Correio dos Açores: Como se sente ao vencer o prémio Caixa Research de Investigação em Saúde 2022?
Paulo Aguiar: A Fundação la Caixa financia todos os anos uma selecção de projectos científicos nas áreas do cancro, neurociências, cardiologia e imunologia. Trata-se de um processo de selecção internacional muito competitivo, onde cada equipa de investigação é avaliada pela sua capacidade científica e pelo seu plano de trabalho. Liderar uma das equipas de investigação que foi financiada em 1M€ é, naturalmente, motivo de grande satisfação. Claro está que, alinhado com o sentimento de orgulho profissional, vem também um sentimento de enorme responsabilidade. O projecto que vou coordenar, que tem o acrónimo NeuroSpark, envolve a minha equipa no i3S (Instituto de Investigação e Inovação em Saúde) bem como uma equipa de nano tecnologias da Universidade do Porto, e uma equipa de neurociência do Conselho Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), em Espanha.
Em que se foca o projecto NeuroSpark?
As doenças neurológicas, como a epilepsia, doença de Parkinson, Alzheimer, depressão, estão entre as doenças com maior impacto na nossa sociedade. As terapias actuais centram-se muito em estratégias farmacológicas, baseadas na administração de compostos bioquímicos, com vista ao tratamento ou redução dos sintomas. Esta abordagem tem algumas limitações, como a produção de efeitos secundários e a dificuldade na descoberta de novos fármacos eficazes. Há, contudo, outras estratégias terapêuticas que podem ser exploradas.
O nosso sistema nervoso é composto por diferentes tipos de células, dos quais se destacam os neurónios. Os neurónios são células extraordinárias que comunicam entre si através de minúsculos sinais eléctricos.
Tudo o que fazemos – andar, pensar, recordar – tem por detrás padrões específicos destes sinais eléctricos neuronais. Então, em alternativa a vias terapêuticas químicas, há também a possibilidade de corrigir patologias no nosso sistema nervoso através do controlo directo destes sinais neuronais. O projecto NeuroSpark centra-se assim no desenvolvimento de novas tecnologias para dispositivos médicos implantáveis que controlam estes sinais eléctricos neuronais para melhorar os sintomas de algumas doenças. No contexto deste projecto, a doença estudada é a epilepsia.
Em que outros projectos trabalha a sua equipa no i3S?
A minha equipa de investigação no i3S desenvolve trabalho em engenharia biomédica, mais precisamente em neuro engenharia. Temos duas vertentes principais. Por um lado, estudamos aspectos mais fundamentais de neurociência tais como os princípios que regem a transmissão e o processamento dos sinais neuronais. Por outro lado, através de colaborações com médicos e hospitais, tentamos trazer o nosso conhecimento para a prática clínica. A minha equipa é muito multidisciplinar (há pessoas de bioquímica, microbiologia, medicina, física, engenharia) e tentamos “atacar” os desafios através de diferentes perspectivas. De qualquer forma, o denominador comum nos nossos projectos está em compreender o modo como os neurónios comunicam entre si. Tenho o privilégio de trabalhar com pessoas excepcionais.
Como define o seu trabalho de investigação no dia-a-dia numa área de tão reconhecida importância?
O meu trabalho é muito estimulante na medida em que não há dois dias iguais. Confesso que coloca também uma pressão significativa: a busca de soluções não faz uma pausa às 18:00, e o normal é ter sempre algum trabalho à noite e ao fim-de-semana. A imagem dada pelos filmes sobre o trabalho em ciência não corresponde bem à realidade. As soluções não estão sempre ao virar da esquina; podemos levar semanas, meses ou anos até conseguir obter os resultados pretendidos. Infelizmente, alguns objectivos podem também nunca ser conseguidos por nós. Temos, portanto, de ser resilientes e saber lidar bem com dificuldades. Trabalhar em ciência é um pouco como andar numa montanha-russa em que num dia nos sentimos os mais inteligentes do mundo, e no dia seguinte os mais tolos.
Além do Prémio da Fundação la Caixa atribuído em Setembro, foram agora também distinguidos com um Prémio Santa Casa Neurociências. Qual o projecto associado a este novo prémio?
Recebemos há poucos dias o Prémio Mantero Belard, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Trata-se de um prémio de 200 mil euros atribuído anualmente com o objectivo de dinamizar investigação científica/clínica no âmbito das doenças neuro degenerativas associadas ao envelhecimento. Este outro projecto foca-se na doença de Parkinson e numa terapia específica usada para reduzir os sintomas desta doença: a estimulação cerebral profunda. O objectivo é usar métodos avançados de análise de sinal e análise de dados (semelhantes aos usados nas áreas de inteligência artificial) para melhorar a eficácia da estimulação cerebral profunda.
Como foi o seu percurso escolar e porque decidiu seguir Engenharia Física?
