Correio dos Açores: De onde é natural?
Rosélio Reis: A minha família é toda natural de São Miguel, de Ponta Delgada, tirando o meu avô que era espanhol. Nasci na Rua João do Rego, no número 102, e vim para Santa Maria com um ano de idade porque o meu pai foi trabalhar para o aeroporto.
De que forma o facto de ter crescido perto do Aeroporto de Santa Maria marcou a sua infância?
No tempo em que me criei, e até ir para a Gulbenkian, a minha vida concentrava-se toda no aeroporto porque ali tínhamos tudo o que era necessário, com a excepção de roupas, pois quando era pelo Natal a minha mãe ia sempre à Vila comprar umas roupinhas para estrearmos, mas era pouco mais do que isto. Tínhamos uma cantina preparada, tínhamos o aeroporto, tínhamos o Asas, tínhamos regalias e várias actividades por lá. Na Vila era muito mais fechado. Havia alguns espaços abertos desde o tempo dos americanos, mas nada de especial, a maior parte da malta estava concentrada dentro do aeroporto.
Mantém ainda hoje uma relação próxima com São Miguel?
Sim, costumo vir a São Miguel muitas vezes e tenho um apartamento. Em São Miguel tenho também as minhas três filhas que tiraram os seus cursos superiores e que ficaram na ilha. Em Santa Maria, sou apenas eu e a minha mulher, Filomena Reis, já nem a minha empresa no ramo da construção civil tenho. Apesar de toda a minha actividade, depois de passar à reforma montei um negócio e o meu tempo era todo absorvido pela empresa, não me deixando tempo para mais nada, por isso estou a ver se a consigo vender, e não tenho praticamente nada que me prenda a Santa Maria, por isso, é muito provável que um dia acabe por regressar a São Miguel.
Como foi o seu período na escola em Santa Maria?
Foi marcado pelo Externato e por explicadores, tudo dentro do Aeroporto. Quem quisesse ir além do quinto ano tinha que sair de Santa Maria. Primeiro ia para São Miguel, e depois ia para o continente, no mínimo, mas só a alta burguesia da ilha é que tinha alcance para isso. No princípio nunca me cheguei muito aos estudos, depois o meu pai tirou-me do colégio e eu estive com explicadores que me habilitaram para o quinto ano, mas a vida tomou outro caminho e parei por aí os estudos.
Era obrigado a ajudar a família de alguma forma?
Embora não fosse muito obrigado, ajudava e trabalhava. No princípio, fui acólito na Capela do Aeroporto, ou seja, ajudava à missa e tocava os sinos. O padre pagava-me 170 escudos, mas depois arranjei um sócio e ele pagava-lhe 70 escudos enquanto eu ficava com os outros 100.
Depois fui para a biblioteca do Clube Asas do Atlântico, com 13 anos de idade, onde fazia serões até o Asas fechar. Foi, por assim dizer, o lugar onde adquiri mais cultura porque conversava com sócios antigos, e depois, quando nos instalámos na nova sede da biblioteca, ainda mais. É engraçado, pois embora fosse um miúdo, era aceite na conversa dos adultos, e isso trazia-me muitas vantagens. Eram 300 escudos por mês, hoje 1,5 euros por mês. Depois, o Carlos Matos, responsável, como sabia que eu tinha jeito para escrever, lá me pôs a fazer os noticiários e assim ganhava mais 200 escudos.
Foi nesta fase que começou a ter gosto pela leitura e pela escrita?
Gostava de saber porque é que as pessoas gostavam de ler determinados livros, e é claro que isto facilitou a aquisição de uma cultura que de outra maneira, se calhar, nunca adquiriria. Acima de tudo, tenho uma grande experiência a trabalhar com bibliotecas, e quando havia dinheiro para ir comprar mais livros na papelaria, eu é que ia lá e dava palpites para o que as pessoas queriam e não queriam, mediante a oferta que a papelaria tinha.
Quando se candidata para trabalhar com a Fundação Calouste Gulbenkian?
Eu comecei a trabalhar para a Gulbenkian em Agosto de 1967, e até que é uma história engraçada. Candidatei-me à Fundação por indicação de um senhor chamado Orlando Branco, que nunca mais consegui localizar. Na altura, eu tinha 17 anos, mas de qualquer maneira enviei uma carta para a Gulbenkian a candidatar-me, e sei que a carta chegou lá e não ficou esquecida. Parece que a carta tinha ficado à espera de que eu fizesse 18 anos, e pediram-me para frequentar um curso com Nuno Álvares Pereira, encarregado da Biblioteca de Ponta Delgada, e eu estive lá.
