Maria do Carmo Barreto, professora da UAc, no Dia Mundial da Ciência

Restringir o financiamento a projectos em contexto empresarial ignorando a investigação fundamental é uma opção errada e até perigosa

Correio dos Açores - Qual a importância do Dia Mundial da Ciência?
Maria do Carmo Barreto (Professora da Universidade dos Açores) - O Dia Mundial da Ciência tem como objectivo chamar à atenção para a importância da Ciência, destacando exemplos de cientistas, alguns conhecidos do público, outros nem por isso. Confesso que não dou grande importância aos “dias mundiais” disto ou daquilo, porque fico com a ideia de que só nesses dias é que se fala do que é celebrado, que neste caso é destacar o papel da Ciência no desenvolvimento humano. Para mim, o destaque dado à Ciência, à divulgação científica, a despertar o gosto das gerações mais novas pela Ciência, deveria decorrer durante todo o ano e não estar restringido a um dia único.

Quando se fala em Ciência, fala-se em quê?
A Ciência é uma maneira de olhar tudo o nos rodeia de modo a compreender como funciona o universo. É também um processo, ou seja, as explicações têm de ser passíveis de ser testadas, é aquilo a que chamamos o método científico. Partindo da observação, um cientista estabelece uma hipótese que é testada com recurso a uma ou mais experiências, que confirmam ou rejeitam a hipótese inicial. Para além da curiosidade e da atenção ao que se passa ao seu redor, um cientista tem de ser profundamente honesto e humilde, aceitando os resultados do teste à sua hipótese – se estes contradisserem a hipótese, então é preciso rejeitá-la e estabelecer uma nova hipótese. É isso que é tão fascinante na Ciência, fazemos perguntas, estabelecemos hipóteses e é o universo que nos responde. A Ciência é colaborativa, parte da partilha dos resultados com a comunidade, não só porque os recursos e o tempo de cada cientista e de cada laboratório são finitos, mas também porque quanto mais olhares diferentes se centrarem numa mesma questão, maior a probabilidade de se chegar a uma resposta.

Em termos globais, como tem evoluído a Ciência nos Açores?
Quando cheguei aos Açores, há mais de 30 anos, não era fácil ter uma carreira em Ciência. Apesar de alguma falta de reconhecimento por alguns sectores, a Universidade dos Açores foi e é a instituição que mais contribuiu, e contribui, para a evolução da Ciência nos Açores. Em 1991, quando integrei a Universidade dos Açores, era preciso ter muito “amor à camisola” para fazer investigação. As instalações deixavam muito a desejar, os equipamentos e o material eram poucos, e as viagens para realizar estágios noutros laboratórios com melhores condições eram caríssimas. Além disso, era muito mais complicado consultar informação científica na era antes da internet – era preciso consultar catálogos em papel, pedir cópias a bibliotecas nacionais ou estrangeiras, com muito critério, porque era preciso pagar esses serviços.
O acesso a fundos europeus foi marcante, com a construção do Complexo Científico, de laboratórios, a aquisição e instalação de uma diversidade de equipamentos indispensáveis à investigação em diversas áreas, e saliento, uma vez mais, a democratização do acesso à informação proporcionada pela Internet. Houve um enorme crescimento na quantidade e, sobretudo, na qualidade da investigação, alimentando o sucesso dos nossos investigadores na obtenção de financiamento através de projectos competitivos. A criação da Direcção Regional da Ciência e Tecnologia foi extremamente importante neste desenvolvimento, quer no lançamento de projectos de investigação, quer no apoio a bolsas de investigação e de doutoramento, aos centros de investigação regionais, à realização de eventos científicos entre outras medidas.

O que se tem feito pela Ciência nos Açores? Tem sido suficiente?
Apesar da evolução que referi anteriormente, ainda há muito a fazer para melhorar a Ciência nos Açores e no país, uma vez que grande parte dos problemas que sentimos são transversais a outras regiões de Portugal e da Europa. Um dos problemas principais é a enorme precariedade nas carreiras de investigação. Para além dos docentes de carreira da Universidade dos Açores, muita da investigação é levada a cabo por bolseiros ou investigadores com contratos de duração limitada, muitos dos quais já com mais de 40 e 50 anos, com compromissos pessoais e familiares. Não é de estranhar que muitos destes investigadores acabem por desistir ou por optar por desenvolver as suas carreiras no estrangeiro, onde conseguem condições para prosseguir a sua investigação. Outro problema é a irregularidade dos concursos de financiamento, nomeadamente regionais, dificultando a continuidade dos projectos, contratação de recursos humanos, entre outros.
Nos últimos anos, tem havido uma opção que considero errada e até perigosa para a continuidade da investigação científica, que é restringir o financiamento a projectos em contexto empresarial, pondo de parte a investigação fundamental. Reconheço a importância de contribuir para o desenvolvimento tecnológico das empresas, mas toda a investigação aplicada baseia-se na investigação fundamental, portanto, se pusermos de parte as bases, estamos a ameaçar o desenvolvimento futuro. E nos Açores temos um problema adicional, que é o facto de termos um tecido empresarial incipiente, com poucas empresas dispostas ou com capacidade de investir em desenvolvimento científico e tecnológico.

