‘Guerra e Paz’ hoje no Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas

Açoriana Diana Vieira, professora da Academia de Lisboa dá recital de piano na terra natal

Correio dos Açores: Que memórias guarda com mais carinho do seu tempo na ilha?
Diana Botelho Vieira (Pianista profissional) - Essencialmente as férias de Verão passadas na freguesia da Maia, em casa dos meus avós maternos, mas também toda uma vivência de uma casa cheia – Sou uma de sete irmãos.

Que impacto teve a música na sua vida desde cedo?
Os meus avós maternos tinham um gosto muito grande por música, e isso acabou por contagiar-nos, aos netos, de forma muito natural.

De que forma contribuiu isso para que hoje existam vários músicos profissionais na sua família?
Os meus dois irmãos mais velhos foram os primeiros a enveredar pela música e, de seguida, os mais novos. A certa altura todos os sete irmãos tocavam um instrumento, e fazíamos concertos com alguma regularidade. Foi aí que tudo começou, mas falando por mim, sempre me recordo de pensar que iria ser pianista profissional, estava implícito na minha cabeça que isso iria acontecer.

Quando se dá a sua entrada no Conservatório Regional de Ponta Delgada?
A minha entrada no Conservatório deu-se por volta dos 10 anos de idade, tendo feito os três primeiros anos ainda na Ribeira Grande, um pólo que existia na antiga Academia de Música. Depois, passei a frequentar as instalações de Ponta Delgada até terminar o curso complementar, aos 18 anos de idade.

No que diz respeito à licenciatura, optou pela Academia Nacional Superior de Orquestra – Metropolitana, em Lisboa...
Esta escola oferecia, na altura, um curso bastante completo, explorando várias facetas que um pianista poderá incorporar na sua vida profissional no futuro. Para além das normais disciplinas teóricas, a parte prática do curso era intensa e exigente: aulas de piano, aulas de música de câmara com dois ou três grupos, aulas de acompanhamento – com cantores e com instrumentistas, e leitura à primeira vista. Tudo isso implicava muitas horas de estudo ao piano, a preparar as obras e a fazer ensaios. Todas essas valências foram-me muito úteis quando comecei a trabalhar. Ficamos depois mais “informados” e aptos a optar por afunilar mais tarde e escolher uma via que nos faça mais sentido profissionalmente.

Havia em si o desejo de sair de forma mais definitiva do arquipélago dos Açores, ou esta mudança deu-se por ser a única forma de continuar a estudar música?
Na realidade foi uma mistura, e julgo que acontece com a maioria das pessoas que nasce numa ilha, a inevitabilidade de termos de sair da ilha para continuarmos o nosso caminho. Claro que aos 18 anos não pensamos que estamos a sair definitivamente, nessa idade pensamos tão somente em seguir em frente e em descobrir o que se faz noutros sítios.  

De que forma absorveu a imensa diversidade de eventos culturais na capital?
Esta é uma questão muito interessante porque, olhando para trás, dou-me conta que, apesar de Lisboa (para onde fui estudar quando saí dos Açores) ser uma cidade muito maior e com uma oferta cultural imensa, a verdade é que 80 a 90 por cento do meu tempo era passado a estudar piano.
Era muito assim ainda nos Açores, e assim continuou mais tarde quando fui estudar para Chicago. Esse era o meu foco e havia muito repertório para preparar. Gostava muito de ler, mas claro que, dentro do possível, aproveitei, ainda assim, a oferta cultural existente, e recordo-me em particular de vários concertos inesquecíveis a que assisti na Fundação Calouste Gulbenkian.

Segue-se um mestrado em Piano Performance em Chicago, onde viveu durante quatro anos.
Esta escolha, em ir para o estrangeiro fazer um mestrado, vem no seguimento do que mencionei anteriormente: a ideia de seguir em frente, de continuarmos o nosso caminho. Na minha cabeça entendi que, indo para o estrangeiro, iria ganhar uma mundividência ainda maior, e foi o que de facto aconteceu. A nível de formação pianística foi fulcral.

Como se vive a cultura musical clássica nos Estados Unidos e o que a levou a decidir por um regresso a Portugal?
Falando de uma forma muito geral, senti que o nível de abertura a que assisti em Chicago enquanto lá estive, não existia em Portugal da mesma forma. Mas, deixa-me muito feliz constatar cada vez mais que, hoje em dia, Portugal tem esse nível de abertura e diversidade, e muita força de vontade.

