Quem era João José da Silva Loureiro? Não sei, nem pretendo sabê-lo. Quero só avaliar o que fez no Parlamento Nacional em defesa do sonho da Ribeira Grande vir a ser Cidade em 1852. Centrado, pois, no que julgo ser estritamente necessário, digo que era nado e criado na Cidade de Ponta Delgada (n. Ponta Delgada n. 2-03-1809 – Ponta Delgada f. 24-06-1878), e completara 43 anos de idade.1 Aos 17 para os 18 anos, em 1827, fora estudar Direito na Universidade de Coimbra. Porém, só oito anos depois, já com 26 anos feitos, obteria o bacharelato ‘em leis.’2 Envolvera-se na guerra civil. Nesta, que opôs liberais a absolutistas, ‘terá’ de ‘calça vermelha etc.’ ‘cacetado’ ‘nas ruas de Lisboa’ a favor dos absolutistas. Segundo um panfleto anónimo – que não terá sido contestado -, mas que será em parte credível,3 foi acusado de ter sido ‘denunciante, perseguidor, e carrasco executor das ordens do sr. D. Miguel 1.º’4 Antes ou já terminada a guerra, aderindo aos vencedores mais radicais, de volta a casa, ocultando o seu passado recente, casa aos 28 anos de idade com a prima Rita Emília. Apesar de no continente, Loureiro ter (muito possivelmente) militado nas direitas mais radicais, na Ilha, para o jornalista Francisco Maria Supico, apenas terá militado nas esquerdas mais radicais: ‘pugnando sempre pelas ideias setembristas, naquele tempo as mais avançadas.’ Sempre apaixonado pela política, foi ‘jornalista político e vigoroso, redigindo vibrantemente por bom número de anos o Correio Micaelense, órgão do seu partido (…).’5 Convertido ao liberalismo, ‘foi duas vezes deputado por S. Miguel, em 1852 e 1865, mas em qualquer das duas legislaturas as Câmaras foram dissolvidas.’6 Foi ainda autarca da sua Cidade natal ‘para o biénio de 1864-1865.’7 No entanto, o seu ganha-pão era a advocacia. Diz-nos Supico que era um ‘jurisconsulto de boa fama,’ e que ‘a sua banca de advogado era farta de clientela, que lhe proporcionava largos proventos.’ José Jácome e José do Canto, por exemplo, eram seus clientes. Não obstante o sucesso profissional, o panfleto anónimo acusa-o de haver alcançado ‘por tranquibernias [trapalhadas] o grau de Doutor a que não pôde chegar pelos meios lícitos.’ Fosse ou não fosse assim, não sei se já em 1852, do que ganhou (e também herdou?), foi investindo em propriedades nas Comarcas da Ribeira Grande, Ponta Delgada e Vila Franca. O grosso centrava-se na da Ribeira Grande (Capelas) e Vila Franca (em Água de Pau).8 Filho de um feitor da Alfândega, de regresso à Ilha, pretendendo (não vem ao caso se por convicção ou não) pertencer à fina flor da Cidade, adere à Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, 9 logo em 1843, à Sociedade dos Amigos das Letras e Artes, que chegou a liderar ‘tendo-se dedicado à difusão da instrução primária.’ E à Maçonaria. Além disso, ‘foi um dos dinamizadores de todo o processo para a construção do Teatro Micaelense, inaugurado em 1864.’10 Um acidente cerebral vascular, em 1867, fê-lo retirar-se de qualquer actividade. 11 Faleceu às 7 horas da manhã do dia 24 de Junho de 1878 na casa n.º 44 da rua Primeira do Conde, na Freguesia Matriz. Tinha 69 anos. Sobreviveu-lhe a esposa. Deixou seis filhos. Dois deles, não viviam na Ilha.12
Como chegou Loureiro a deputado? Por um golpe de sorte. E pela desistência dos três primeiros da lista. 13 Que causou muita desilusão. O panfleto anónimo é um bom exemplo deste estado de espírito da Ilha.14 Foi bom para a Ribeira Grande que isso acontecesse? Loureiro, sob suspeita de continuar sendo absolutista, partiria politicamente fragilizado. Porém, isso não seria obstáculo, até poderia ser benéfico, pois, sentindo necessidade de provar que não era, esforçar-se-ia ainda mais para mostrar a sua lealdade ao liberalismo. Não teria bons interlocutores no Parlamento em Lisboa? Em parte. Todavia, não seria o único nas mesmas circunstâncias. E os tempos eram de acalmia e de união. Com a escassa informação que disponho para atacar ‘o assunto,’ vou ter de me meter na pele (faço-o com prazer) do detective. Tal como este procura o motivo, o meio e a oportunidade que terá levado alguém (provavelmente) a praticar um determinado crime, ‘puxando a brasa à História,’ procurarei fazer aqui o mesmo. Que motivo poderá ter existido para desencadear esta proposta de cidade? O velho e jamais esquecido sonho de elevar a Ribeira Grande cidade. Que meio foi usado para concretizar esse sonho? A ambição do partido político (talvez já o Regenerador misturado ao Progressista?) ou do Deputado (simultaneamente fragilizado