Quantas pessoas estão actualmente em tratamento na vossa instituição?
Estamos a intervir junto de 1.186 pessoas que estão, maioritariamente, integradas em programas livres de droga. Ao nível de programas de redução de danos temos 240 pessoas integradas e, no tratamento de opiáceos temos 266 pessoas neste momento a cumprir este programa. Qualquer pessoa pode dirigir-se à ARRISCA para iniciar um tratamento e isso pode ser feito de uma forma directa: a pessoa dirige-se às nossas instalações e é feita uma avaliação inicial com atendimento de plantão. De seguida, é direccionada para o serviço clínico onde é efectuado todo o diagnóstico. Posteriormente, é realizada uma triagem para perceber qual o programa que melhor se adequa à situação em causa. Podem, depois, existir aqui encaminhamentos de várias entidades, desde o Tribunal, entidades de autoridade, PSP ou outras instituições parceiras.
Esses encaminhamentos têm aumentado nos últimos tempos?
Ao longo dos anos temos sentido um aumento dos encaminhamentos. As pessoas estão cada vez mais despertas, esta é uma realidade presente na nossa Região e, obviamente, quando existe procura por um tratamento, é um bom sinal. Temos de apoiar estas pessoas que estão finalmente à procura de ajuda e não estigmatizar e marginalizar, como muitas vezes é feito. Esses encaminhamentos são feitos do hospital, de centros de Saúde ou médicos de família, ou seja, há toda uma rede que, quando é identificada uma determinada situação relacionada com o consumo de substâncias psicoactivas, pode realizar um encaminhamento para a nossa instituição que vai procurar, dentro das suas respostas, a melhor. Isso pode passar por um tratamento em ambulatório ou por um internamento, que é feito em articulação com a Casa de Saúde de São Miguel ou com as várias entidades terapêuticas no continente com quem a Região Autónoma dos Açores tem protocolos.
A ARRISCA não realiza internamentos…
Não realizamos tratamento em internamento. Temos, no âmbito da reinserção social, um apartamento para pessoas que já estão numa outra fase do tratamento, no programa Livre de Drogas, onde procuramos trabalhar outras competências importantes para um projecto de vida autónomo, com sentido e com um propósito. É uma casa com supervisão, acompanhamento técnico e onde procuramos preparar a pessoa para ser posteriormente devolvida à comunidade. Infelizmente, deparamo-nos actualmente com valores exorbitantes nos valores das rendas de quartos e de apartamentos. Depois, temos outras questões que podem potenciar uma recaída e que se podem constituir como factores de risco. Quando uma pessoa faz esta transição para uma casa na comunidade, umas podem estar a consumir enquanto outras não e, essa situação poderá desencadear uma nova recaída e um novo processo de tratamento. Um problema também com que nos temos deparado ao longo dos anos com estas respostas residenciais é que os nossos utentes estão a envelhecer, não têm idade para integrar um lar de idosos e não existem respostas na comunidade. Precisamos de ter uma outra visão e um outro olhar mais atento.
Quantas habitações deste género seriam necessárias para dar uma boa resposta?
No passado, já tivemos três respostas residenciais. Um grande constrangimento é que estas respostas residenciais são arrendamentos que a Instituição realiza. Ou seja, a Instituição não tem qualquer imóvel neste momento e, tal como aconteceu no passado, quando o senhorio quis transformar esta habitação num alojamento local, corremos o risco de, a qualquer momento, acontecer o mesmo. Temos que tentar encontrar estratégias numa visão a médio, longo prazo, capacitando as instituições de meios, equipamentos e infraestruturas que possam dar uma resposta a longo prazo nestas situações.
Este programa tem tido sucesso? Há muitos casos de reincidência?
