Padre Weber Machado, no Dia Mundial da Pobreza

“Estão a tratar os pobres dos Açores com comprimidos, quando deviam era fazer cirurgia à pobreza”

 Monsenhor Weber Machado tem 91 anos. Nasceu a 6 de Outubro de 1931 em Água Retorna, onde frequentou a escola primária até à quarta classe. O pai esperou dois anos para que algum familiar proporcionasse um espaço em sua casa, em Ponta Delgada, para Weber Machado estudar no Liceu ou na Escola Industrial, esse dia. nunca chegou. Até que o padre Carlos, pároco local inquiriu o pai: “E e o Weber fosse para o seminário?” A resposta do jovem foi um “sim”. “E atenção que eu, em criança, não fazia altarinhos”, afirma . O que aconteceu foi que a mãe, mesmo já na terceira e na quarta classe fazia promessas para Weber ir com ela à missa e comungar. Fazia-se novenas para ir nove dias seguidos à missa. “Enquanto criança, era o único que ia à missa de manhãzinha e isto não é uma coisa que seja lá muito fácil. Durante as férias era certinho, porque ela fazia a promessa de ir comigo à missa durante nove dias seguidos, e eu aceitava a promessa da minha mãe”, afirma. E o facto é que esta insistência da mãe contribuiu, em muito, para que aceitasse ir para o Seminário de Angra, como hoje admite o padre Weber.

O Seminário de Angra…
“Comecei a gostar do Seminário, era muito bom aluno, tive sempre excelência em todos os anos. Ainda tenho os meus diplomas e era distinto em todas as disciplinas, excepto no quinto ano em inglês. Chego ao 11.º ano e tive muitas actividades extra-curriculares, pois fundei um clã de escuteiros caminheiros no Seminário, (…) e, naturalmente, eu fui o primeiro chefe e ainda hoje existe o escutismo no Seminário.

Uma família humilde...
Dentro da freguesia, a minha família era das mais remediadas. O meu pai era carpinteiro e muito trabalhador. Era também ferreiro, ladoeiro e fazia de tudo para ganhar algum dinheiro. O meu pai, dentro da sua família, foi o primeiro a trabalhar. Até aí, todos viviam dos seus rendimentos do morgadio que tinha a sua sede na Somada do Nordeste. Acabou a lei do morgadio e foi-se dividindo o que havia por todos. A minha bisavó foi para lá e casou com um senhor da Ribeira Grande, o meu pai foi o primeiro, foi muito inteligente, e a minha família era daquelas que vivia com menos apertos.”

“Há mais pobreza nos Açores”

Hoje é o dia Mundial da Pobreza. Já falámos várias vezes sobre pobreza, mas hoje – mais do que no passado – sente que há mais pobres nos Açores?
Sinto que há mais pobreza nos Açores. Já houve tempos em que estava mais a par destas situações para poder responder com verdade. Hoje, tenho a sensação, pelas pessoas que encontro e que visito, que existe muita pobreza. E dói-me muito a pobreza. A satisfação de necessidades básicas de qualquer pessoa não pode ser posta em causa para que alguns, mesmo que sejam muitos, possam alimentar os seus vícios.
A doutrina social da Igreja é bem clara neste aspecto. Os bens da terra destinam-se, originariamente, a todos os homens e mulheres, e se as pessoas, por iniciativa própria, não forem capazes de entender que ter acesso a um bocado de pão para matar a fome ou a um abrigo para se abrigarem está primeiro do que alguns dos seus “luxos”, então o Estado, que detém o poder, deveria fazer uso dele, sem subterfúgio para aplicar os correctivos necessários e indispensáveis para por cobro a tantas injustiças que, impunemente, costumam ser cometidas à vista de todos. E o Estado não está a cumprir o seu dever.
Lutar por uma sociedade em que o sol nasça para todos, evitando assim que alguns sejam condenados a viver sempre na escuridão, é um dever que se impõe a todos aqueles,  - e deveriam ser muitos - que, cruzando-se com os outros homens e mulheres, vejam neles pessoas detentoras de dignidade inerente a todo o ser humano e que urge defender.  
A pobreza não é uma realidade nova, mas o que é novo é o brutal contraste que existe nas sociedades ditas desenvolvidas entre a existência, de facto, de bem-estar de muitos e as situações de carência de recursos de outros para viver com o mínimo de dignidade. A novidade de hoje, acima de tudo, é que na sociedade em que vivemos existem recursos mais do que suficientes para, senão erradicar a pobreza, pelo menos para reduzi-la a situações menos agressivas.
Alguns pensam que só determinadas profissões dão direito a ter uma vida razoável, mas todos são necessários. Aqui há uns anos houve uma greve dos trabalhadores que fazem a recolha do lixo e a cidade ia entrando em colapso. Foi nessa altura que muitas pessoas se aperceberam de que os profissionais da recolha do lixo são pessoas importantes na nossa sociedade, e como são pessoas importantes, têm direito a viver com dignidade. Não tenhamos medo de dizer isto. A sociedade que temos é uma sociedade estruturalmente injusta.
Alguns são cada vez mais ricos e outros cada vez mais pobres…
Sim, mas este não é um problema que deva dizer respeito apenas a duas ou três pessoas, é um problema que deveria ser da sociedade: criar novos critérios, acreditar que todos são humanos, acreditar que todos têm direito a viver com alguma dignidade. Não digo que hoje seja possível erradicar a pobreza. Erradicar a pobreza é um patamar demasiado alto, mas pelo menos tornar muita da pobreza que existe menos agressiva, em relação aos Direitos Humanos que as pessoas têm. Agridem-se pessoas com uma facilidade extraordinária e sem dar por isso. Alguns dizem que não vêem pobres, e outros, quando os vêem, viram a cara para o lado.
Ana Paula Ramos dizia que os pobres incomodam muita gente, mas eu não digo que incomodam; digo que deveriam envergonhar muita gente na nossa sociedade, uma sociedade que dispõe de bens para uma distribuição equitativa para todas as pessoas e que não o faz. Cada vez há mais ricos, gente que ganha montes de dinheiro em ordenados. Depois, quando há um aumento das pensões, por exemplo, o que acontece é incrível…

