Qual a importância do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres?
Piedade Lalanda (Professora da Universidade dos Açores) - A importância deste dia internacional é chamar à atenção para a prática de violência sobre mulheres, infelizmente “naturalizada” em muitos contextos socias e culturais; prática corrente nas relações de género, onde se aceita como “normal” o domínio do homem sobre a mulher.
Os dias internacionais têm de acordar consciências e lembrar que os agressores esperam o silêncio das vítimas, a sujeição e a obediência, como se não tivessem vontade própria, direitos ou capacidade para escolher como querem viver.
Infelizmente, muitas das mulheres que são vítimas de violência perderam a força para reagir, julgam mesmo que são culpadas da vida que levam e acabam por desculpar as agressões que lhes são infligidas.
A violência contra a mulher aumenta mais devido a novos casos que acontecem ou porque aumentou o número de denúncias?
A violência contra a mulher é o reflexo de um padrão de masculinidade, que encontra na agressão, física, emocional, sexual, ou outra, a expressão da “força” e do “poder” sobre os outros, associando a feminilidade a fraqueza e dever de sujeição. Este quadro de referência, que define os papeis de género, em muitas relações, inclusive entre jovens, continua a reproduzir-se e indirectamente é ensinado, no exemplo que os adultos mostram às crianças e aos adolescentes.
Enquanto for esperada e estimulada a agressividade nos rapazes e a docilidade nas meninas; enquanto se entender que as mulheres é quem tem a obrigatoriedade de cuidar (da casa, dos filhos, da roupa...) e os homens é que lutam, estaremos a manter um registo desigual onde a violência se encaixa “naturalmente”.
Por isso, os números podem ser grandes ou pequenos, o importante é que não sejam uma amostra de um universo cultural que ainda não fomos capazes de desconstruir. As denúncias são sempre uma “ponta de iceberg”, quando as situações de violência são silenciadas e incorporadas.
Os casos reportados de violência contra as mulheres tiveram maior severidade desde a pandemia?
De acordo com o Relatório de Segurança interna, publicado pelo Ministério da Administração Interna (MAI), registou-se um aumento de 11,4% de casos entre 2018 e 2019, (+3.000 situações), havendo a registar uma diminuição até 2021. No entanto, ao invés do todo nacional (-4%), nos Açores, o número de casos de violência doméstica aumentou 5,3% entre 2020 e 2021.
Segundo um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública e da Universidade Nova, cujo relatório foi publicado em Abril de 2021 (VD@Covid19), o confinamento agravou as situações de violência. O facto de os casais e as famílias estarem mais tempo juntas, por vezes confinadas numa casa pequena, partilhando trabalho e lazer, momentos de intimidade e vida diária, agravou as tensões e os conflitos. Ainda de acordo com esse estudo, durante a pandemia/confinamento, 30% das vítimas referem ter sido a primeira vez que sofreram violência, neste caso relatada por mulheres com nível superior de escolaridade, o que também confirma a tese de que este é um problema transversal à sociedade portuguesa.
Não é de estranhar que o confinamento tenha contribuído para o agravamento das situações de violência porque, de acordo ainda com as estatísticas do MAI, os períodos mais críticos são os fins de semana, os serões e as férias. Ou seja, é quando o casal está junto que se agravam as incompatibilidades, as faltas de diálogo e consenso, a incapacidade de construir soluções em conjunto ou de compreender e a aceitar as decisões ou opiniões de cada um dos membros do agregado
Em que faixa etária se verificam maiori-tariamente os abusos?
Se tivermos em conta os dados publicados pelo Ministério da Administração Interna/MAI (2021), a maioria das vítimas são do sexo feminino (74,6%) e tem mais de 25 anos (93,6%), sendo a idade média da vítima, segundo a APAV (2021), de 40 anos. Olhando ao tipo de relação, 34,3% dos agressores eram o cônjuge ou companheiro da vítima e em 13,3% dos casos, um ex-cônjuge ou ex-companheiro.
Estamos, por isso, perante uma maioria de vítimas e agressores que vivem em casal, em idades activas, muitas das vezes com filhos menores.
Pelos estudos que existem, que dimensão ainda tem a violência silenciosa contra as mulheres?
A dimensão da violência silenciosa pode ser medida, em primeiro lugar, pelo número de mulheres que morreram às mãos dos agressores. De acordo com o relatório da APAV (2021), foram 33 os crimes de homicídio registados no âmbito da violência doméstica, sendo 12 as mulheres que foram mortas, por uma pessoa com quem mantinham uma relação de intimidade, das quais duas na Região Autónoma dos Açores. Em 2020, morreram 30 mulheres em situações de violência doméstica, sendo 16 as que ocorreram no quadro de uma relação de intimidade.