Possui também um mestrado em Ensino de Música.
Na área da música, o ensino é uma via segura para a nossa subsistência, mas a realidade é que, no meu caso, tenho gosto em ensinar, portanto, junto o útil ao agradável.
Ensinar, para mim, mais do que colocar os alunos em contacto com o piano e com o seu repertório, é o próprio processo, que acho verdadeiramente complexo, mas muito aliciante.

Tendo em conta os projectos em que esteve envolvida desde o seu regresso a Portugal, quais destaca?
O meu regresso a Portugal, em 2011, e até 2016, esteve muito centrado no ensino do piano e no trabalho de pianista acompanhador. Depois, a partir de 2016, decidi manter somente o ensino, e abrir espaço para pôr em prática uma série de projectos que estavam em gaveta. Logo aí deu-se início à estreia de uma série de obras do compositor Sérgio Azevedo, para piano solo, música de câmara e piano com orquestra que, por sua vez, deram origem a outros projectos e outras ideias. Essa foi uma fase importante. Todos foram importantes – recitais de piano solo, concertos com orquestra, gravação de CDs, apresentar-me em salas importantes, tocar fora de Portugal, etc.

E, actualmente, em que projectos está envolvida?
Neste momento está em circulação o recital de piano “Guerra e Paz”, que apresentarei este Domingo (hoje) no Arquipélago, e depois em Paris, em Dezembro. Depois, outro recital, “Folclores Imaginários” que será apresentado em León, Espanha, no final de Outubro.
Para 2023 farei a estreia de três obras do compositor Sérgio Azevedo: “Melodias Populares Portuguesas”, para piano a 4 mãos, que estrearei em Londres com o pianista Saul Picado; o conto musical “La tortue” (“O cágado”), de Almada Negreiros, em Paris; e as “Danças Concertantes”, para piano e orquestra de sopros, em local a determinar. Existem outros projectos a acontecer em 2023, mas ainda estão em fase de montagem, e a seu tempo serão divulgados.

Fale-nos do evento que preparou para apresentar no Arquipélago?
O recital que apresentarei está dividido em duas grandes obras contrastantes; a primeira, Por um caminho frondoso, de Janácek, foi composta em tempos de paz, antes da 1.ª Guerra, e a segunda obra, a 6.ª Sonata para piano de Prokofiev, foi escrita em plena 2.ª Guerra.
Este contraste fez-me logo pensar no romance “Guerra e Paz” de Tolstoi, e em como os dois compositores – Janácek e Prokofiev tinham elementos em comum com o escritor Tolstoi. Uma das óperas de Prokofiev chama-se “Guerra e Paz”, e, por sua vez, Janácek compôs um quarteto de cordas baseado no romance “Sonata a Kreutzer”. No processo de pesquisa descobri que Tolstoi compunha nas horas vagas, e encontrei uma pequena valsa escrita na sua juventude, provavelmente a única peça que chegou aos dias de hoje, e percebi que essa Valsa se encaixaria na perfeição entre as duas grandes obras mencionadas, servindo de mola.
Trabalho muito na preparação dos meus recitais, pois não se baseiam somente em trabalho feito ao piano e, por isso, é com muito gosto que partilho este trabalho em diversas salas, mas com um sabor especial quando o faço “em casa”, e para pessoas que me conhecem desde pequena.

Como vê a “fuga de talentos” que hoje existe dos Açores?  
A circulação de pessoas, a entrar e a sair dos Açores, é muito benéfica, sejam elas naturais dos Açores ou de fora.

Como olha para a candidatura de Ponta Delgada a Capital Europeia da Cultura?
Vejo com optimismo. Os Açores estão muito mais abertos, se comparar com há 20 anos quando saí para estudar em Lisboa. Hoje em dia tornou-se muito mais fácil esta circulação e diversidade de eventos. Pela característica de insularidade, os Açores vão sempre arregaçar as mangas para alcançarem mais além.
    
Pensa que algum dia será possível trabalhar a partir dos Açores?
Para o meu tipo de trabalho será difícil, simplesmente por ser um meio mais pequeno, e não seria prático viver nos Açores e viajar frequentemente para outros sítios. Mas, enquanto for possível vir aos Açores de férias ou apresentar os meus projectos, e a sentir que continuo por perto, já me deixa feliz.

                                       

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