Ana Conceição Medeiros com exposição no Museu do Arcano

“Eu vejo a arte como um manifesto e como um canal transmissor para despertar consciências para valores”

Correio dos Açores - Quando descobriu o seu talento?
Ana Conceição Medeiros - Não foi uma descoberta, foi algo que se foi manifestando ao longo do tempo em tudo o que fazia e que implicasse criatividade e estética. É com base nessa sensibilidade que dou forma ao que a minha imaginação me pede para criar, quer no desenho, na pintura, na decoração, na confecção de algumas peças de vestuário e outras.
Hoje, tenho uma exposição com base no desenho, na pintura e nas técnicas mistas, mas amanhã posso ter outra completamente diferente. É a criatividade que me move e ela que me conduz para vertentes distintas dentro das artes visuais, como também para e nas artes e ofícios.  

Quais os seus primeiros desenhos?
Comecei como todos nós enquanto crianças com o figurativo pintado a lápis de cor e aguarela. Mas, desde muito cedo, manifestei o gosto pela geometria e o abstracionismo. A mancha, a organização espacial e cromática, bem como as texturas, sempre me cativaram, o que tendencialmente me levou para desenhar padrões. As formas circulares de Delaunay, influenciaram-me durante algum tempo. Cheguei a pensar em desenhar para a indústria têxtil. Sempre fui muito feminina nos meus desenhos. Tive um período que tentei desenhar retrato, mas isso exigia muita concentração e observação. Acabei por desistir.

Quais as técnicas que utilizadas nos primeiros trabalhos?
Os esfumados com pastel seco e carvão. A tinta soprada e o borrão sobre papéis aguarela e papel kraft.  Desenho com recortes de papel, a raspagem nas ceras sobrepostas e a escrita sobre papel vegetal.

Prefere pintar arte figurativa. Porquê?
A forma como me expresso, concretamente nas telas da exposição “Fractais”, estão muito próximas do abstracionismo lírico, embora possa gerar algum equívoco devido a alguns desenhos apresentarem formas geométricas muito próximas do real, como o círculo e as formas ergonómicas.
Foram trabalhos que executei com muita espontaneidade e intuição, sentimentos, emoções e pensamentos. Recorri muito aos símbolos e às cores fortes para representar esses estados de alma momentâneos e seus conteúdos. Sendo estas, algumas das características que definem o abstracionismo lírico, sinto que é nesta forma de abstração que melhor me enquadro. E existe uma parte da exposição em técnica mista com predominância no desenho e com algumas colagens sobre papel aguarela em pequeno formato, que igualmente não se enquadram numa forma de representar dita figurativa.

Que imagens recorre para pintar?
Não recorro a imagens exteriores como fonte de inspiração. Não é no exterior que encontro a inspiração, mas no meu interior, nos meus silêncios recatados que me são essenciais. No entanto, também posso ter ideias ou criar, mentalmente, no meio de muita gente. A passear, posso ter ideias, mas elas quase nunca vêm desse local, mas do silêncio e da pacatez do local.

Onde vai buscar inspiração para os trabalhos?
Acho que já respondi a essa pergunta na questão anterior. Claro que muitas vezes preciso de investigar, mas a ideia ou o conceito inicial já o tenho. Que vão surgindo alterações ao longo do trabalho, claro que sim, mas isso faz parte de todos os processos criativos.

Como concilias a vida e a pintura?
É muito complicado conciliar uma vida que nos permita ter estabilidade financeira com uma vida dedicada exclusivamente à arte.
A criatividade exige silêncios, solidão sem ser solidão, tempo disponível para que a mente se aquiete e, a partir daí, dar forma ao que se imaginou. Muitas vezes, os meus momentos de criatividade são muito intensos o que me deixa muito cansada, e outras são extremamente calmos e meditativos, mas qualquer um deles exige tempo e dedicação. Fazer arte ao fim de um dia de trabalho, ou ao fim de semana, acho um bocado difícil. Dar continuidade a trabalhos é possível, mas criar para mim não. Isso é possível dentro das artes decorativas, não no que faço.

Actualmente que técnicas utiliza?
Recorro a técnicas que exigem alguma variedade de materiais, daí a existência de uma vitrine onde se encontram alguns deles expostos. Uma das técnicas que mais recorro é a técnica mista. O desenho muito, mas dentro dum conceito que não exige demasiadas regras ou condicionantes de execução. As técnicas mistas permitem a introdução de vários materiais em simultâneo. O desenho serve para dar forma ao meu mundo imaginativo, muito raramente para representar o real.
A pintura, em si, não é uma técnica ou forma de expressão que me seduza muito, embora goste da sensorialidade que a fluidez das tintas acrílicas transmite.