Um outro indicador é o tempo que medeia até que a vítima denuncie os maus-tratos, na sua grande maioria superior a dois anos, podendo mesmo chegar a dez ou mais anos. Este arrastar no tempo prende-se com a “desculpabilização” que gera acalmia, seguida de novos episódios de agressão. Noutros casos, as vítimas escondem a situação em que vivem, para proteger os filhos. Não partilham com os familiares ou amigos, nem se atrevem a sair de casa, acreditando que, assim, estão a garantir tecto e alimentação, mesmo que não consigam evitar que as crianças presenciem ou até sejam também elas vítimas de agressão e maus-tratos. Nestes casos estamos perante uma vitimação continuada que, segundo o relatório da APAV de 2021, corresponde a 50% das situações denunciadas a este organismo.
Qual o impacto da violência contra as mulheres nas crianças?
A violência em ambiente familiar condiciona o modelo de relações estabelecido entre os adultos e os menores, e isso tem efeitos no desenvolvimento emocional das crianças, na identificação de papéis de género e até na afirmação da sua orientação sexual. Em alguns casos, pode gerar comportamentos de agressão ou vitimação da criança em contexto escolar (bullying), com consequências directas no seu processo de aprendizagem e sucesso escolar, afectando as relações que estabelece com colegas e professores.
Uma outra consequência directa ou indirecta são os casos de violência no namoro, reflexo de modelos interiorizados e papéis de género, que se reproduzem e nem sempre se contestam. Nestes casos da violência no namoro, e tendo por base os dados publicados pela CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, em 2021, 59% dos agressores eram namorados e 38,5%, ex-namorados. Em 51,3% as jovens, que denunciaram as agressões, são estudantes e a média de idades é de 20 anos. Dessas agressões resultaram, sobretudo, danos emocionais e psicológicos.
Não nos podemos esquecer o impacto da socialização familiar na construção da identidade e na qualidade das relações afectivas que crianças e jovens estabelecem fora desse contexto.
A moldura penal que existe para os casos de violência contra as mulheres pode considerar-se benévola?
Se tivermos em conta, mais uma vez, os dados publicados pela CIG, das quase 9000 situações reportadas à PSP e GNR, apenas 930 resultaram em prisão efectiva dos agressores. Em muitos casos há suspensão do processo e, não raras vezes, são publicados acórdãos com teor misógino, quando se trata de agressões de natureza sexual, desculpando o comportamento masculino, quando este é ofendido, humilhado e reage violentamente, supostamente em defesa da sua virilidade.
A questão da violência doméstica, que desde 2000 é um crime público, talvez não precise de um novo enquadramento legal, mas de celeridade e justiça na aplicação das medidas previstas, sobretudo no que concerne ao afastamento do agressor da casa de família e não da vítima, o que é mais frequente e obriga a que esta seja acolhida numa casa abrigo, muitas vezes acompanhada de filhos menores, que têm de se sujeitar a morar, temporariamente, fora do seu espaço familiar.
A eficácia da justiça implica o reconhecimento por parte dos juízes desta problemática, longe de preconceitos e estereótipos, que enviesam as sentenças e a avaliação das provas.
Como se pode trabalhar mais a prevenção de casos de violência contra as mulheres?
Julgo que o importante é educar nos valores da democracia, do respeito e da prática do cuidar do outro, da partilha e da co-responsabilidade. Se no contexto de uma família esses forem os eixos orientadores da vida quotidiana, os conflitos serão ultrapassados. Apenas o diálogo e a complementaridade de posições podem contrapor atitudes de prepotência que excluem, de alguém que se julga dono da verdade e detentor do poder absoluto, que manipula e controla os outros, como se fossem sua propriedade.
É promovendo uma cultura democrática que se previne os comportamentos de pretenso poder autocrático.
Como travar a violência contra as mulheres na Região?
À semelhança do resto do país e do mundo, as mulheres açorianas têm de ter consciência do seu lugar nesta sociedade e afirmar as suas opiniões e direitos, sendo as primeiras a denunciar comportamentos que atentam contra a sua dignidade. A passividade e o silêncio só agravam e mantém relações violentas, e são um exemplo deformado do que queremos que sejam as gerações futuras. A família deve ser um grupo que protege e integra, uma comunidade onde se aprendem os valores da democracia e da liberdade. Depois, na escola, esse também deve ser o quadro de referência, promovendo o debate e a cooperação, desconstruindo barreiras e treinando, com os alunos, o exercício do poder democrático, a solidariedade, o respeito pela diferença, de género, de opiniões, de orientação sexual...
São preocupantes os números de violência no namoro nos Açores?
