No XVII Congresso de Endocrinologia e Nutrição dos Açores | XVIII Jornadas de Diabetologia, evento que termina hoje no Teatro Micaelense, um dos temas abordados foi a iodo-deficiência, que embora exista em menor número, continua a ser problemática nos Açores.
De acordo com Rui César, endocrinologista e Presidente da organização do congresso em questão, 2022 marcou o regresso destes encontros que reúnem profissionais da área da medicina a nível nacional e internacional, com o benefício acrescido de poderem encher a sala do Teatro Micaelense e torná-lo num espaço de partilha de conhecimentos que, para além de serem importantes, permitem que os médicos locais “possam continuar a ajudar os doentes”.
Catarina Moniz, por exemplo, falou nesta ocasião sobre “A história do iodo nos Açores”, começando por referir que é na alimentação que estão as principais fontes de iodo, sobretudo nos alimentos de origem marinha – tal como peixe, algas e crustáceos –, bem como no leite e nos derivados de leite, alimentos existentes em abundância na Região mas que, ainda assim, não são suficientes para colmatar a falta de iodo registada na população ao longo das décadas, havendo também um amplo desconhecimento relativamente à diferença entre o sal marinho e o sal iodado e a sua respectiva importância quando incluída na alimentação.
Para além destes alimentos que são ricos em iodo, a endocrinologista do Hospital do Divino Espírito Santo realça que é também importante ter em causa os alimentos ingeridos que bloqueiam a entrada de iodo no organismo, as chamadas substâncias bociogénicas, que podem causar o aumento do volume da tiroide, “nomeadamente os vegetais como a couve, o repolho, a couve-flor e os brócolos”, alimentos estes que também se apresentam regularmente na alimentação dos açorianos.
Embora existam vários estudos realizados ao longo dos anos, a médica considera que é necessário continuar a estudar a iodo-deficiência nos Açores, com incidência não apenas em São Miguel, tendo em conta que o estudo mais recente realizado na Região é de 2019 e concentrado na maior ilha do arquipélago.
No primeiro estudo realizado nos Açores neste âmbito, datado de 1986, foram avaliadas 2.500 crianças entre os seis e os 11 anos de idade e 1.800 crianças entre os 10 e os 17 anos de idade, culminando em milhares de amostras de urina analisadas – uma vez que é através da concentração urinária de iodo que se alcançam grande parte das conclusões.
O objectivo, explica a médica, é existir uma mediana de iodo entre os 100 e os 300 microgramas por litro de urina nas crianças em idade escolar, e obter uma percentagem inferior a 20% no número de amostras de urina com uma concentração de iodo inferior a 50 microgramas por litro. Porém, atendendo os resultados alcançados, o valor mínimo encontrado foi de 7 microgramas de iodo por litro de urina, e o máximo de 47 microgramas por litro.
Este valor mais baixo, conforme explicou a especialista em endocrinologia e nutrição, diz respeito à freguesia das Sete Cidades, conhecida pelas suas características vulcânicas, aspecto este que aparenta ter também um grande impacto nos valores registados na população, devido à exposição ao fluor, assim como a precipitação e a quantidade de iodo existente no solo.
Para além de uma baixa concentração de iodo nas crianças em idade escolar e nos jovens, foi também “reportada a prevalência de bócio” em mais de 10% da população que fez parte deste estudo, o que levou a que a freguesia das Sete Cidades tenha sido “classificada como uma zona de bócio endémica”. Em contrapartida, os melhores resultados foram registados na ilha de Santa Maria, com uma mediana de 88 microgramas de iodo por litro de urina, e com 62% das amostras abaixo dos 100 microgramas.
Anos mais tarde, “em 2014, em sequência destes resultados, foram introduzidas várias medidas, nomeadamente a promoção do uso de sal iodado no domicílio, obrigatoriedade da confecção das refeições escolares com sal iodado, bem como todas as refeições das cantinas do Serviço Regional de Saúde, com publicidade nas televisões e nas escolas”. Já em 2019, aponta a profissional de Saúde, foram avaliadas a eficácia destas medidas.
“Avaliámos, apenas em São Miguel, um total de 362 crianças, e a mediana atingida na concentração urinária foi de 106.7 (microgramas por litro), em comparação com os 70.9 (microgramas por litro), uma diferença significativa em relação a 2012, com 55% das crianças com iodúrias acima de 100, 44% abaixo de 100, e 9,4% abaixo de 50 (microgramas por litro) quando em comparação com os 30% registados em 2012”, refere.
