagelo das drogas, como existe hoje, e nesta tragédia, tenho um grande respeito e mesmo admiração por todos os esforços e luta que os pais destas gerações mais recentes fazem para proteger os filhos, infelizmente, nem sempre com sucesso.
Vivemos hoje numa sociedade em que o perigo espreita em cada esquina e em cada rua, a criminalidade é já uma realidade e preocupante. Isto resulta, em parte, de muita pressão desviante sobre os jovens. Estamos perante uma situação que exige muito diagnóstico, muita acção e muita parceria.

A relação com os netos?
 A minha relação com os meus avós paternos e principalmente com o meu avô Manuel Furtado foi extraordinária, e explica muito da minha forma de ser e estar na vida. Aprendi muito com ele, ele foi o meu melhor amigo.
Infelizmente, não tenho ainda a experiência de ser avô.

 O modo de vestir?
 Muito diferente. Sou de um tempo em que parte da roupa melhor era feita pelo alfaiate, e também vinha da América, ou, das Bermudas num barril que, quando chegava a casa, era motivo de grande festa. As gerações mais antigas vestiam as roupas usadas dos irmãos. A minha mãe era extraordinária e fazia um grande esforço de poupança para, de vez em quando, comprar uma roupa de marca, o que não estava ao alcance da maioria das famílias açorianas. Sou também do tempo em que muita gente andava descalça e com roupa remendada.
Hoje tudo é diferente, praticamente os alfaiates desapareceram, foram substituídos pela produção em série e, embora subsistam nos dias de hoje muitas dificuldades para algumas famílias, o acesso a este tipo de bens está mais democratizado e em grande escala. Em síntese, sou do tempo dos Beatles, das calças “à boca de sino”, das roupas remendadas, enquanto que hoje é moda os jovens vestirem calças rasgadas. No entanto, a roupa clássica tem atravessado gerações.   

A alimentação?
Na alimentação o acesso a determinados produtos, ontem tal como hoje, era e é feito em função do rendimento disponível das famílias, mas de uma forma quase generalizada antigamente ele era marcado pelo autoconsumo. Neste contexto, a carne de porco criado em casa era fundamental para o sustento da família, os produtos agrícolas produzidos em casa também, e os chicharros faziam parte quase diariamente da nossa dieta alimentar. A carne de vaca comia-se menos do que hoje e as galinhas eram só para quem tinha galinheiro. Hoje, tudo é comprado, a oferta é mais diversificada, existe muito mais informação disponível sobre o que comer e como comer, a publicidade é impressionante, o consumismo é muito maior, e a comida estandardizada é quase a regra. Em média acho que hoje a dieta alimentar é mais rica, o que não significa sempre ser mais saudável.
                                                   
                                              

Print
Autor: João Paz

Categorias: Regional

Tags:

Theme picker