Depois, fui fazer exame à Terceira, com Baptista de Lima, inspector nos Açores da Gulbenkian, mas para tudo isto eu tive que pedir dinheiro emprestado. O meu pai não o tinha, então fui à sucursal de um banco aqui em Santa Maria e o meu pai foi para assinar, mas foi a primeira dívida em que me meti, por 1.500 escudos, o que era muito dinheiro para a altura, mas mesmo assim tive coragem. Tinha tanta certeza de que se houvesse seriedade neste concurso que o lugar era meu, que não pôs problemas nenhuns em pedir dinheiro emprestado a um banco, porque de certeza que pagaria o empréstimo.
O que relembra dos primeiros dias de trabalho ao serviço da biblioteca itinerante n.º 58, em Santa Maria?
Aconteceram várias coisas engraçadas logo no princípio da minha actividade, e a primeira coisa que aconteceu quando começámos a trabalhar foi ter ido para a biblioteca com um casaquinho, com uma gravata, todo arranjadinho, quando entrou pela porta o senhor Castanheira, que vinha da Graciosa, e que trazia um chapéu de palha, uma t-shirt. Ele olhou para mim e disse: “Você não precisa vir de fatinho para aqui para não criar distância entre os leitores”. Claro que logo tirei a gravata e deixei de andar apinocado (risos).
Nesse tempo, uma das obrigações que tive foi a de falar com o Presidente da Câmara para arranjar um lugar de garagem para a carrinha. Era o senhor Ernesto Arruda, de “sangue azul”, e eu só pensava como é que um miúdo de 19 anos – como eu me considerava na altura – ia fazer isso. Mas fui muito bem recebido, e ele fez o que eu queria, não houve problema nenhum.
O que é que as pessoas gostavam de ler na biblioteca n.º 58 antes do 25 de Abril?
Tudo o que tínhamos lá. Muitas vezes as pessoas iam pelo aspecto da capa, se a capa tinha uma cor bonita e sugestiva as pessoas queriam levar o livro, só que havia lá livros de filosofia – que eram colocados nas prateleiras mais altas – que não estavam ao alcance de qualquer pessoa, e eu acredito que uma das piores coisas que pode desmotivar uma pessoa da leitura é ler um livro sem perceber nada do que ele diz. Por isso, se queremos arranjar leitores, não se deve deixá-los iniciar a leitura de livros sem interesse para eles, (…) e nestes casos em especial, as pessoas levavam também livros recomendados por mim.
As crianças eram um caso à parte, porque gostavam de escolher os seus próprios livros e gostavam sempre dos contos nacionais portugueses, já as senhoras escolhiam livros como o “Amor de Perdição” e a “Rosa do Adro”, dois livros muito famosos ali. É claro que havia lá livros que, pelo título e pela capa, não sabíamos o que lá havia dentro, e às vezes tinha que ler na diagonal para ver se havia alguma coisa contra-indicada, e houve uma vez que entreguei um livro à filha de uma leitora, e ela depois veio devolver o livro muito zangada porque havia lá algumas coisas que, de facto, algumas pessoas não aceitam de bom gosto, mas não era nada tão ofensivo quanto isso. Havia ainda um livro chamado “A nudez de tua filha”, que era um bom livro educativo, mas que eu não podia recomendar devido ao título.
Houve alturas em que chegou a levar a sua mulher para a biblioteca itinerante...
Ah, sim, é verdade! É uma coisa engraçada, porque de facto trabalhavam na biblioteca só dois homens e, embora tivéssemos um comportamento dignificante, reparei que, nas vezes em que o motorista não podia trabalhar e que, para não ir sozinho, levava a minha mulher e as raparigas, o género que mais frequentava a biblioteca, tinham uma abertura diferente. Chegavam lá e pediam livros de educação sexual, temas em que, quando estávamos lá os dois funcionários, nem se ouvia falar.
Alguns leitores pegavam nos livros e escondiam debaixo dos outros, e eu fazia o possível para não dar a entender que percebia o que estava a acontecer, não vasculhava nem conferia as requisições, e soube mais tarde, quando me contaram, que as moças quando chegavam a casa escondiam os livros na rua, porque os pais queriam saber o que é que elas tinham requisitado, e só à noite é que iam buscar o livro.
Houve alguma resistência aquando da chegada da biblioteca itinerante à ilha?
O padre da freguesia observava ao longe quem é que entrava e quem é que saía da biblioteca, e assim que apanhava essas leitoras dizia-lhes que elas não precisavam de ir àquela biblioteca, porque tinham a biblioteca da igreja e que lhes emprestava os livros que quisessem, embora fossem todos livros que falassem da religião e todos feitos pela própria Igreja. As raparigas comentavam e ele ficava sempre lá, e fez essa ameaça duas vezes até que tive que tomar providências para que o padre percebesse que não estávamos a fazer mal nenhum.
