Manuel Carreiro - Como é que a música surge na sua vida?
Vânia Dilac - O meu pai foi o grande impulsionador da música na família. Ele tinha aprendido a tocar guitarra sozinho e agora quase todos os meus irmãos tocam. O meu irmão mais novo é o que tem a voz com a dinâmica da minha, mas é uma pessoa reservada e toca apenas em ambientes familiares. O meu pai, para além de tocar também cantava e tinha uma voz muito parecida com a do Paco Bandeira, suave e muito afinada. A família converteu-se ao cristianismo ainda em Moçambique, e começamos a frequentar uma igreja evangélica, igrejas essas, conhecidas por terem muita música e aos onze anos fui integrada no coro infantil, depois no coral juvenil e mais tarde no coro oficial da igreja, onde comecei a destacar-me em termos de voz. Tendo começado a fazer da música o modo de vida aos quinze anos.
O contacto com a música e com as bandas fez com que aprendesse a tocar algum instrumento musical, ou a apetência é apenas a voz?
Eu já toquei melhor, mas ainda arranho uns acordes na guitarra. No entretanto, comecei a fazer solo se a cantar num grupo de jovens e a certa altura convidaram-me para participar num concurso de karaoke na cidade da Ribeira Grande, tendo ficado em segundo lugar. Estava nervosíssima e cantei Whitney Houston. Nessa altura, o Luís Alberto Bettencourt fazia parte do júri, ouviu-me e, a partir daí, a minha carreira mudou, ele foi quase como o meu mentor, orientando-me, convidando a participar nos seus espectáculos. Cantei em bares e pubs em São Miguel; recordo com saudade, e muita ternura, ter cantado com Miguel Pop, já falecido, no Tandas Bar Mais tarde, surge o contacto com o Zeca Medeiros e Aníbal Raposo, pessoas a quem estou muito reconhecida pela ajuda e orientação no meio musical e artístico açoriano e por terem acreditado em mim, tendo sido convidada por diversas vezes a fazer parte dos projectos musicais deles. Com toda esta escola, aprendi muito e formei a minha banda que me acompanha já há muitos anos, os Solmet.
É difícil ser cantora de música, essencialmente do género blues e gospel, nos Açores?
Muito difícil, mas reconheço que sou grata porque caí na graça e no gosto do público, que respeita e aprecia o meu trabalho e, acima de tudo, a minha voz.
A Vânia é uma cantora conhecida a nível regional. Nunca pensou em dar o salto e ir para Lisboa, ou mesmo para outro país onde, por vezes, é mais fácil alcançar o sucesso?
Já pensei e penso muito nessa possibilidade. Aliás, a minha ida ao The Voice, foi um pouco nesse sentido, de ir mais longe, de mostrar a minha voz, a minha qualidade artística e personalidade em cima do palco. Foi uma experiência bastante boa, conheci muita gente do mundo da música, aprendi imenso com o meu mentor, o Anselmo Ralf, ficámos amigos e mantemos a amizade até hoje. Depois do The Voice, efetivamente, abriram-se algumas portas. Começaram os espectáculos, iniciei uma tour por Espanha, Toronto, New Bedford, Florida, com espectáculos, não só para os nossos imigrantes. Aliás, a música que levo não é música da saudade, mas sim um género de música diferente, mas a surpresa de ver alguém dos Açores a cantar blues e com o timbre de voz que é o meu, deixou as salas de espectáculos perplexas e foi extremamente agradável ver a boa aceitação, até mesmo por parte do grande público americano. Curiosamente, por vezes, e em certos eventos, também cantei fado, e o fado é uma música bem portuguesa, que marca sempre um povo, uma história, o que deixou o público local abismado com o tipo de música que é completamente fora do estilo de música dos USA, mas com uma formidável aceitação e carinho por mim e pela música, neste caso pelo fado. Em 2017 fiz uma tour pelos Estados Unidos da América em igrejas evangélicas, onde cantei apenas GOSPEL, com músicos locais. Aí, vivi uma experiência única, ao visitar uma igreja evangélica caboverdiana, mas que só falavam inglês, mas com um registo puxando um pouco aos sons africanos, quentes e doces, foi uma experiência única e incrível.
Com toda esta experiência obtida nas tours, o seu género musical mantém-se genuíno, ou vais adaptando ao gosto do público?