Que projectos tem entre mãos?
O meu grupo, integrado no Grupo de Biodiversidade dos Açores e no cE3c-CHANGE, dedica-se à pesquisa de Produtos Naturais Bioactivos, ou seja, procuramos produtos naturais que possam ter aplicações farmacológicas, cosmecêuticas ou biotecnológicas. Neste momento, estamos envolvidos num Projecto INTERREG-MAC, com as Canárias e a Madeira, chamado MACBIOPEST (MAC2/1.1a/289), cujo objectivo é encontrar pesticidas amigos do ambiente, extraídos da flora das nossas ilhas. Outra linha de investigação, teve início em 2008, centra-se na investigação do potencial das algas marinhas, tendo já sido alvo de financiamento pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e mais recentemente por um Projecto INTERREG-MAC (MACBIOBLUE). Neste momento estamos particularmente interessados no potencial antienvelhecimento de algumas algas da nossa costa, através da extracção de compostos por métodos modernos e mais “verdes”. Dois alunos de doutoramento do nosso grupo, Wilson Tavares e Gonçalo Rosa, integram estes projectos, mas há investigadores das três regiões da Macaronésia, e ainda da Universidade de Aveiro, envolvidas nestas pesquisas.
Estamos, ainda, a terminar um projecto que estuda as potencialidades dos microorganismos associados a espécies marinhas de fontes hidrotermais costeiras (3B-vent, ACORES-01-0145-FEDER-000112).

Quando um projecto se concretiza numa acção prática, como se sente o investigador? Já lhe aconteceu alguma vez isso?
A nossa investigação, até agora, não chegou a uma fase em que se possa pensar em acções práticas, embora muitos dos resultados obtidos sejam muito encorajadores. O Projecto MACBIOPEST será provavelmente aquele que chegará uma acção prática, com a selecção de extractos de plantas que possam ser preparados pelos próprios agricultores para proteger as culturas contra pragas.

No decurso da sua carreira, houve algum episódio marcante que queira partilhar?
Para mim, os episódios marcantes estão muito ligados às pessoas, e uma das coisas que mais me entusiasmam é quando um antigo aluno se destaca como cientista em alguma parte do mundo, porque sinto que, de alguma maneira, posso ter contribuído para o seu crescimento como investigador. Mas, se quiser salientar um episódio, gostava de referir a descoberta pelo nosso grupo de compostos novos numa alga marinha dos Açores, e que as investigadoras Ana Seca e Mestre Vera Gouveia baptizaram com nomes que destacam a nossa Região: cystoazorol A e B, e cystoazorona A e B. A descoberta destes compostos e o seu potencial antitumoral constituíram um marco na investigação do nosso grupo. Infelizmente, Vera Gouveia foi vítima da precariedade contratual que referi acima e é agora uma excelente divulgadora de ciência no EXPOLAB.

Ao longo dos tempos, a Ciência tem impulsionado o desenvolvimento humano, melhorando a qualidade de vida das pessoas, pelo que se pode afirmar que a Ciência é a ferramenta mais imprescindível à continuidade do progresso. Concorda?
Concordo que a ciência é indispensável à continuidade do progresso, mas sempre acompanhada pela ética. Sem conhecimento científico não há progresso, mas o conhecimento científico não deve ser usado para fins questionáveis, como a guerra química e biológica, por exemplo.

Que iniciativas são promovidas pela Universidade dos Açores, como forma de assinalar esta data?
Este ano a Universidade dos Açores não vai assinalar a data com iniciativas pontuais, preferindo dar alguma continuidade à divulgação científica. Participámos na Noite Europeia do Investigador / Macaronight 2022 e em diversas outras iniciativas, como as palestras sobre divulgação científica do Seminário Doutoral Ana Neto do 3CBIO, em que trouxemos aos Açores Joana Lobo Antunes, uma das mais prestigiadas especialistas nacionais em divulgação de Ciência. Curiosamente, na próxima semana vamos receber um grupo de jovens cientistas no nosso laboratório que vêm fazer experiências sobre a qualidade dos alimentos, num interessante projecto do EXPOLAB.  Esta nossa colaboração com os Centros de Ciência, como o EXPOLAB, o OMIC e o OVGA, são contínuas e vão decorrendo ao longo de todo o ano, não se centrando num único dia.

Que mensagem quer deixar neste dia?
A minha mensagem principal é para os jovens, os quais gostaria de entusiasmar para prosseguirem carreiras científicas. Mas, mesmo para quem não se dedica à Ciência, quero salientar a importância da chamada literacia científica, ou seja, da importância de se ter conhecimentos de ciência que nos permitam tomar decisões informadas. Não faz sentido saber de cor os nomes dos jogadores da Selecção Nacional ou dos actores das telenovelas da televisão, e ter uma enorme ignorância acerca de assuntos que têm o potencial de afectar decisivamente as nossas vidas.

Carlota Pimentel

 

Print
Autor: CA

Categorias: Regional

Tags:

Theme picker