Quando se fala no aumento de pensões ou do ordenado mínimo, isso, no fundo, acaba por ser migalhas?...
Pois, é verdade. Aqui há tempos, na Assembleia Regional, reuniram-se para aumentar a remuneração compensatória. A 4 de Maio de 2014, um dos nossos diários dava a notícia de que as pensões acima de 2.430 euros teriam um aumento de 100 euros em 2015, enquanto as de 1.050 euros beneficiariam de 15,75 euros. Já as abaixo de 1.025 euros teriam um aumento de 4,50 euros. Os que não precisam de aumento nenhum tiveram o aumento maior.
(…) Em 2014, 7,5% dos açorianos recebia o Rendimento Social de Inserção (RSI). Em São Miguel eram 10%, enquanto nas outras ilhas, como Faial e Pico, 1,5% das pessoas recebia RSI, números mais aceitáveis. Dez por cento é muito, porque o RSI é um indicativo de que as pessoas são pobres. Os assistentes sociais e os técnicos estão aí para ver se alguém está a enganar, porque a grande maioria precisa mesmo disto para sobreviver. É que alguns pensam que os pobres têm apenas direito a um pedaço de pão para matar a fome, e não é assim.
Em 1958, estando em Roma a estudar Teologia na Universidade Gregoriana, fui ver um filme no salão de uma paróquia próxima do Colégio Português. À entrada, estava um homem de mão estendida a pedir esmola. No intervalo do filme, vimos o homem sentado lá numa cadeira a ver o filme, e um colega meu disse-me “estava a pedir esmola e agora veio ver o cinema”, ao que respondi, “um pobre não tem direito de ver um filme?”. O homem reflectiu e admitiu que ver um filme numa casa tão modesta como aquela era um direito das pessoas.

Família com bens penhorados
que acabou por ficar com tudo...

Um outro caso aconteceu com uma senhora de Rabo de Peixe. Os seus bens móveis tinham sido penhorados. Ela fez uma listagem dos bens que foram penhorados e eu perguntei-lhe se não fosse possível resgatar todos os bens, quais os que ela tinha interesse em resgatar. Ela fez uma listagem e não tinha incluído o televisor. (…) Ela disse “não me tire o televisor, porque eu tenho três filhos que estão habituados a ver alguns programas, se lhe tirar o televisor eles irão para a rua”. Dei-lhe toda a razão. Na altura, para os filhos, não ter televisor era uma exclusão social tremenda. Empenhei-me muito nisto, o solicitador também ajudou, os donos das lojas colaboraram e todos os bens que estavam penhorados ficaram em casa da mulher (….).
Há tempos entrei num bar para beber um sumo, e entrou também um homem pobre que tinha estado a pedir esmola e que pediu uma cerveja e um maço de tabaco. Aparece logo uma voz a dizer que estava a pedir esmola para beber uma cerveja e comprar um maço de tabaco. Mas, digo eu, aquele pobrezinho não tinha o direito de beber uma cervejinha e comprar um maço de tabaco? É uma mentalidade terrível esta de que só alguns têm direito a determinadas coisas.