Cada vez mais mantenho a minha identidade. Houve uma altura em que cantei a música dos outros, cantei o que o público gostava e apreciava, mas com o crescimento e amadurecimento, no campo musical, vamos construído a nossa imagem, a nossa voz, a nossa própria identidade. Não significa que eu seja radical; por vezes, e em ocasiões especiais, já cantei música caboverdiana, fado e mornas. Mas nos meus espectáculos de raiz, espectáculos de autor, canto a minha música, sou e luto por ser a Vânia Dilac, que sempre quis ser, estou grata e agradeço a Deus esta força para me manter fiel aos meus princípios, sejam morais, sejam religiosos. Curiosamente, o público, num primeiro contacto, associa a minha pessoa a África e à música africana, mas eu vim para os Açores muito nova, e com poucas influencias musicais africanas. Acredito que a minha voz e atitude, esteja um pouco ligada a África, por questões hereditárias, não por influências vividas.
Em 2019, a sua carreira está em alta. Depois, em 2020, surge a pandemia e problemas de saúde. Estes constrangimentos afectaram a sua carreira?
2019 foi ano de rodagem, de apresentação do meu estilo, da minha forma de cantar, prevendo que em 2020 seria o ano da viragem. Pensava eu, que nesse ano, daria o tal salto que tanto almejava. Fui convidada para fazer uma tour de blues pelo centro da Europa, aí talvez não voltaria, ou melhor voltaria apenas como visitante, para ver a família, os amigos e a terra que me viu crescer. Surge a pandemia, e depois desta, fui diagnosticada com cancro. Naquele momento parece que o mundo desaba, todos os nossos sonhos se tornam impossíveis, sentimos que tudo o que fizemos até ali de nada valeu, de nada serviu. Tornamo-nos impotentes. Como sou movida pela fé, e crente em Deus, coloquei nele a minha vida, os meus sonhos, os meus desejos e avancei para o tratamento sem medo que pior pudesse vir. Hoje sinto-me bem, ainda em recuperação, e quero muito fazer esta tour pela Europa, porque sinto que vai ser muito bom para a minha carreira.
A sua carreira actualmente desenvolve-se nos Açores. Como é que o público açoriano olha para si e ouve as suas músicas, sendo o seu estilo diferente do que estamos habituados?
O público açoriano está dividido entre o cancioneiro açoriano, e a música pop. O público açoriano não estava habituado a ouvir música blues, apenas um número muito restrito estava familiarizado com o blues e com outros géneros musicais parecidos, como o jazz. Sou talvez a primeira pessoa a cantar blues nos Açores, se bem que já havia o evento de blues na Ilha de Santa Maria, mas principalmente com bandas vindas de fora. A dada altura, o Luís Alberto Bettencourt escreve blues em português para eu cantar, numa tentativa de levar a letra ao ouvido dos açorianos. Um pouco por teimosia e por acreditar e, também, por ser o que mais gosto de cantar, fui persistente e hoje sou conhecida como cantora de blues.
Todo o seu percurso levou a que hoje seja uma pessoa conhecida no nosso meio.
Agora é mais simples, porque as pessoas já sabendo quem sou, permitem que tenha a minha vida, que faça as minhas caminhadas. Digamos que circulo livremente. Mas não deixam de olhar e de me dirigirem uma palavra amiga, um gesto, um carinho. Na fase do The Voice Portugal, senti uma pressão maior. Quase todos os que se cruzavam comigo digeriam-me uma palavra de conforto, de encorajamento, o que é muito bom. Esta semana estava num espaço comercial, onde se encontra afixado um cartaz com a publicidade do PDL Jazz que se realiza mais logo no Teatro Micaelense, e foi muito giro ver as pessoas a olharem para o cartaz, e a olharem para mim, e a dizerem: é ela, e depois sorriem como se já me conhecessem. Sei que a minha aparência física poderá parecer um pouco intimidadora, o que faz com que as pessoas não se aproximem muito, mas não sou nada disso, até pelo contrário, quando alguém me dirige a palavra, paro, converso, dou sempre um pouco de mim.
Ser artista obrigou a ter de ponderar as atitudes, as opiniões e a forma de estar social e pessoalmente?