e fortalecido pela sombra do passado) de consolidar o seu poder. E a oportunidade? As eleições (tardias a nível nacional) de 15 de Fevereiro de 1852 ao Parlamento Nacional. Ou ainda o facto de Loureiro não ter nada para apresentar à Ribeira Grande. É provável. Como e onde (re)surgiu a ideia de cidade? Talvez tenha (res)surgido nas tertúlias das duas Sociedades da Ribeira Grande. Nelas se liam e comentavam jornais. Inclusive (quase de certeza) os Diários do Governo. Aí saber-se-ia que a Horta fora elevada a Cidade e que Viana do Castelo e Tomar haviam-no sido não há muito. Não esquecer que, a ambição vinha de longe. Faria até parte da cultura das elites locais. Eis, entretanto, que surge uma eleição e um deputado a quem dava jeito acolher a ideia? Vou seguir o processo eleitoral. Talvez aí consiga encontrar respostas aceitáveis? No Domingo, dia 1 de Fevereiro, véspera da Festa de Nossa Senhora da Estrela, houve eleições nas ‘oito assembleias primárias de eleição de Eleitores de Deputados por este Concelho [Ribeira Grande].’15 Entre outros prováveis assuntos, especulo, à cabeça dos quais, o porto de Santa Iria, a ideia da elevação da Vila a Cidade e a da ‘qualificação e habilitação para o emprego de tabelião de notas’ podem ter vindo à baila. Mas quem (ou que grupo quis) aproveitar a ocasião (continuo a especular) para propor a ideia da elevação a Cidade? Para chegar a uma resposta (sempre) plausível, convido-vos a seguir ‘atentamente’ os catorze eleitores do Concelho da Ribeira Grande. Destes catorze, nove pertenciam a instituições concelhias.16 Dos oito membros da vereação eleita para o biénio 1852-1853, que toma posse a 2 de Janeiro de 1852, cinco estão na lista dos catorze.17 Um dos quatros vogais do Conselho Municipal figura entre os catorze eleitores.18 E entre os catorze eleitores, aparecem dois que haviam feito parte de uma vereação demitida em finais da década de quarenta.19
O que poderá ter acontecido? Provavelmente, os eleitores de Ponta Delgada e os da Ribeira Grande negociaram. Entre a eleição do dia 1 de Fevereiro dos catorze da Ribeira Grande e o dia 15 de Fevereiro de 1852, dia da eleição dos representantes finais ao colégio eleitoral da Ilha, terá havido tempo suficiente para chegar a acordo sobre assuntos de interesse mútuo. Ponta Delgada, sem as Capelas, que ainda era Concelho autónomo, ainda que fazendo parte da Comarca da Ribeira Grande, elegera 22 (vinte e dois) delegados e a Ribeira Grande, 14 (catorze). Os restantes Concelhos, Vila Franca não entrou (não descobri a razão), elegeram 22 (vinte e dois).20 Porque teriam (eventualmente) os delegados de Ponta Delgada (ao que parece) escolhido aliar-se à Ribeira Grande? Ponta Delgada e a Ribeira Grande eram, de longe, os dois mais ricos e poderosos concelhos da Ilha. Tratar-se-ia de proteger os interesses fundiários na Ribeira Grande de alguns dos eleitos de Ponta Delgada? Interesses ancestrais que se enraizavam em laços familiares/fundiários?21 E talvez, facto não menos importante, por alguns daqueles delegados, de Ponta Delgada e da Ribeira Grande, serem irmãos nas mesmas lojas maçónicas. Fosse como fosse, para selar esse pacto, teria havido um acordo de cavalheiros. Não passaria de uma aliança pontual. Seria o velho eixo Ribeira Grande/Ponta Delgada a funcionar? Tivera êxito, entre outros assuntos, no século XVI para a retirada da Alfândega de Vila Franca ou a concessão do porto dos Carneiros à Ribeira Grande. Em que consistiria esse acordo? Tentando manter o Tribunal da Relação dos Açores (em Ponta Delgada), Ponta Delgada não dispensou o apoio dos Concelhos da Ilha, sobretudo (pelo seu decisivo peso político) o da Ribeira Grande. E, obviamente, em troca, a Ribeira Grande terá pedido (e alcançado) contrapartidas. Tanto mais que, nenhum dos ‘eleitores’ da Ribeira Grande ia em lugar elegível para o Parlamento? O poder destes dois concelhos, ‘obrigá-los-ia’ a cultivar uma relação de respeito mútuo. Sem quaisquer subserviências. Quais (eventualmente) seriam os projectos desejados pela (elite) Ribeira Grande? É provável que desejassem ‘verbas’ para as obras no porto de Santa Iria. E o tema da cidade terá vindo a lume? É provável. No entanto, era preciso usar pinças. Vila Franca, a outra cabeça de Comarca da Ilha e a terceira perna do poder da Ilha, não poderia ser esquecida. Aguardaria com expectativa o desfecho da proposta? Para também se candidatar? E Loureiro era proprietário na comarca de Vila Franca.22 Mais uma razão para a inexistência de apoio oficial aberto à ideia? Apesar