Quando falamos de toxicodependência, temos de perceber que estamos a falar de uma doença crónica e recidiva. Isto quer dizer que a recaída faz parte deste processo. O mais fácil é fazer um tratamento, o problema é ter um projecto de vida com sentido, um projecto de vida a longo prazo em que a pessoa esteja integrada numa rede. Vamos ter situações de pessoas que potenciam a recaída devido aos vários factores de risco que estão inerentes às vivências e aos contextos dessa pessoa. Se eu estou com o mesmo grupo de amigos que costumavam consumir, obviamente que a probabilidade de eu consumir será mais elevada. Isto leva-nos também a outra situação que tem a ver com as alterações que existiram a nível dos programas de emprego. Quando falo de programas de emprego, direcciono-os para esta população que tem problemáticas relacionadas com os comportamentos aditivos e dependências e que necessitam de programas de emprego terapêuticos, programas de emprego apoiado, programas de emprego protegido, qualquer que seja a designação, de forma a que a consigamos motivar a ocupar-se. Temos de ter consciência de que nem todas as pessoas têm capacidade para integrar o mercado normal de trabalho. Isso acontece também devido a muitas das consequências físicas e mentais de vários anos de consumo de substâncias psicoactivas e, muitas dessas pessoas não têm capacidade, independentemente da aposta formativa que seja realizada, de cumprir com um emprego das 9h às 17h de Segunda a Sexta-feira. Este tem que ser um trabalho realizado por todos e tem de ser um trabalho descentralizado e realizado em todas as freguesias e concelhos. O concelho da Povoação é diferente do concelho de Ponta Delgada, pelo que as respostas criadas na Povoação devem ser diferentes das respostas criadas em Ponta Delgada. Temos de ver caso a caso e não criarmos um fato à medida de cada um.
Utilizando as suas palavras, considera que ainda está tudo no ‘mesmo saco’?
Infelizmente, muitas das respostas que surgem no dia-a-dia são muito abrangentes e acabamos por incluir todas as pessoas no ‘mesmo saco’. Deparamo-nos também com uma situação que, a meu ver, é complicada: quando consideramos apenas públicos em situação de vulnerabilidade social, as crianças, os idosos e os cidadãos portadores de deficiência, estamos a excluir toda uma panóplia de indivíduos que, por uma determinada situação, se encontra igualmente em situação de vulnerabilidade social. Falamos muito de prevenção, mas fazemos pouco nesse nível. É preciso fazer mais, investir mais, dotar as instituições de financiamento, de equipamento, de elementos técnicos, para que seja possível realizar uma intervenção descentralizada em toda a ilha de São Miguel junto das escolas. A intervenção nas escolas não pode passar apenas por acções pontuais. Estamos, neste momento, em articulação com a Câmara Municipal da Ribeira Grande, que nos pediu para desenvolver um plano municipal de prevenção e intervenção nos comportamentos aditivos e dependências no concelho, a reunir com todas as 14 juntas de Freguesia da Ribeira Grande para tentarmos encontrar respostas que vão ao encontro das necessidades das pessoas.
Entrando concretamente no Plano Regional de Combate às Dependências. O Plano dá resposta a algumas das questões que foi aqui levantando?
Este Plano é de continuidade e, se o avaliarmos, acabamos por ver que vem no seguimento do anterior. Agora, o importante é reforçar os meios para fazer esta intervenção porque a Direcção Regional de Prevenção e Combate às Dependências tem um orçamento limitado e é necessário um reforço desse financiamento. Precisamos de mais pessoas, de mais recursos, de melhores infra-estruturas de trabalho e nada disso está reflectido no Plano. O que queremos efectivamente é ver isso na prática e isso tem de ser traduzido em acções e através dos financiamentos que são realizados às entidades parceiras que desenvolvem este trabalho. A ARRISCA acaba por realizar uma intervenção com mais de 60% dos utentes a nível regional e, como tal, tem a maior parte do financiamento desta Direcção Regional. No entanto, se estamos a falar de um financiamento que é pequeno temos uma fatia grande de um bolo pequeno. Queremos executar todo o financiamento que é definido anualmente, mas tem de haver alguma flexibilidade e não um constante surgimento de burocracia que dificulta a execução total deste mesmo financiamento.