No que diz respeito ao uso de sal iodado, a Organização Mundial da Saúde aponta que este era de 1% na Região em 2007, e que, por intermédio do Inquérito Nacional Alimentar de 2015, foi reportado um aumento para 15%, enquanto em 2019, de acordo com o inquérito levado a cabo pelos profissionais do HDES, este consumo se apresenta na ilha de São Miguel com uma prevalência de 48,3%.
Estes valores, embora possam não corresponder à realidade, levam os profissionais de Saúde a acreditar que este é um consumo que está, de facto a melhorar, até porque a população, em 2019, apresentava hábitos alimentares mais favoráveis quando em comparação com outras décadas, onde o pão, o vinho e o chá (que pode também ser um inibidor de iodo) se apresentavam entre os principais alimentos consumidos.
Porém, há a necessidade de serem conduzidos mais estudos relacionados com a iodo-deficiência nas restantes ilhas do arquipélago, uma vez que os dados existentes actualmente se concentram na ilha de São Miguel e Santa Maria, sobretudo no que diz respeito ao iodo presente no solo.
Menor consumo de leite de vaca
afecta concentração de iodo nas grávidas
Conceição Calhau, professora da NOVA Medical School, falou também no “Papel da alimentação” no que diz respeito ao iodo, sendo que este nutriente tem “um papel importantíssimo para as hormonas da tiroide” que, por sua vez, têm também “um papel extremamente relevante” no organismo.
Sendo a sua apresentação reflexo de preocupações actuais relativamente à saúde pública, certo é que esta é uma área onde continua a ser necessária monitorização, embora tenham sido dados passos importantes na chamada “medicina de precisão”, personalizada de modo a que “cada clínico possa fazer um enquadramento da situação de cada doente e fazer a sua intervenção individual”.
Tendo em conta este tema, e os dez anos que passaram desde que foi implementada em 2013 a suplementação das grávidas com iodo, Conceição Calhau falou nos projectos “Iogeneration” desenvolvidos no norte do país e em Lisboa, de forma a testar as crianças em idade escolar em diferentes regiões do país.
Porém, conforme adianta, “muitas vezes, existem dados populacionais de crianças em idade escolar que são considerados representativos do agregado familiar das grávidas, mas vamos perceber que nem sempre é assim, (…) pois nas grávidas a deficiência era muito mais prevalente, o que provavelmente também tem a ver com as modas alimentares”. Entre estas “modas”, a nutricionista insere as oscilações demonstradas na ingestão de leite e/ou lacticínios – uma vez que “há uma ligação muito directa entre a ingestão de leite e os níveis de iodo” – bem como o consumo de soja, cada vez mais elevado, que “contraria a absorção de iodo”.
Resultados de 2019 mostram que níveis de iodo nas grávidas melhorou no HDES
Por seu turno, a médica endocrinologista do HDES, Isabel Sousa, falou também sobre o iodo nas grávidas, afirmando que, em 2012, havia registado “um défice de iodo nas grávidas”, preocupante na medida em que este défice pode levar a um atraso no desenvolvimento psicomotor da criança.
“A dose diária recomendada para uma mulher grávida deve ser de 250 microgramas por dia, por isso, ao nível da iodúria ela deve estar entre os 150 e os 249. Porém, nos Açores, a média, em 2012, foi de 46,2 (microgramas por litro de urina)”, considerando-se que esta percentagem de mulheres que se encontrava abaixo dos 150 é “extremamente grave”.
Em 2013, depois de publicada uma orientação da Direcção Geral da Saúde, estabeleceu-se que todas as mulheres em pré-concepção, grávidas ou a amamentar estavam aptas a receber suplementação de iodo, através de iodeto de potássio, mediante prescrição médica e através das Unidades de Saúde de Ilha por que eram seguidas, sendo que, no ano seguinte, foi publicada a circular que tornou obrigatório o uso de sal iodado “na confecção das refeições em todos os serviços dependentes da Secretaria Regional da Saúde”.
Já em 2019, foi avaliado o impacto destas medidas, tendo o Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do HDES realizado entre Dezembro de 2018 e Janeiro de 2019 a recolha de urina para análise de 99 grávidas, incluindo dados “como a idade, se a paciente tinha patologia tiroideia, se estava a fazer suplementação e se utilizava sal iodado na sua dieta”, indica Isabel Sousa.
“Tivemos uma média de idades de cerca de 30 anos de mulheres grávidas, e a média do iodo urinário passou a ser de 77,4 microgramas por litro. Verificámos que acima de 150 só se apresentavam 9% das mulheres grávidas e que abaixo de 150 ainda tínhamos um valor de cerca de 90%. Abaixo dos 50 esse valor era de 33%. Ou seja, comparando 2012 com 2019, verificamos uma melhoria”, acrescenta a médica, embora relate que muitas mulheres afirmavam cumprir com a suplementação quando, na realidade, não cumpriam.
