Jovem médica açoriana quis ser exemplo e escolheu a ilha de São Jorge para iniciar a sua carreira

Correio dos Açores: Como surgiu o desejo de ser médica?
Cristina Raposo (Médica de família na ilha de São Jorge): Não tinha outros médicos na família, não. O desejo de ser médica surgiu no secundário, quando tinha de decidir que área seguir. Queria ter um trabalho em que pudesse ajudar pessoas e gostava da área da biologia e da saúde, pelo que decidi experimentar este curso. Especificamente a vontade de ser médica de família foi surgindo ao longo do curso, ao aperceber-me da relação especial que era possível construir com os utentes, famílias e comunidade nessa especialidade.

Uma vez que este é um curso que exige médias altas para que seja possível ingressar nele, como descreve a sua jornada até entrar em medicina?
Ao longo do meu percurso escolar, fui sendo boa aluna, atenta e interessada durante as aulas, estudava sempre que necessário, e cheguei ao fim do secundário com a felicidade de ter notas que me davam a possibilidade de escolher Medicina.

E por que motivo opta por iniciar os estudos na Universidade dos Açores?
Iniciei o curso nos Açores por um motivo muito prático, tive de colocar este estabelecimento como primeira opção para poder beneficiar da preferência regional e contingente Açores.

Olhando para trás, que benefícios têm as turmas de alunos de medicina ao iniciarem o curso em São Miguel em termos de proximidade com as unidades de saúde e respectivos utentes?
Sendo uma turma menor, conseguíamos dividir-nos em grupos mais pequenos para as aulas práticas e isso permitia uma maior interacção com os doentes e com os professores.

Partindo para Coimbra, que mudanças sentiu na sua forma de aprender ou no ensino da medicina? A proximidade com os utentes e serviços era a mesma?
Apesar de ter tido antes algumas aulas práticas com doentes nos Açores, foi em Coimbra que começou o ensino prático mais generalizado e em mais especialidades médicas e cirúrgicas. No entanto, notei que muitas das aulas ditas “práticas” eram mais teóricas e acabávamos por ter menos proximidade com os doentes. Para além disso, em comparação, a relação com os professores era praticamente inexistente, muito distante.

O que a levava a desejar regressar aos Açores depois de concluído o curso? 
Fiz o ano comum em Guimarães e regressei aos Açores posteriormente para o internato da especialidade de Medicina Geral e Familiar. Vim por vontade de regressar a casa e fazer vida e carreira cá.

O que motivou a sua escolha pela ilha de São Jorge?
Em primeiro lugar, tenho raízes em São Jorge, a minha mãe é de cá e sempre tive um carinho especial por este lugar, tendo vindo cá todos os anos da minha vida. Quis dar o meu contributo ao serviço de saúde, onde sabia que havia necessidades de médicos.

Que benefícios sente que tem ao praticar medicina numa ilha mais pequena como a de São Jorge?
Há uma sensação de fazer a diferença. Estou a dar um médico de família a quem de outra forma não o teria, num sítio em que não há muitos outros recursos de saúde, sendo a oferta no privado também escassa. Para além disso, sinto que há uma maior proximidade com os utentes, sou acolhida de forma diferente, algo carinhosa pela maior parte das pessoas. Também consigo conhecer a maior parte dos profissionais do meu centro de saúde, o que não aconteceria numa instituição maior.

Uma vez que é uma jovem médica, sente que isso a permitiu ganhar o afecto dos seus utentes com maior rapidez?
Não sei se será por ser jovem. Acho que os jorgenses acolhem bem qualquer pessoa. Mas senti o afecto quase de forma imediata e também notei uma certa satisfação dos utentes de terem alguém que consideram “da terra”.

A falta de profissionais de saúde (médicos e não só) é evidente na ilha onde se encontra? De que forma?
Sim, é evidente, por exemplo no acesso a médicos de outras especialidades que não a Medicina Geral e Familiar ou a exames complementares de diagnóstico. No entanto, apesar do acesso não ser tão fácil e imediato, há um esforço grande em trazer estas especialidades à ilha regularmente e em realizar mais exames cá, para além de se garantir a ida dos utentes a outras ilhas para que possam aceder a estes recursos.

Quais as qualidades desejadas num bom médico e de que forma essas qualidades devem ser exacerbadas para os médicos que trabalham em locais mais pequenos como as nossas ilhas/freguesias?
Na minha opinião, um bom médico tem de ser empático, conseguir colocar-se no papel do outro, ser bom ouvinte, saber comunicar, ser resiliente e capaz de se adaptar, para além das competências técnicas. Acho que essas características são importantes em qualquer lugar, mas talvez a capacidade de adaptação tenha aqui um maior papel.

Ao longo dos anos têm sido feitos esforços para contratar médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar para as ilhas açorianas, embora sem o efeito desejado. Enquanto médica, que regalias considera que deveriam ser oferecidas a estes profissionais de saúde para que as ilhas se tornem mais apelativas para fixar novos médicos?
Há já incentivos financeiros e outros em vigor, mas que na prática às vezes não são aplicados. Para além disto, são disponibilizados apenas durante um tempo limitado, o que, na minha opinião pessoal, não faz muito sentido, se o pretendido é fixar os médicos a longo prazo.

Há cerca de duas semanas fez um apelo nas suas redes sociais para que mais médicos se candidatassem para São Jorge. Que tipo de feedback recebeu da parte dos colegas?
Bem, não muito. Claramente, continua a haver desinteresse e falta de motivação para virem para cá. Tive vários colegas que apoiaram a minha iniciativa e partilharam a publicação, mas não passou muito disso. Foi sobretudo a população que mais partilhou a minha publicação, o que denota as suas necessidades.

É em São Jorge que deseja ficar durante grande parte da sua carreira?
Na verdade, não, e tenho sido clara com os meus utentes sobre isto. Vim por querer ter uma nova experiência e dar o meu contributo por uns tempos, mas tenho vontade de voltar a São Miguel no futuro. Sei, no entanto, que terei muita pena de me ir embora. Portanto, quem sabe…
Joana Medeiros
 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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