Há, na sociedade açoriana, um problema que também é visível. Para aqueles que ganham menos, os aumentos são muito mais inferiores do que em relação àqueles que ganham mais. Isto é uma cultura da injustiça?…
Isto começou quando os aumentos eram percentuais ao ordenado. O Marcelo Caetano fez uma vez um aumento de mil escudos a cada trabalhador. Quer fosse quem ganhava muito, quer quem ganhava pouco, todos receberam um aumento de mil escudos.

O mesmo acontece hoje com as creches grátis para todos…
Que necessidades têm determinadas pessoas que o Governo pague a creche? Ao passo que alguns dos que têm direito à creche gratuita, para além da creche, precisavam também de outros aumentos para acudir a necessidades extremas que têm.

Precisavam de uma casa melhor, de ter um rendimento melhor…
… De ter uma mesa para poderem comer e para porem os livros para os filhos estudarem. O nosso sistema escolar é gratuito para todos, mas para passar a quarta classe é preciso passar uma rede. Essa rede tem uma determinada malha e há muitos que não conseguem atravessar a malha.

Porquê?
Já houve tempos em que se atravessava a malha com toda a facilidade porque a alargaram, mas agora já está mais difícil. Muitos têm a facilidade de passar a rede passando por cima, mas há outros que, à mercê das suas circunstâncias familiares, sociais, do interesse da família, de ter pessoas em casa que não os ajudem nos trabalhinhos de casa, que não têm essa possibilidade, ficam do lado de cá da malha...
Estes que não passam a malha da rede não têm condições, o pai não sabe ler, a mãe não sabe ler. Nuns artigos que escrevi, propus que as crianças, conforme as dificuldades que tinham em casa para estudar, ficassem na escola com direito a um lanche. Sugeri também que houvesse um monitor que os ajudasse nos trabalhos de casa e mais alguma coisa que fosse necessária porque, de outra maneira, o insucesso escolar, seria esta desgraça que temos por aí. O insucesso escolar não está nos filhos dos advogados ou dos médicos, está é naqueles pobres, naqueles que, mesmo trabalhando ou que não sabem ler, não têm possibilidade de pagar um explicador, e é o Estado que deveria cuidar desta gente, dando o tal lanche para que eles continuassem a gostar de estar na escola e os monitores para os ajudar nos trabalhos de casa e em mais alguma coisa para que tenham as condições que os outros têm.

… Que os outros têm nas suas casas porque têm pais que os sabem ensinar, têm espaços dentro de casa onde podem estudar, e mais…
Sim, têm um quartinho para estudar. Há tempos fui a uma casa visitar uma família que vivia num quarto. Uma mãe e uma filha. Nesse quarto, havia uma cama e duas cadeiras. Não tinha uma mesinha, não tinha um guarda-fatos, não tinha absolutamente nada, e aquela criança estava na quarta classe. Perguntei-lhe pelas notas e fiquei pasmado. Costumava ajudar um pouco essa família.
Depois, essa família deixou de dormir no quarto e foi viver para um apartamento e viveu lá 14 anos. A criança tirou a quarta classe, que não tinham terminado e no oitavo ano chumbou porque alojou-se um computador e a pequena, deslumbrada com o computador, no segundo período não estudou nada, teve notas muito baixas e perdeu esse ano. Repetiu o oitavo ano e nunca mais fez exames. Hoje é enfermeira e é uma boa enfermeira.
(…)
Há uns anos fui ao liceu dar uma aula a uma turma sobre estas questões de pobreza, de direitos sociais e de injustiça. Apareceram três turmas na biblioteca e um professor perguntou-me se eu conhecia essa aluna que dispensou dos exames e que é enfermeira, e se era “daquelas do rendimento mínimo”, e eu disse que era. E ele respondeu-me: “é o único caso de uma pessoa com o rendimento mínimo que tem feito o que ela fez”.

Nas condições em que ela vivia antes, não chegaria a enfermeira…
Não chegaria a enfermeira de certeza absoluta, iria chumbar muitos anos.

Há a crise, há a inflação, os preços sobem, os pobres ficam mais pobres.
Os pobres vão sofrer muito com esta inflação, a não ser que resolvam apoiar esta gente com bens alimentares, mas não é bens alimentares de esmola, é de direito.

O preço do pão está sempre a subir…
Há um pão que custava 1,25 euros, ontem fui comprar esse mesmo pão por 1,39 euros.

Imagine o preço dos outros bens a subir e imagine quem ganhava um ordenado que não dava até ao fim do mês, como vive agora essa família?
Os nossos indicadores sociais são o que são, mas isso é tudo fruto da pobreza. Aqueles indicadores de insucesso escolar e que nos põem sempre na cauda. Não podemos viver impávidos e serenos numa sociedade onde uma parte considerável dos seus membros tem a possibilidade de satisfazer os seus desejos e alguns destes desejos ofendem as pessoas “normais”, enquanto outros nem capacidade têm de prover as suas necessidades básicas.

