Entre as várias iniciativas previstas para este fim-de-semana, de forma a assinalar a comemoração dos 500 anos da subversão de Vila Franca do Campo, o claustro do Convento de São Francisco recebe às 17h00 de hoje, a apresentação pública do livro “Romeiros de São Miguel Arcanjo – 500 anos de história”, da autoria de Carlos Vieira, actual mestre do rancho de romeiros da Matriz de São Miguel Arcanjo, e que este ano cumpre 20 anos de mestre. De acordo com o autor, este livro foi feito, sobretudo, com o intuito de homenagear os romeiros da ilha de São Miguel, particularizando-se, ao longo do livro, numa homenagem feita também aos romeiros da Matriz de São Miguel Arcanjo através de vários capítulos dedicados a este rancho.
A ideia para este segundo livro de Carlos Vieira – o primeiro foi publicado em 2005 e intitula-se “Diário de uma romaria” –, conforme conta, surgiu anos antes da pandemia, na romaria de 2017, em conversa com Rui Melo, antigo Presidente da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, e desde aí começou o processo de recolher notas e fotografias em determinados locais para incluir no livro. Com a pandemia a ideia ganharia força, tendo em conta o tempo livre que ganhou devido à suspensão de grande parte das actividades em que se envolvia então, e na quaresma de 2020 começaria então a dedicar-se ao projecto que hoje apresentará ao público, e a par das fotografias e das notas que foi juntando, este livro é também o resultado de “muitas pesquisas, conversas com antigos romeiros e consultas em documentos dos arquivos municipais e paroquiais”.
Assim, este trabalho procurou congregar “tudo o que envolve uma romaria, desde a sua história, desde a sua preparação e desde a romaria propriamente dita até o pós-romaria”, adianta Carlos Vieira, salientando que este livro funciona muito bem como um manual do romeiro, uma vez que ali está condensada “toda a preparação espiritual e prática que um romeiro deve adquirir no auge de uma romaria”, podendo ali encontrar também “todo o itinerário da nossa romaria de Vila Franca, bem como todo o registo das horas em cada local, em cada igreja e em cada ermida”.
Para além destas informações, e das cerca de 400 fotografias que constam no livro, estão também presentes as orações que todos os 56 ranchos da ilha fazem aos seus padroeiros, o que permite que este livro seja também “uma espécie de compêndio de orações”, conforme lhe chama o autor, incluindo ainda múltiplas partituras de músicas que, através dos códigos facultados na obra, podem ser consultadas na internet.
Enquanto mestre de romeiros e enquanto pessoa interessada nesta tradição secular, Carlos Vieira conta também que a sua missão foi, “sem dúvida, deixar algo documentado”, considerando que existem nos Açores outros trabalhos “belíssimos”, tais como outros livros e teses de doutoramento, como as executadas por Carmen Ponte e por Ana Carvalho.
Ranchos de romeiros foram-se
actualizando com o passar dos anos
Durante a sua pesquisa, o autor confrontou-se ainda com vários momentos chave que marcaram a história das romarias, e conta que o que mais apreciou foi estudar os regulamentos das romarias quaresmais. “Desde 1962 até 2017 há uma certa evolução que mostra que os romeiros foram acompanhando os novos tempos. Foi engraçado, porque, inicialmente, na década de 50, quando a igreja começa de certa forma a recomendar a não participação da presença feminina, surge uma regra do romeiro em 1956. (…) Apenas em 1962, com a criação de um regulamento com um grupo de homens que se juntaram, é que a igreja começa a ligar-se ao Movimento e pude constatar a evolução de certos aspectos”, conta Carlos Vieira, dando como exemplo a constituição dos próprios ranchos, que só em 1989 começam a integrar a figura do contra-mestre, até então representado na figura do ajudante.
Para além destas mudanças, Carlos Vieira destaca também que outra das alterações registadas prende-se com a indumentária exigida aos romeiros durante as suas caminhadas de fé, uma vez que, ao contrário do que hoje acontece, não era permitido utilizar outra roupa senão a roupa da missa. “Por exemplo, não era permitido utilizarmos umas calças de fato de treino para fazermos uma romaria mais à vontade, era proibido. Recomendava-se sempre as chamadas “calças da missa”, não podiam ser calças comuns ou roupa de desporto, mas com os novos tempos os mestres começaram a perceber que um corpo são e mente sã corresponde a um espírito são, pois quando estamos mais confortáveis, a nossa mente preocupa-se com mais intensidade na oração e na meditação, não pensa nas dores nem no desconforto”, explica o autor do livro.
A par destas mudanças, Carlos Vieira gostou especialmente das histórias que dão conta das proibições impostas pelo poder eclesiástico às romarias, nos séculos XVII e XVIII, quando para além de serem proibidas mulheres nas romarias, foram também proibidos os “bailes” que seriam realizados no interior das igrejas com a utilização de instrumentos musicais, uma vez que estes eram considerados “tumultuosos”.