Tento ser quem sou, agindo como acho que devo agir, mas reconheço que posso ser um exemplo para algumas pessoas, principalmente os mais novos, o que de certa forma faz com que tenha algum cuidado com as minhas opiniões, com a forma de actuar. Não faço esforço nem quero ser outra pessoa, mas evito a confusão e tudo o que poderá suscitar comentários depreciativos. Tento ser um exemplo e sinto esta responsabilidade. Fui convidada e sou a embaixadora da Care for Children para os Açores, que é uma instituição internacional que ajuda crianças em todo o mundo, e este convite acontece, porque fui cantar nos Estados Unidos para uma angariação de fundos e a presidência gostou de mim, da minha postura e da minha forma de ser, e de estar, e convidou-me a ter mais esta responsabilidade. Claro que, por uma causa como esta, aceitei logo. É incrível a quantidade de famílias que a organização tem ajudado. Existe também uma pareceria com a Pediatria do Hospital Divino Espírito Santo em Ponta Delgada, com quem colaboramos, e tudo isto se deve à minha voz, ou seja, ao ministério lançado sobre mim e no aproveitamento deste dom em benefício do próximo, o que me dá uma alegria enorme.
As redes sociais têm ajudado na divulgação do seu trabalho?
As redes sociais são hoje uma ferramenta essencial na divulgação de qualquer artista, porque elas chegam muito longe e atingem públicos a que, de outra forma, não chegaria lá. Elas também são o momento, tudo acontece agora, pelo que obrigam, de certa forma, a uma constante actualização, o que contraria a minha forma de estar, isto porque não passo assim tanto tempo a actualizar as redes sociais, até porque, isso exigiria um tratamento de marketing da minha imagem artística, e a minha vida não é só música; para além de cantar, trabalho, porque não se consegue num meio pequeno, como o nosso, viver só da música, há contas para pagar e a pandemia veio mostrar isso mesmo, ou seja, a classe artística é uma das que mais sofre com as crises económicas e sociais. É curioso verificar que muitos dos nossos seguidores estão mais atentos às publicações mais pessoais, por exemplo, partilho uma fotografia minha, cuidada e trabalhada e recebo algumas manifestações, se partilho uma imagem simples com o meu gato sentada no sofá, sem ter a preocupação da imagem, os gostos disparam. Parece até que o público prefere mais a minha vida pessoal do que a profissional, mas tudo isto faz parte do risco de se ser uma pessoa conhecida no meio musical.
Pelo facto de haver sangue africano nas suas veias, e na própria aparência, sente que a olham e a tratam de forma diferente, num momento em que o mundo luta pela igualdade?
A adaptação da família nos Açores não foi fácil. Éramos insultados, havia tentativas de humilhação, de segregação. Foi uma luta constante para nos mantermos fiéis aos nossos princípios. A minha infância não foi fácil, cada dia era uma luta, cada dia era colocada à prova. Hoje, neste aspecto, o mundo e os Açores mudaram completamente. Fico muito feliz por ver a aceitação de diferentes raças e géneros. É permitido que cada um seja feliz e que siga o seu caminho, há um espaço para todos.
O que gosta de fazer no tempo livre que lhe sobra?
Gosto de cozinhar. Coloco sempre um toque, proveniente das minhas origens, um picante, caril. Gosto de escrever. Gosto de escrever poesia, sonetos, ganhei este gosto pelos sonetos quando estudava, até na altura em que andava a estudar ganhei um concurso com um soneto. Este gosto pela escrita levou-me a escrever as minhas músicas e a desenvolver a primeira composição na minha guitarra, depois passo ao compositor, o meio grande amigo Feijó, para a composição e arranjo, para que possa ser tocada pela banda.
O facto de já ter lido várias vezes a Bíblia ajudou-me muito, porque nos transmite um vocabulário bastante diferente, rico. Ensina-nos a ver as coisas de outra forma, mais simples e modesta. Estou sempre ligada à escrita, em qualquer publicação minha tem sempre um texto, há sempre um sentido por detrás da imagem, do momento, da partilha. Ainda gostava de publicar um livro, porque a música é também palavra e palavra é escrita.
O que a leva a cantar?