É  com cinco, dez ou 20 euros que se vai resolver a pobreza?
Não, é com a promoção das pessoas!

São dez euros para as pensões, outros dez euros para outra coisa, mais dez euros para outra; um complemento para aqui, outro complemento para ali e enche-se a boca a dizer isso. É com esse dinheiro que se vai resolver o problema da pobreza?!
Não senhor, tem que ser com a promoção das pessoas para que elas possam sair da miséria, e nisso a Educação é fundamental, mas muitas crianças são filhos de pais que não sabem ler, e alguns até dizem que não sabem ler mas que estão a fazer a sua vida, embora miserável. Depois, lemos nas notícias que está a aumentar a venda de carros novos . Apesar desta crise toda, está a aumentar a venda de carros novos.
(…) Esse dinheiro, de quese  fala, - que dão aos pobres -  são comprimidos! Quando o que era necessário era uma cirurgia e haver coragem de fazer essa cirurgia, cortar onde for possível cortar, mas sobretudo em aumentos. Isto para que as pessoas que já vivem lá por cima não tenha aumentos; e aumente-se mais naqueles que recebem salários mínimos.
Para sair da pobreza absoluta é preciso ter um cabaz de bens razoável. Fui a um supermercado ver e pedir a quem lá trabalhava para juntar esses bens todos para ver quanto dinheiro custava esse cabaz. O rendimento mínimo que a família recebia apenas dava para esse cabaz se fosse para comer, e se não tivesse esse cabaz, vivia na miséria.

O rendimento mínimo não dava para pagar esse cabaz e ter ainda dinheiro para outras despesas necessárias, água, luz…
Não dava. E a questão das listas de espera dos hospitais? Quem é que está na lista de espera dos hospitais? Não são os que têm dinheiro, porque esses vão para os médicos particulares que ganham muito dinheiro. São aqueles que não têm possibilidade de ir à medicina privada, são os pobres que estão a aumentar a lista de espera tanto para cirurgias como para consultas.

O Rendimento de Inserção Social…
O Rendimento Mínimo criou alguns vícios. No começo, para receber Rendimento Mínimo, a pessoa não era obrigada a nada. Só tinha direito a receber o rendimento. Já com o Rendimento Social de Inserção, já há alguns deveres e é bem melhor. Mas, ainda assim, há pessoas que estão a pensar como se fosse o Rendimento Mínimo, sem obrigações.
Quem recebe o Rendimento de Inserção Social não pode trabalhar para auferir outros rendimentos. Pelo contrário, deviam era ser obrigados a trabalhar. Na minha terra há tantos terrenos que estão abandonados e eles podiam ter batata, cebolas, alhos, feijão, favas, sem serem penalizados. Isto serviria para lhes dar um outro nível de subsistência, de sobrevivência, porque já não tinham de comprar estas hortícolas. Recebiam Rendimento Mínimo para alguns bens, mas deviam estar a trabalhar nos terrenos abandonados para terem um complemento com o que a terra produz.

Com esta evolução da inflação e aumentos de preços, como vê o futuro da pobreza nos Açores se continuarem “a dar comprimidos em vez de fazerem cirurgias” à pobreza?
Vão passar fome. Vão passar fome. Ficam sem dinheiro para comprar pão. Vai acontecer. Agora, com o que têm actualmente e a inflação que há, vão passar fome.

Era um grande defensor dos sem-abrigo…
Olhe, estou à procura de uma casa para os sem-abrigo. Há uma situação de violência tremenda sobre cada um deles…

Mas eles não querem casa…
Eles querem casa. O que acontece é que, em muitas casas, eles não têm condições para aceitar determinadas exigências que lhes fazem, é só por causa disso.

Mas não acha que essas exigências são necessárias?
Por exemplo, exigir que não tenham bebido ou que não bebam… Quando era Presidente da Cáritas, as casas eram chamadas de abrigos e eles gostavam de estar nos abrigos. Agora é o “hotel”. Eles tinham a chave da porta. É uma mentalidade diferente que é preciso ter com estas pessoas. Eles não querem colaborar, dizem as assistentes sociais. O querer, eles querem, mas o seu querer é tão fraco que não dá para aceitar certas exigências que lhes são feitas. Eles querem, mas é um querer que não tem força. Temos que ser mais maleáveis com eles, e, mesmo nestas circunstâncias, reabilitei muitos sem-abrigo que estão agora a trabalhar.

João Paz/Joana Medeiros

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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