Quando começámos a trabalhar, chegávamos aos sítios e havia avós que mandavam as crianças entrar em casa, e pelas cortinas víamos eles a espreitarem a ver se ainda estávamos lá, mas só depois de sairmos é que essas crianças voltavam para a rua.
Em Santa Bárbara também aconteceu um caso parecido. Nós parávamos mesmo ao lado da escadaria da igreja, e as pessoas apareciam ali, ao longe, a olhar, mas ninguém se chegava, eu é que tinha que chegar a eles, entrar nas lojas, falar com as pessoas, tudo para ver se as pessoas se chegavam mais. Tinha que ir às mercearias e tabernas, e embora não gostasse e continue a não gostar muito de vinho, tinha que ir lá tomar um licorzinho ou qualquer coisa, para verem que eu também sou humano.
Como é que se encarou o encerramento da biblioteca itinerante?
De um momento para o outro criou-se a biblioteca municipal. Já não se justificava a biblioteca (móvel) porque as pessoas, com o aparecimento da televisão, acabaram por desistir delas, ligavam a televisão quando estavam em casa e não tinham que se chatear a ler. Essa foi uma das razões para a desactivação da biblioteca, não se justificando andar em volta da ilha toda porque às vezes as pessoas nem apareciam.
Na Vila, havia algumas pessoas interessadas, inclusive no aeroporto, mas as distâncias aqui são curtas, quase toda a gente tem carro e tem possibilidade de ir à biblioteca pública hoje em dia e naquele tempo, por isso, se calhar, foi uma boa medida. (…) Mas quando a biblioteca fechou passei a fazer o serviço no meu carro privado, em contradição ao que tinha sido determinado pela Direcção da Fundação Calouste Gulbenkian, pois tive que fazer a recolha dos livros e dar uma explicação às pessoas. Ia aos lugares habituais e explicava o que tinha acontecido, mas esta história do encerramento da biblioteca tem muito que se lhe diga e dava para escrever um livro.
Perdeu o emprego?
Não perdi, mas mais tarde pedi a reforma da minha actividade, aos 42 anos. Disseram-me que com essa idade seria impossível, mas que iam ver. A biblioteca fixa tinha lá o seu encarregado e a outra pessoa era eu, eu como encarregado da Gulbenkian e ele como encarregado do município. (…) Quando pedi a reforma eles disseram: “enquanto na biblioteca só houver um funcionário da Câmara, não”. Então arranjei uma estratégia e convidei um amigo, dizendo ao Presidente da autarquia que ele seria muito útil. Aceitou e eu liguei para a Fundação a dizer que a biblioteca já tinha um segundo funcionário. Pediram-me um tempo para pensar, e ao fim de um mês fui para a reforma. Sentia que não estava lá a fazer grande coisa, que tinha mais coisas para fazer.
Este foi um projecto valioso para a literacia em Santa Maria?
Se houve coisa boa que aconteceu no nosso país, e principalmente nas ilhas mais desprotegidas, como é o caso de Santa Maria, que tirando a biblioteca do Asas não tinha recurso a nenhuma biblioteca, foi isto.
É também escritor e já publicou três livros. Tem novos projectos entre mãos?
Todos têm o mesmo título, “Instantes do Passado”, e são crónicas que eu escrevi no Facebook mas que várias pessoas pediram para publicar em livro. (…) Preparei o livro para enviar a um editor em Ponta Delgada mas ele não me respondeu. Ainda falei com outro editor, que me disse que este tipo de livro não dava lucro, mas eu não estou a pedir favores a ninguém, queria pagar. Fui à Chiado, a Lisboa, e ao fim de uma semana mandaram-me uma proposta que eu aceitei e publiquei.
Entretanto começou a pandemia e, claro, estive mais tempo em casa e meti-me a escrever sobre a biblioteca, mas são tudo crónicas e algumas coisas têm a ver com a vida que havia aqui em Santa Maria, sobre instituições que não existiam, talvez, no resto das ilhas. (…)
Mais recentemente trabalhei num livro sobre uma tia minha, uma professora muito popular, Ângela do Espírito Santo Isidro Alonso, que esteve na Candelária, nos Arrifes e aqui em Santa Maria. Ela escreveu alguns contos e publicava-os no jornal Açoriano Oriental, e então resolvi fazer uma espécie de introdução e resenha da vida dela, e publicar os contos e outros documentos que ela tinha. Este livro está para a editora, deverá sair muito em breve e conto apresentá-lo em São Miguel.