de o projecto não ter sido (ao que parece) inicialmente prioritário, acabaria por avançar. Porquê? Porque (especulo sempre), até ao mês de Junho, Loureiro não apresentara nada em favor da Ribeira Grande. Nestas circunstâncias, é provável que as tertúlias das duas sociedades da terra (ou os convívios na banca do tabelião José Loureiro) lhe tenham feito chegar o seu descontentamento pelo seu irmão José. Havia, pois, que dar algo que alimentasse o ‘sonho’ da Ribeira Grande. No entanto, antes de tomar uma decisão (continuo a supor), deverá ter pedido ‘conselho’ ao Governador Civil - Félix Borges da Ponte. E a gente influente do seu círculo? José do Canto e a José Jácome, de quem tinha procuração para tratar em Lisboa de demandas. Pretenderia (suponho) garantir o seu futuro como Parlamentar, apesar de declarações em contrário, já quando sabia que iria ser substituído. Aconselhando-se ou indo apenas pela sua cabeça, avançou. João ainda precisava de alguns dados para elaborar a proposta. A quem os pedir? Ao irmão José da Câmara Loureiro (n. c. 1813 – São Sebastião- Ponta Delgada), quatro anos mais novo do que ele. Suspeito que José tenha servido de ‘olhos e ouvidos’ do irmão na Ribeira Grande. Queria manter-se a par do que na terra se ‘comentava’ sobre a sua actuação em Lisboa. Era tabelião aí estabelecido (pelo menos) desde 1846.23 A sua banca de tabelião, a sua (provável) frequência da Sociedade Escolástica e a ida à igreja, faziam dele um interlocutor por excelência do irmão. Sabendo que José era irmão do deputado Loureiro, é provável que as pessoas o abordassem. Além disso, os irmãos tinham outros motivos para trocarem correspondência. Haviam de querer saber novidades dos filhos. Para o que João precisava, José terá falado com o ouvidor do Eclesiástico António Feliciano Rémy (n. c. 1799 – f. 1864 – Matriz RG). Era a pessoa certa para lhe indicar o número de ruas, de Freguesias, de Lugares, de habitantes. Como ouvidor, verificava os Róis de Confessados, onde constava essa informação. Rémy exerceu o cargo de Ouvidor de 1835 até à sua morte em 1864. 24 Remy e João pertenciam (ou haviam pertencido) à maçonaria e faziam ainda parte (desde o início) da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense (SPAM). O vizinho de rua de José Loureiro, António Júlio de Melo seria outro potencial informador. Nascera na Ribeira Grande (Matriz) em 1806,25 e ainda estava vivo na Quaresma de 1892.26 Fora (ou ainda era) mação na Loja União Açoreana, tal como António Bernardo da Costa Cabral, José Maria da Câmara Vasconcelos, Ildefonso Bicudo Correia, José do Canto e o pai. Em 1835, na contenção da ‘Revolta dos Calcetas,’ é tenente do Corpo de Voluntários da Ribeira Grande ao lado de José Maria e de Costa Cabral, futuro Marquês de Tomar. Era professor de latim (Rodrigo Rodrigues diz que era de Filosofia). Interessava-se pela História. Veja-se o que fez para honrar a memória de Gaspar Frutuoso.27 Na década de setenta, faria parte da Comissão encarregada da elaborar os Anais da Ribeira Grande. Ainda outro (provável) informador, igualmente vizinho da Rua das Freiras, seria José Maria da Câmara de Vasconcelos. Seria fundador do jornal A União, e membro da Associação para o desenvolvimento da Ribeira Grande. Fora um dos fundadores e primeiro redactor do Açoriano Oriental.
Na posse da (pouca) informação que pedira (ou eventualmente já trouxera da Ilha), o resto deveu-se à sua formação de jurista, Loureiro redigiu a proposta de projecto de lei de elevação da Vila da Ribeira Grande a Cidade. Instruiu (meio à pressa?) a proposta. Antes, terá (quero crer) passado os olhos (ou conversado com alguém que o havia feito) pelos alvarás de elevação a cidade de Tomar, de Viana do Castelo e da Horta. Loureiro não se livrara da suspeição (confirmada) de ter sido miguelista militante. Nem a Ribeira Grande da má-fama de centro reacionário. Apesar dos seus liberais, estivera associada (bem ou mal) à revolta dos Calcetas de 1835. Mantivera presos nos seus cárceres ‘heróis faialenses da liberdade’ libertados após a escaramuça da Ladeira da Velha. Limitou-se a apresentar o projecto. A piorar ainda mais a situação, Loureiro apresentou-o ‘tarde,’ numa altura em que (possivelmente) já ‘circulariam rumores’ da queda eminente do Magistério. Porquê? Seria por ingenuidade? Por calculismo? Quis travar a ideia? Havia outras prioridades? Contava seguir a proposta quando fosse eleito para a próxima legislatura? Vamos tentar saber nos próximos números?
Lugar das Areias – Rabo de Peixe
Mário Moura