“Neste estudo, a percentagem de não aderência às medidas correctivas foi de 23%, em que 12% das grávidas não foi suplementada por problemas médicos e em relação a situações a melhorar”, sendo necessário “encorajar o consumo de alimentos ricos em iodo, como peixe, crustáceos e algas, entre outros, e uma implementação universal de sal iodado, de forma mandatória e não de forma voluntária”, adianta a médica especialista.
Sal iodado pode não ser suficiente
em Portugal, adianta especialista
Outro dos profissionais de saúde que esteve presente neste congresso foi Michael Zimmermann, do Swiss Federal Institute of Technology, em Zurique, instituição que há vários anos batalha contra a iodo-deficiência, uma vez que a Suíça foi já um dos países com uma severa falta de iodo e bócio endémico, tendo introduzido o sal iodado em 1920.
Para além do bócio, um dos efeitos mais visíveis da falta deste nutriente, e o que mais preocupa os profissionais de Saúde é o efeito que a sua carência pode ter num cérebro em desenvolvimento, quer nos fetos, nos bebés ou nas crianças, e é isso que a comunidade médica e científica tem procurado prevenir: “Nos casos de deficiência de iodo durante a gravidez, se a mãe não conseguir produzir em quantidade suficiente a hormona T4, relativa à tiroide, para a passar através da placenta até ao feto, o feto terá problemas em termos de desenvolvimento cerebral”, salientou Michael Zimmermann, dando como exemplo a problemática do cretinismo, capaz de provocar paralisia espástica, atrasos mentais severos, surdez e, noutro tipo de cretinismo, pode fazer com que as crianças nasçam, também, com nanismo.
Apesar de ser uma condição rara nos dias que correm, ao contrário de há várias décadas, o especialista refere que – embora possam ainda existir casos de cretinismo em países como China ou em alguns países do continente africano – os programas que promovem a ingestão de iodo, seja através da suplementação, seja através do consumo de sal iodado, conseguiram reduzir em grande escala esta doença.
Salientou também que a iodo-deficiência prejudica o desenvolvimento do Quociente de Inteligência das crianças, comprometendo-o em valores entre os 10 e os 15 pontos, e que embora as crianças “pareçam normais quando nascem, têm o seu Quociente de Inteligência prejudicado, um défice que será permanente”, explicou ainda Michael Zimmermann. No que diz respeito aos danos provocados pela deficiência de iodo na capacidade de aprendizagem e no desempenho escolar destas crianças, o nutricionista deixa claro que os obstáculos podem surgir em qualquer local do planeta onde existam crianças com baixo nível de iodo, não apenas em locais mais remotos do planeta, seja esta carência “severa” ou “suave a moderada” pois, em qualquer dos casos, tem impacto no desenvolvimento do cérebro.
Estudos demonstraram que ao corrigir a deficiência de iodo com sal iodado e suplementos de iodo, obtém-se “uma diminuição massiva de bócio, uma grande diminuição de cretinismo e, provavelmente o mais importante, uma diminuição de 73% de crianças com um baixo Quociente Intelectual”, refere o especialista, salientando, por isso, os grandes benefícios da utilização de sal iodado na confecção das refeições. Aliás, a Organização Mundial de Saúde considera que este é o maior triunfo em termos de saúde pública desde a erradicação da varíola, considera ainda.
Demonstrando de que forma a deficiência de iodo foi variando ao longo dos anos, Michael Zimmermann, salienta que, em 1993, 113 países do mundo eram deficientes em iodo, mas que, em dez anos, os programas aplicados demonstraram ser muito eficazes em melhorar o desenvolvimento das crianças e de uma forma económica. Entre 1993 e 2003, grandes países como a China, a Índia e múltiplos países da América Latina introduziram o sal iodado e diminuíram o número de casos de deficiência de iodo de uma população que estava muito afectada por este problema. Ainda assim, um dos desafios passa também por combater a carência de iodo sem fazer com que a população tenha este nutriente em excesso.
Porém, Michael Zimmermann considera que, em países desenvolvidos, como é o caso de Portugal, iodar o sal que entra na casa da população poderá não ser o suficiente, “porque muito do sal que é ingerido vem de comidas processadas e restaurantes”. Nos Países Baixos, por exemplo, um país onde não é registada deficiência de iodo na população, este sal iodado passou também a fazer parte do pão que é confeccionado, tendo em conta que este é um produto presente na alimentação de crianças, jovens e adultos. No Gana, o sal iodado é também adicionado noutros produtos que fazem parte da alimentação da população, de forma a facilitar este consumo.