Qual a temática com que mais se identifica?
Questões de ordem social, como a saúde, a educação, as desigualdades económicas, dependências e todas as demais que não resultam da justiça, da igualdade e da fraternidade. Posso resumir tudo isso num único termo:  a espiritualidade. Tema central da exposição, cujo foco assenta na ascese, em que a retrato está de forma muito simbólica.

Já usou as técnicas clássicas?
Não muito, ou quase nada. Gostava de usar as temperas da sua forma inicial, com os pigmentos naturais e a gema de ovo, indo ao encontro da protecção do ambiente. Em relação ao uso das madeiras como suporte, gosto muito, tanto para pintar como desenhar, mas nunca experimentei da forma mais tradicional ou clássica. E também não sinto afinidade com a forma de representar ao ponto de recorrer a elas para me expressar. Aprecio-a claro, mas dentro da sua época.  

Que emoções pretende transmitir com os seus trabalhos?
A ideia de que a arte e as exposições devam ser momentos de alegria, descontração, convívio, criatividade e de se ver «coisas» bonitas, agrada-me. Mas não é nesse âmbito que gostaria de desenvolver projectos artísticos. Eu vejo a arte como um manifesto. Um canal transmissor para despertar consciências para valores, que permita ir ao encontro de dar passos para um mundo mais igualitário, em que as acentuadas diferenças sociais se minimizem. A aqui o belo pode ser o feio e o horrível.

Como surgiu a Exposição “Fractais” na Casa do Arcano?
A pintora Lena Gal, curiosamente da mesma freguesia que eu e a residir em Lisboa, viu os meus trabalhos numa página que criei no Facebook, e por iniciativa própria, sem que eu soubesse, enviou alguns deles para a Casa do Arcano. Foi assim.

Qual tem sido a receptividade do público?
Muito boa. A inauguração foi um momento de muita alegria e criatividade. As críticas têm sido muito positivas e com muitos incentivos para continuar. Alguns quadros já foram vendidos logo na inauguração e já há contactos para novas exposições.

Porque escolheu este título para a exposição?
A exposição “Fractais” resulta de uma compilação de trabalhos realizados em três tempos e espaços da minha vida bastante distintos entre si, ou seja, ela é a expressão desses três lugares ou estados de alma. E fractais foi o termo que achei que melhor se adequa a essa trilogia de tempo, uma vez que, apesar de representar tempos e espaços diferentes, fazem parte do mesmo eu.  

Até quando se poderá visitar a tua exposição?
A exposição está patente até dia 2 de Dezembro das 9 às 17 horas, com excepção dos fins-de -semana. Estão previstos alguns eventos, mas ainda sem data marcada.

Quanto tempo despende na pintura de um quadro?
Não é possível dizer quanto tempo levo na execução de um quadro. Tudo depende das técnicas, das pesquisas, dos conteúdos, dos materiais, formatos e suportes. Pode levar dois dias como um mês e até mais, é muito relativo. Cá, temos uma agravante muito grande: alguns materiais são difíceis de encontrar ou mesmo inexistentes. Para a montagem desta exposição tive uma dificuldade enorme em encontrar materiais. Procurei por um tinteiro, aparos e uma caneta de pena, e não encontrei quando necessitei. A variedade de papéis também é outro problema.

Fale-nos um pouco do seu percurso artístico.
Já participei em várias exposições colectivas, de que considero relevante para designar como percurso artístico a participação na exposição colectiva o “Renascer”, com a obra “Rios de Sangue”, e a exposição “Simétricos Assimétricos” no Plenamente.

Qual a sua pintura preferida?
Não tenho nenhuma pintura preferida, mas se tivesse que eleger uma seria a Guernica de Picasso, pelo conteúdo nela impresso: a guerra de Espanha e todas as consequências sociais daí advindas. E pela técnica, a forma como ele distribui os desenhos que representam vários pedaços do corpo, dispersos e soltos pela tela, representando a dor, a morte e a destruição.

Que trabalhos tem em mãos?
De momento, não tenho nenhum trabalho entre mãos. Pretendo concentrar-me nesta exposição, já que levou muito tempo a sair por causa da pandemia, e nas vendas, claro. Sem retorno financeiro é impossível dar continuidade a novos projectos.
Somos criativos, amamos a arte, e gostaríamos (falo em meu nome pessoal) que ela chegue ao maior número de pessoas possível, porque todos temos uma vida e necessitamos de meios financeiros para viver. Não havendo retorno, só pode haver estagnação. Mas, sim, respondendo concretamente à sua questão: tenho projectos em mente.

Que sonho que gostaria de concretizar?
Dedicar-me a 100% à arte. Não sendo isso possível, trabalhar numa área ligada à cultura.
                                  

António Pedro Costa
 
 

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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