Este Plano é muito teórico?
Não é a questão de ser teórico. A questão é dotarmos as entidades que fazem este trabalho com mais equipamentos, mais recursos humanos, mais estruturas. Nós não podemos esperar ter melhores resultados se continuarmos a fazer sempre a mesma coisa com as limitações que existem. A realidade de hoje é diferente da do ano anterior e, como tal, tem que existir um reajustamento a nível destes protocolos existentes, passando também de uma modalidade anual para uma modalidade plurianual. As instituições que trabalham em parceria com o Governo Regional dos Açores, como o caso da ARRISCA, tem de ter uma visão e uma estratégia a médio e longo prazo.
Há poucas menções relativamente às novas substâncias psicoactivas. Estranha isso?
As novas substâncias psicoactivas têm sido um problema com mais incidência nos Açores e na Madeira do que propriamente em Portugal continental. É necessário um reforço ao nível da intervenção de forma a termos uma maior capacidade de resposta e isso passa também pelo aumento do número de consultas médicas a esta população, para que não existam listas de espera. É uma situação para a qual temos alertado a tutela e temos procurado também, em conjunto, soluções para a ultrapassar. Digo-lhe também, a título de curiosidade, que duas substâncias identificadas pela primeira vez na Europa, foram-no na Ribeira Grande. Estamos a falar de substâncias mais baratas, mais acessíveis e muito mais perturbadoras. O trabalho que tem sido feito e que terá de ser feito, é ao nível legislativo também porque temos aqui muitas limitações ao nível da legislação.
Estamos a desenvolver um projecto que passa pela criação de uma sala de tratamento/observação para atender várias situações que têm acontecido devido ao consumo de substâncias psicoactivas. Temos várias situações de utentes que vêm ter connosco já num estado de elevada degradação, quase de intoxicação e vamos realizar apoio numa vertente pré-hospitalar.
Estava à espera de um Plano diferente?
Sim, quando lemos e quando se ouve que vamos verdadeiramente trabalhar a toxicodependência na Região Autónoma dos Açores, obviamente que esperávamos aqui um Plano diferente. No entanto, a existência de um plano de seguimento e de continuidade significa que nem tudo estava mal. Numa outra vertente, temos de motivar as pessoas a trabalharem nesta área porque é uma área que tem um impacto tremendo. A ARRISCA é um apoio, é um suporte à comunidade e se não existisse a ARRISCA como seria? Certamente seria muito pior. Temos de encontrar formas de apoiar estas instituições que dinamizam este trabalho, de apoiar estes utentes que estão à margem da sociedade, de inclui-los na sociedade e isso faz-se criando condições para que seja possível fazer uma plena inserção na comunidade. É uma utopia pensarmos que vamos ter uma sociedade sem toxicodependência e livre de sem-abrigos. A toxicodependência é uma doença crónica e o desejo de consumir está sempre presente e, por isso, temos que encontrar formas de fortalecer os laços e as relações. Só dessa forma conseguiremos obter bons resultados.
A ARRISCA necessita de mais espaço, ao nível de infra-estruturas, para realizar o seu trabalho?
Ao longo dos anos temos passado por vários edifícios, por várias localizações e obviamente que esse tem sido um problema para a Instituição. Nós tentamos sempre fazer o nosso melhor com as condições que temos e temos a esperança de que as questões relacionadas com os comportamentos aditivos e dependências sejam uma prioridade para o Governo Regional. Intervimos 365 dias por ano e abrimos as nossas instalações às 7h da manhã, de forma a priorizamos o tratamento das pessoas que estão integradas no mercado normal de trabalho. Por outro lado, temos também as unidades móveis que percorrem toda a ilha de São Miguel com o objectivo de descentralização do tratamento. Pessoas que não têm a possibilidade de vir a Ponta Delgada, podem-se deslocar às unidades móveis para fazer a sua toma diária observada, ter o acompanhamento, ter a intervenção com os técnicos que andam diariamente nas unidades móveis. Em Ponta Delgada ainda temos um longo caminho a percorrer e obviamente que as instalações da ARRISCA precisam de um upgrade, de um melhoramento. O edifício onde nos encontramos é arrendado e nós, enquanto instituição, não temos qualquer tipo de imóvel. Esse é outro constrangimento que sentimentos, mesmo ao nível de empréstimos junto da Banca, para fazer face a necessidades de tesouraria.