“Na altura, os ranchos eram liderados pelos cantadores da freguesia, os que cantavam bem, e as noites eram sempre aproveitadas para esse tipo de cantorias, e até levavam instrumentos musicais e tudo, mas esta prática dentro de templos não era bem vista pela igreja, que começa a condenar isso. (...) Apenas em pleno século XX é que os romeiros passaram a ter o carinho da igreja, a atenção da igreja por parte dos padres, o acompanhamento do sacerdote na preparação dos ranchos, até então a igreja não via com bons olhos as romarias quaresmais”, adianta ainda. Nos dias de hoje, o autor desta obra refere que “uma romaria não pode ressuscitar na Quaresma e morrer na Páscoa”, uma vez que tem que haver uma “continuidade constante, um testemunho vivo e activo nas nossas comunidades e ambientes, nos nossos lares e trabalhos”. Em acréscimo, salienta que os homens que se entregam às romarias, não vão nela para serem santos, mas sim para serem melhores pessoas: “Melhores pais, melhores maridos, melhores colegas de trabalho e melhores amigos. É este o propósito de uma romaria, sermos melhores. E é isso que tentamos incutir nos irmãos romeiros que vão numa romaria”, diz ainda.
Pandemia pode impactar
romarias em 2023
Questionado sobre se a pandemia irá afectar o número de romeiros que irá sair às ruas no próximo ano, se tudo correr como planeado, Carlos Vieira aponta que tudo é “muito relativo”, uma vez que ainda hoje há muito estigma ligado à pandemia que poderá também “ter influência nos irmãos romeiros”. Refere, inclusive, que há ranchos de romeiros que “cessaram até a sua actividade devido à pandemia”, restando apenas a esperança de que “ressurjam no próximo ano”.
Por outro lado, no que diz respeito ao rancho de romeiros de São Miguel Arcanjo, de Vila Franca do Campo, Carlos Viera afirma estar convencido “de que este afastamento de quase três anos irá abrir o apetite e irá convidar mais romeiros à participação nas romarias”. Tendo ainda em conta os impactos da pandemia, o autor do livro “Romeiros de São Miguel Arcanjo – 500 anos de história” estima ainda que possam existir mudanças no relativamente à forma como os romeiros serão acolhidos pelas famílias para pernoitarem em casas particulares, factor que era “estável” até 2020.
“Com o surgimento da pandemia, penso que o acolhimento e a pernoita em casas particulares vai sofrer uma grande transformação. O estigma da pandemia está presente e, infelizmente, é uma probabilidade que a maioria do rancho venha a pernoitar em salões, já que na última assembleia geral, o Movimento já alertou para que os ranchos começassem a tomar algumas medidas preventivas neste sentido, porque as designadas famílias de acolhimento dos romeiros, que, tradicionalmente, ano após ano, acolhem os romeiros, já fizeram saber e informaram os seus Mestres locais, que não tinham interesse nem possibilidade de acolher romeiros devido à pandemia”, o que deverá reflectir-se, então, num número menor de famílias de acolhimento durante as romarias, embora não tenha dúvidas de que estas mesmas famílias irão procurar ajudar os romeiros de outras formas. Procurando focar-se nos aspectos mais positivos, o mestre de romeiros refere que este será um “regresso às origens”, tendo em conta que, no passado, os ranchos de romeiros pernoitavam todos juntos em templos e nas então denominadas casas dos romeiros. Espera, porém, que esta seja “uma situação pontual” e que, com o passar dos anos, esta possa ser ultrapassada e que a pandemia possa “ser esquecida”. No entanto, considera que há ainda algum trabalho a fazer no que diz respeito à perpetuação desta tradição, sobretudo para chamar os romeiros mais novos para esta prática tão açoriana: “Os ranchos e o Movimento têm vindo a notar um decréscimo da presença de crianças e jovens nas romarias, e temos que pensar muito seriamente nisso, temos que começar a visitar as escolas, a testemunhar nas escolas as nossas romarias”, diz. Como exemplo deste trabalho que necessita de ser feito com os mais novos, refere as visitas que fez à Escola Básica Integrada de Lagoa e à Escola Secundária de Vila Franca do Campo, cujo objectivo passou por “testemunhar perante todas as crianças o que é uma romaria, o poder de uma romaria, o quão bom é fazer uma romaria e quais são as vantagens de poder fazer uma romaria”.
Conforme a sua perspectiva, existem ainda vários ranchos em desvantagem em relação a outros, uma vez que os ranchos que saem à rua na quinta e na sexta semana da Quaresma apanham as férias da Páscoa, enquanto os restantes ranchos vêem a sua romaria coincidir com o período escolar, o que “faz com que os ranchos da primeira à quarta semana tenham uma menor afluência de crianças e jovens por causa das escolas”. Por esse motivo, “penso que deveria haver um esforço por parte dos responsáveis e por parte do Movimento para estarmos mais próximos das escolas, sobretudo das escolas do primeiro e segundo ciclo, porque é aí que vamos buscar o futuro das nossas romarias”, diz ainda, salientando que as idades mais indicadas para iniciar uma romaria será entre os 10 e os 12 anos de idade.
De uma forma geral, refere, as crianças que embarcam nesta viagem espiritual e religiosa “adoram a experiência de uma romaria”, até porque são as crianças “são quem menos sofre durante uma romaria por serem leves e por terem sempre energia”, havendo até ocasiões em que, enquanto os mais velhos descansam ou curam as feridas, os mais novos aproveitam para “jogar à bola” uns com os outros.
De acordo com Carlos Vieira, as romarias podem também ser espaços para “incutir nos mais novos” alguns valores que se perderam no tempo, como é o caso de pedir a “bênção” dos mais velhos: “Isto é algo que se perdeu mas que é um aspecto tão simples, e no dia da família, nós convidamos as crianças a pedirem a bênção aos seus pais, e quando isso acontece eu vejo muitos pais com as lágrimas nos olhos”, recorda ainda o mestre do rancho de romeiros da Matriz de São Miguel Arcanjo.