Poliomielite é uma doença viral que já afectou crianças açorianas e que levava os pais a esconder os filhos para não serem infectados

Uma vez que se aproxima o dia 24 de Outubro, o Dia Mundial da Erradicação da Poliomielite, o Rotary Club de Ponta Delgada organizou ontem um almoço-conferência, contando com a pediatra Joana Fortuna como convidada especial para assinalar esta data importante para todos os clubes Rotary espalhados pelo globo, uma vez que estes são parceiros da Iniciativa Global da Erradicação da Pólio, e que anualmente, através da sua Fundação, doam cerca de 50 milhões de dólares para esta causa, valor este que é depois duplicado pela Fundação Melinda e Bill Gates.
Conforme explicou a médica especialista em Pediatria no Hospital do Divino Espírito Santo, a poliomielite é transmitida pelos vírus poliovírus. No total, conta-se a existência de três estripes, duas delas entretanto extintas, deixando uma estripe em circulação até aos dias de hoje, afectando sobretudo o Afeganistão e o Paquistão.
A transmissão deste vírus, conforme adiantou a médica, dá-se por via fecal-oral, ou seja, através do vírus que se encontra “nas superfícies das mãos em contacto com a boca ou através de secreções respiratórias”. Uma vez que entra no organismo, o poliovírus aloja-se nas vias respiratórias ou no trato gastro-intestinal, acabando, muitas vezes, por atingir o sistema nervoso central.
“A partir desse momento podemos, ou não, desenvolver uma meningite, ou seja, uma inflamação de todo o sistema nervoso central”, refere Joana Fortuna, indicando ainda que embora esta infecção possa ser combatida pelo sistema imunitário da pessoa infectada, casos existem em que ocorre a destruição das células motoras neuronais, originando paralisia que pode ser recuperada totalmente, parcialmente, ou não haver recuperação de todo.
“Pode haver paralisia de uma perna, de todos os membros inferiores, inferiores e superiores e, infelizmente, também pode afectar os músculos responsáveis pela respiração e pela alimentação, ou seja, pode ser uma infecção potencialmente fatal”, esclarece ainda a médica pediatra, salientando que um “panorama menos favorável da doença” ocorre em cerca de 10% dos casos, sendo que outra parte das pessoas que apanha este vírus acaba por ser assintomática. Nestes casos, “o organismo é capaz de eliminar o vírus e ele acaba por passar despercebido”.
Para além da vacina, anunciada a 12 de Abril de 1955, importante recurso no combate a esta doença – também conhecida como “paralisia infantil” – não existe, “infelizmente”, nenhum tipo de tratamento para a poliomielite: “não temos um anti-vírico, nem temos um medicamento que tente reparar a destruição das células neuronais. O tratamento que existe é de suporte, através da utilização de canadianas para melhorar a mobilidade, através de cirurgias ortopédicas, através de próteses e de fisioterapia, ou, como em alguns casos, através da necessidade de ventiladores ou sondas para garantir a nutrição desses doentes”, adiantou a convidada para o almoço-conferência.
Depois da infecção aguda, os dados reunidos a nível mundial através dos vários estudos elaborados apontam que, em 50% dos casos, deverá ocorrer uma recuperação completa. Porém, em 25% dos casos existirá uma recuperação parcial e, nos restantes 25%, assume-se que possam existir défices motores.
Por outro lado, foi devido a esta doença que foi inventada a medicina intensiva, levando à invenção do “pulmão de aço”, em 1929, construído de forma a garantir os movimentos respiratórios e a ventilação da pessoa infectada com poliomielite, numa fase da doença em que estas capacidades estavam comprometidas. Contudo, na maior parte dos casos, as pessoas permaneciam no pulmão de aço até à hora da sua morte – “todo o corpo do doente era colocado dentro desta máquina, só a cabeça ficava de fora, era gerada uma pressão negativa que garantia os movimentos respiratórios e a ventilação”, explica.
Embora muitos possam pensar que esta é uma doença erradicada, no Afeganistão existem cerca de 10 casos por ano, número este que apesar de parecer “muito pouco”, tem um “extremo impacto, especialmente na pediatria, nas crianças que podem ficar paralíticas e que podem até morrer”.
Por este motivo, o objectivo de várias associações e organizações, como o caso da Organização Mundial de Saúde (OMS) é erradicar a doença através da vacinação, como tem também promovido o Rotary Club de Ponta Delgada, tendo em conta que esta é “extremamente eficaz”, embora existam “países mais pobres em que o acesso à vacina ainda não é totalmente garantido”.
Por outro lado, embora não existam ainda dados concretos relativamente a este assunto, Joana Fortuna acredita que também a Covid-19 tenha dificultado o processo de vacinação em todo o mundo, o que poderá trazer consequências relativamente à propagação desta doença, sobretudo nos países mais desfavorecidos, tendo especialmente em conta que entre Março e Junho de 2020, “28 países viram os seus programas de vacinação completamente interrompidos, o que é muito preocupante”.
“As atenções viraram-se todas para a vacinação da Covid-19, os programas da poliomielite ficaram um bocadinho de fora, por isso penso que nos próximos anos pode haver algum agravamento no número de casos, mas tenho muita esperança no número de casos no Afeganistão e no Paquistão e espero que em breve se consiga atingir a erradicação”, conclui a médica pediatra açoriana.

Poliomielite deixou famílias em pânico
nos Açores mas vacinação ajudou  
a restabelecer a normalidade

No final deste encontro foi ainda possível reunir alguns testemunhos relativamente à existência da poliomielite nos Açores, confirmada por alguns dos presentes nesta ocasião. Ilda Braz, Secretária do Rotary Club de Ponta Delgada, conhece inclusive uma pessoa que hoje se desloca por intermédio de canadianas devido à pólio, tendo em conta que no momento em que a doença foi contraída “não havia vacinas”.
Por seu turno, Clara Macedo, médica pediatra reformada, relembra os tempos de infância em Santa Clara, nos anos 50, tendo viva a memória de “ver miúdos com pólio”.
Porém, o medo desta doença era tal, que “quando se via alguém na rua nessas condições, toda a gente mandava afastar os miúdos para não se aproximarem daquela criança e fechavam-se as portas porque havia pânico por saberem o que acontecia, já que umas crianças morriam e outras não morriam mas ficavam com grandes deficiências”.
Também Carlos Arruda, igualmente médico reformado, aponta que, no tempo em que exercia a profissão, chegou a encontrar alguns pacientes que tinham já sido infectados por este vírus: “Crianças muito pequenas não vi, mas vi jovens com 15 e 16 anos e adultos já com as sequelas da pólio. Não notei medo nessa altura. Antigamente havia o estigma do contágio, depois passou e as pessoas faziam a sua vida normal, mas estamos a falar dos anos 80 e 90. Essa era uma altura em que já se faziam cirurgias correctoras para tentar dar alguma estabilidade a essas pessoas”, tendo também, nos tempos de estudante, visto pessoalmente o chamado pulmão de aço, que apesar do seu contributo para a ciência considera uma visão “horrível” quando em comparação com a medicina intensiva que hoje se pratica.

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