De acordo com os resultados do estudo sobre a violência no namoro da UMAR para as regiões autónomas, inserido no projecto Art’themis, é de registar a relevância da legitimação da violência que se verifica nestas regiões. 14% dos jovens nos Açores não reconhece os comportamentos violentos, sejam de natureza sexual, ou mesmo a perseguição ou o controlo.
De lembrar que no inquérito nacional sobre esta problemática, um quarto dos jovens considera o ciúme uma manifestação de amor.
Assim, é fundamental que a temática da violência no namoro continue a ser debatida nas escolas, contribuindo, por essa via, para a consciencialização das suas manifestações e a desnaturalização de comportamentos violentos, infelizmente, ainda considerados “normais” numa relação afectiva.
Quando alguém diz ou repete a frase: “quanto mais me bates, mais gostas de mim”, está a legitimar a agressão e a conferir-lhe um significado positivo. O amor nunca magoa, nunca destrói nem humilha o ser amado.
Por isso, se queremos inverter este fenómeno e reduzir as futuras vítimas de agressão, o importante é tomar consciência do significado que atribuímos aos comportamentos. Se não passam no teste do respeito pelo outro, então têm de ser alterados, denunciados.
O que explica que os Açores sejam a Região onde existe mais casos de violência contra as mulheres, adolescentes e crianças do sexo feminino?
Os Açores têm crescido nem sempre de forma coerente. Se, por um lado, somos uma região conservadora, que mantém tradições religiosas e práticas ancestrais, por outro, damos sinais de uma modernidade mal incorporada. Aparentemente, não soubemos integrar as mudanças, que decorrem dessa modernidade, incluindo a alteração dos papeis sociais da mulher, o aumento do poder de compra, o acesso à escolarização e ao mercado de emprego. A participação política das mulheres é ainda minoritária, e os direitos de parentalidade são por vezes negados aos pais. A dualidade de papeis transforma-se numa relação desigual em termos de poder e participação.
Por outro lado, não nos podemos esquecer que os Açores são a região que mais gasta em consumo de bebidas alcoólicas, o que não sendo a causa directa da violência, potencia comportamentos violentos. Também temos vindo a registar um acréscimo no consumo de estupefacientes, com evidente impacto na saúde mental.
A violência é a expressão última de uma relação de poder que domina e controla. Combater a violência, em todas as suas formas, é uma exigência de saúde mental, que pode transformar a qualidade de vida e o sentimento de felicidade dos membros de uma sociedade. Só uma sociedade menos desigual, nomeadamente em termos das relações de género, consegue contrariar os comportamentos violentos.
Quais as consequências da violência na saúde, física, mental e emocional, das mulheres?
As mulheres que são vítimas de violência continuada perdem auto-estima. E sem auto-estima, há uma baixa saúde mental, uma degradação da qualidade de vida, o aparecimento de doenças oportunistas, desde logo, a depressão, para não falar de outros distúrbios, como o stress, os problemas de sono e a fadiga permanente.
Quando a mulher não quer, ou não consegue, assumir a sua condição de vítima de violência, acaba por desenvolver estratégias doentias para mascarar a verdade, perante os familiares, amigos ou colegas, vivendo num clima de permanente angústia e medo, duvidando de si própria e da sua capacidade ou direito a ser feliz.
Pior do que as marcas físicas, a violência psicológica, sexual deixa marcas de destruição, invisíveis aos outros, mas que corroem a vida das vítimas. Mas, ninguém está condenado a ser vítima. É possível receber ajuda para sair desse ciclo e deixar de se iludir com os momentos de ternura ou pedidos de desculpa, que se seguem a uma agressão.
Falar com alguém, denunciar as agressões de que se é vítima é um acto de coragem e pode significar o princípio de uma vida diferente onde, aos poucos, se recupera a auto-estima perdida. Ninguém pode amar o outro, se não se amar a si mesmo. E ser vítima é esquecer-se de si própria.
Que mensagem quer deixar neste dia?
A violência pode vir disfarçada de humilhação em público, desvalorização permanente, consumos excessivos que retiram recursos necessários ao dia-a-dia.
O companheiro violento recorre com frequência ao ciúme e à posse, controla em permanência as mensagens e os telefonemas, faz comentários negativos sobre a roupa que se veste ou a cor do verniz das unhas, que tanto gostas.
A violência pode ser subtil, insidiosa, mas ela acaba sempre por corroer o melhor da pessoa e mostrar o pior de quem agride.
É importante denunciar, procurar ajuda, afastar-se do agressor e recomeçar; salvar o que há de bom e defender o bem, da saúde da mulher e, muitas vezes, das crianças.
Nunca fiquemos indiferentes perante a violência, porque ela cresce com a nossa passividade.
Carlota Pimentel