Em miúdo queria ir para Biologia. Os meus pais tinham uma quinta de árvores de fruto e passava os fins-de-semana a explorar todos os animais e plantas que encontrava por lá. Os Verões eram todos passados a olhar para o fundo do Mar, ora na piscina de S. Pedro, ora na piscina da Lagoa. Mas na secundária tive três professoras que me marcaram muito (Graça Rêgo, Délia Raposo, Maria Antónia Ramos Gil) e que me fizeram ver a beleza de duas áreas mais fundamentais: a matemática e a física. Tinha uma grande amiga minha que ia para professora de Fisico-Química e pensei em seguir também a via do ensino. Arriscando um pouco, acabei por decidir seguir Engenharia Física Tecnológica (no Instituto Superior Técnico em Lisboa), algo que me iria satisfazer o gosto que tinha pela física, mas sem me preocupar com o que depois faria com o curso. Hoje, voltaria a tomar a mesma decisão.
Com a licenciatura em Engenharia Física Tecnológica porque opta por enveredar pelo doutoramento em Neurociência Computacional?
A Biologia ainda lá estava, à espreita. Comecei o curso de Física a querer especializar-me em Astronomia, e cheguei mesmo a trabalhar num projecto sobre análise de super novas. No entanto, dei por mim no 4.º e 5.º anos a escolher unidades curriculares opcionais na interface com a Biologia. Acabei por interessar-me muito por Biofísica e Neurociência. Modelar e simular o funcionamento do cérebro eram assuntos de uma área emergente chamada neurociência computacional. Juntar Biologia, Física, Neurociência e modelos computacionais? Era mesmo isso que eu queria.
Porquê a escolha pelo Institute for Adaptive and Neural Computation, da Universidade de Edimburgo?
Depois de terminar a licenciatura concorri a uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e, felizmente, obtive financiamento para fazer o meu doutoramento no estrangeiro. Na minha cabeça havia apenas duas opções: Estados Unidos da América ou Reino Unido. Acabei por decidir pelo Reino Unido e pelo Institute for Adaptive and Neural Computation na Universidade de Edimburgo, na Escócia (sim, ao sotaque micaelense, pude juntar o sotaque escocês). Na Europa, este era um instituto na vanguarda da neurociência computacional.
O pós-doutoramento foi novamente em Portugal, no Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), no Porto. De que forma esta decisão influenciou o percurso profissional?
Os anos que passei a fazer o doutoramento no estrangeiro estão entre os melhores anos da minha vida, mas sabia que queria voltar para Portugal. No meu último ano do doutoramento tive o convite para um pós-doutoramento no IBMC e, embora sabendo que não havia quase ninguém a trabalhar em neurociência computacional em Portugal, aceitei o desafio de começar a dinamizar a área. Um aspecto positivo que saiu desta decisão foi o facto de ter trabalhado com muitos investigadores em neurociência experimental (que complementou a minha formação teórica/computacional). Permitiu-me também, no contexto da Universidade do Porto, dar aulas e a formar alunos de mestrado e de doutoramento.
A docência tem sido compatível com a entrega à investigação científica?
Uma vez que estou na carreira de investigação, não me é imposta carga lectiva. No entanto, confesso que gosto muito de dar aulas e tenho sido, ao longo dos últimos anos, responsável por diferentes unidades curriculares na faculdades de Medicina, Ciências, e Engenharia da Universidade do Porto. O contacto com os alunos é também importante para atrair os melhores para a investigação.
Tens acompanhado o que se passa na Região ao nível da Saúde?
Procuro estar a par do que se passa Região, não só ao nível da Saúde, mas também no que diz respeito a iniciativas nas áreas da ciência, tecnologia, e ensino superior. Tenho estado particularmente interessado e atento à implementação do Plano de Recuperação e Resiliência - Açores. Trata-se de uma oportunidade única, e espero genuinamente que sejam tomadas as melhores decisões. Vai ser necessário um bom planeamento estratégico para garantir que os investimentos tenham o retorno desejado. Não podemos desperdiçar esta oportunidade.
Costuma regressar à Região frequentemente?
A minha esposa e os meus dois filhos também adoram os Açores pelo que, sempre que podemos, passamos uns dias com a família e amigos. No Verão, nem há discussão – uma boa porção das férias é passada sempre aí. Reflexo deste nosso gosto, também temos casa em São Miguel.
Pensa algum dia trabalhar nos Açores?
Haverá algum açoriano que não pense em voltar um dia? Daniel de Sá resumiu bem quando escreveu “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”. Tenho, portanto, o gosto e interesse de um dia poder contribuir para os nossos Açores. Têm sido dados passos importantes nas áreas da ciência, investigação e ensino superior, mas há ainda muito a fazer. Quem sabe possa surgir no futuro alguma oportunidade?