Num outro aspecto, deparamo-nos com uma rotatividade de profissionais muito grande. Quando proporcionamos fracas condições para desenvolver a actividade, a partir do momento em que existe um processo de contratação noutra entidade, por mais amor que se tenha a esta área e pelo trabalho desenvolvido, que oferece outras condições, outro vencimento, obviamente que isso acaba por pesar muito na tomada de decisão. Precisamos de um espaço novo, com dignidade, para que possamos desenvolver uma intervenção ainda com mais qualidade, não só a nível de condições para os utentes, como também para os profissionais. Mas, esta localização tem de ir ao encontro das normativas da Organização Mundial de Saúde e, este tipo de infraestruturas, tem de estar próximo da comunidade, próximo de zonas onde existem estes comportamentos de risco em maior número e, se formos a ver, a maior parte dos nossos utentes são e residem em Ponta Delgada, daí a questão da proximidade. Quanto mais nos afastarmos, mais estamos a dificultar a acessibilidade ao tratamento.
Considera que, em relação à questão do combate às dependências e aos comportamentos aditivos em São Miguel, as diferentes entidades estão a remar cada uma para o seu lado?
Nós, ARRISCA, procuramos sempre desenvolver um trabalho em rede e a Região Autónoma dos Açores até é conhecida por realizar um bom trabalho em rede. Não nos limitamos a criticar por criticar e procuramos sempre encontrar alternativas. Dou-lhe um exemplo: apresentamos uma proposta de um plano ao nível de prevenção e esse plano não foi financiado pela Direcção Regional de Prevenção e Combate às Dependências. Não nos limitamos a ficar parados a criticar, mas procuramos encontrar alternativas e fizemos candidatura ao BPI, à fundação La Caixa e conseguimos financiamento para dinamizar um projecto em Água de Pau que está a ser desenvolvido ao nível da potenciação das respostas ao nível dos comportamentos aditivos e dependências. Temos um problema muito grande na Região e temos um financiamento muito pequeno para lidar com este problema. É necessária uma adequação porque, se temos um problema grande, temos que ter um orçamento maior. Fala-se muito de combate, mas não podemos ir para um combate se não tivermos armas em punho; não podemos ir para um combate com uma vassoura.
Está previsto um aumento de financiamento no próximo Orçamento?
Não temos informação de que vá existir um grande reforço ao nível de financiamento para 2023, embora consideremos que isso devesse ocorrer. Falava há pouco no combate e nas armas, mas não queremos andar a combater com ninguém, queremos é promover a saúde e encontrar estratégias de fomentar a saúde nos jovens e nos adultos, nos diferentes contextos; no desporto, na escola, nos espaços recreativos nocturnos, na família ou em espaços como o estabelecimento prisional de Ponta Delgada, onde fazemos intervenção diária.
Quando falamos da prevenção, tenho de deixar uma nota importante. Por exemplo, não podemos ir para uma determinada festividade realizar prevenção junto dos jovens quando temos no palco um rapper a fumar um charro. Outra situação que muitas vezes ocorre também no âmbito de festividades, principalmente nas festividades de freguesias, é termos um espaço onde existe, por exemplo, cerveja à discrição. Aumentar a oferta de forma gratuita potencia os factores de risco, muitas vezes, de forma inconsciente.
Tem de existir uma supervisão, uma intervenção e uma modificação de mentalidades na comunidade em geral, para que se perceba que o que estamos a fazer hoje vai ter um impacto no futuro desse jovem, dessa criança ou desse adulto.