Canto, porque acho que cantar foi o ministério que Deus deu para a minha vida, é o Seu projecto para mim, nesta minha passagem por esta vida. Mas executá-lo não é fácil, porque, quando sabemos que temos um dom e não temos meios para concretizá-lo em plenitude, porque não se consegue sobreviver só da música, é necessário ter uma outra actividade profissional, para podermos viver e pagar contas, torna tudo mais difícil, mas não é por isso que desisto. Acredito plenamente no Seu projecto, e a cada dia luto para fazer a minha parte, porque tenho fé, e a esperança, de que o meu dia chegará, quando Ele achar que estou pronta.
É fácil conjugar a música com a actividade profissional?
Tem sido fácil, e de boa aceitação por parte da entidade patronal. Tento manter a separação entre as duas actividades, sem que uma atropele a outra, porém como todos sabem quem sou, estou sempre no activo. É comum pedirem-me para cantar no trabalho, nos eventos profissionais, porque eu sou música, então é difícil fazer esta separação.
Estar em palco é difícil?
Estar em palco é o atingir o auge de todo um trabalho, de todo um projecto, é a consagração do Ministério. Quando piso um palco, sou eu, sem máscaras, sem esforço. Estar em palco é a partilha da minha intimidade. Sou conhecida por fazer caretas ao cantar, não é pelo esforço, mas sim pelo sentimento que a música e a letra me trazem. Eu, a música, a letra, o som, fundimo-nos numa única pessoa, e é uma alegria enorme partilhar toda essa emoção com o público, fazer chegar a cada um que me escuta, um sentimento de paz, de alegria, de recordação de coisas boas, de amenizar as coisas menos boas, porque a música é tudo isto. A vida é uma balada, um som. A música acompanha-nos desde sempre. Em qualquer que seja o momento haverá sempre uma música que irá ajudar a registar a emoção vivida.
Tudo isto é o que mais logo tentarei passar durante o espectáculo do PDL Jazz no Teatro Micaelense, onde tudo farei para passar uma mensagem positiva, porque sou uma pessoa positiva. Há bem pouco tempo fui vítima de cancro, fui operada, mas a vontade de concretizar o projecto Dele, ultrapassa o cansaço, as dores, porque Ele merece este esforço e o público também. Esta é a minha forma de dizer obrigada, sinto que a música e esta oportunidade de actuar mais logo me trará cura, em que a minha fé sairá redobrada. Prova disso é que, depois da publicação do espectáculo, e da minha participação no PDL Jazz, já começaram a surgir convites para outros eventos.
Sendo uma pessoa conhecida, qualquer movimento seu poderá ser confrontado com encontros, com abordagens. O que faz e como faz, quando precisa de espaço, de tempo?
Tenho uns esconderijos (risos). Tenho um grupo restrito de amigos, juntamo-nos e aí sinto-me mais livre, posso estar e falar, ou melhor conversar tranquilamente. Gosto de me deslocar a alguns locais nesta bonita ilha onde, sozinha, dedico algum tempo aos meus pensamentos, a saborear o que de bom tem acontecido na minha vida. Penso no que posso melhorar como pessoa. A família é muito importante para mim e a minha é muito unida. É comum passarmos os Domingos juntos em casa da minha mãe. Cozinhamos, falamos muito sobre tudo o que nos rodeia, é uma típica sentada de família, à boa moda africana, em que todos nós nos sentamos à volta da matriarca.
Como cantora, certamente que terá referências, ídolos, pessoas que servem de inspiração no meio da música. Quem são?
São vários os músicos de diferentes quadrantes musicais, aprecio muito Richard Bona, Joe Bonamassa. A referência na minha juventude era a Mariah Carey, imitava-a muito, também a Whitney Houston, depois a minha voz começou a ficar mais forte e diziam que se parecia mais com Nina Simone. Como amo fado, não podia deixar de ser fã de Amália Rodrigues, gosto muito de Ana Moura.
O que diz o seu coração?
O meu coração diz-me que a música é muito mais do que um som, a música é vida, representa a vida, e o que há de belo. A música é a terapia nos momentos menos bons. A música une e aproxima pessoas, povos e culturas. A música tem o poder da cura e coloca todos no mesmo nível, enquanto espectadores, todos podemos ouvi-la, pena que apenas alguns a poderão compreender e usá-la.
Teatro Micaelense,
24 de Novembro de 2022
Manuel Carreiro