Correio dos Açores - Emigrou cedo para a Bermuda. Como foi a sua adaptação?
Andrea Moniz de Souza (Cônsul honorária de Portugal na Bermuda) - Emigrei para a Bermuda com os meus pais quando tinha 8 anos. O meu pai foi primeiro, sozinho, e como não gostava de estar lá, cerca de oito a nove meses depois, eu e a minha mãe fomos ter com ele.
Não me lembro bem, pois era muito nova, mas tenho algumas memórias sobretudo de não entender o que as pessoas diziam. Eu só falava português e não sabia nada de inglês. Recordo-me de ter uma professora na escola, que se sentava comigo e mandava-me recortar figuras de revistas, nas quais eu escrevia em português e ela escrevia a mesma palavra em inglês. Esta era uma forma de aprender. Ao início foi difícil, mesmo para os meus pais, contudo depois adaptei-me bem. Uma criança adapta-se mais depressa e facilmente que os adultos.
Actualmente reside em São Miguel?
Por razões pessoais, actualmente, vivo entre a Bermuda e os Açores. Continuo a trabalhar para a minha empresa na Bermuda, por isso estou cá e lá, e o meu marido também faz o mesmo. Ao mesmo tempo, desempenho as minhas funções de Cônsul. Enviam-me os documentos para assinar da Bermuda para São Miguel; as pessoas que querem falar comigo, não há problema, agora toda a gente usa o WhatsApp. Ou seja, o facto de não estar lá fisicamente não é impedimento de nada. Aliás, as reuniões do Governo na Bermuda são todas feitas por Zoom. Desde que houve a Covid, ninguém quer reunir-se pessoalmente, fazem tudo por videoconferência. O mesmo acontece com a Casa dos Açores, apesar de não estar lá fisicamente, continuo como Presidente. Estou a viver uma dupla vida, a vida da Bermuda e a vida dos Açores.
Como chega à carreira diplomática?
Desde pequena, os meus pais sempre me envolveram na cultura portuguesa na Bermuda. Em criança, tinha algumas aulas na escola portuguesa, que pertencia à Associação Cultural Portuguesa, duas vezes por semana, após a escola bermudense, e aos Sábados. Desta forma, comecei a envolver-me na cultura aos poucos.
Além disso, os meus pais eram sócios do Clube Vasco da Gama da Bermuda e isto, aliado a uma iniciativa da escola portuguesa, propiciou que começasse a dançar folclore. Portanto, sempre tive uma ligação com a cultura portuguesa.
Entretanto, fui para o Canadá, para a universidade e depois para o Reino Unido, onde tirei Direito. Quando regressei à Bermuda, em 2009, recebi um convite do Clube Vasco da Gama para ser secretária da Direcção do Clube. Este convite foi muito especial para mim. Aceitei-o e fui a primeira mulher que formou parte de uma Direcção. Normalmente, eram sempre os homens que assumiam lugares de Direcção, nas associações e em outras entidades. A partir daí, envolvi-me, cada vez mais, nas actividades relacionadas com a cultura portuguesa, tal como o folclore, construindo uma relação mais próxima e estreita com a comunidade portuguesa. Daí, cresceu ainda mais a paixão e o amor pela cultura açoriana, e a vontade de promove-la. A par disso, trabalhava como advogada.
Em 2011, o Presidente do Clube Vasco da Gama terminava o seu mandato e eu decidi concorrer para Presidente da Direcção. Pode-se imaginar como isso foi marcante para um clube que era maioritariamente um círculo de homens. Mas, consegui apoio e tornei-me na primeira mulher Presidente do Clube Vasco da Gama.
Exerci funções durante três anos e, nesse período de tempo, tinha relações com o Consulado português. Na altura, uma técnica administrativa do Consulado sofreu um grave acidente de mota e este ficou fechado, pelo que me pediram para apoiar o Consulado, uma vez que era Presidente do Clube Vasco da Gama. Anteriormente, a Dra. Manuela Barros e a Dra. Graça Castanho já me tinham falado da possibilidade de haver um cônsul honorário na Bermuda, mas eu recusei, pois não queria mais cargos. Antes, já tinha havido um cônsul português na Bermuda, mas ele reformou-se.
Então, a pedido do Governo português, como o Consulado estava fechado há muitos meses, o que constituía um problema grave, eu comecei a ajudar, distribuindo cartões de cidadão, passaportes, entre outros. Se havia assuntos urgentes, falavam comigo, pois eu era o elo de ligação com o governo português. E assim começou. Em 2013, perguntaram-me, oficialmente, se aceitava assumir o cargo de Cônsul honorária de Portugal na Bermuda e eu concordei. Ao longo deste tempo continuei como Presidente do Clube Vasco da Gama. Terminei o meu mandato em 2014. Estive quase um ano e meio a fazer as duas coisas, além do meu serviço como advogada.
Por que razão não concorreu novamente a Presidente do Clube Vasco da Gama?
Em Agosto de 2014, o meu mandato no Clube Vasco da Gama acabou e eu não quis concorrer novamente. O Clube está aberto todos os dias, tem um bar, tem empregados, etc., pelo que se torna extremamente exigente. Após três anos como Presidente da Direcção, decidi que queria mais tempo para a minha vida pessoal. Apesar de não ter filhos nessa altura, a minha vida era o trabalho, o Clube Vasco da Gama e o Consulado, e eu senti que precisava de mais tempo para mim. Não concorri novamente, mas fiquei como presidente da Assembleia-geral.
Que marcos a sua passagem pela presidência do Clube Vasco da Gama deixou?
Enquanto tomei as rédeas da direcção do clube, tentei transformá-lo num clube familiar, fugindo aquele conceito distinto de “clube de homens”.
Sob a minha liderança, tornou-se num clube de família, que abrangia a escola portuguesa, as famílias, o grupo de folclore. Pessoalmente, considero que fiz um bom trabalho, sobretudo no aspecto de desconstruir as mentalidades de que aquele era um clube exclusivo para homens.
Aliás, antes de o clube ser renovado, o meu pai era sócio do clube e eu frequentava-o, em criança, quando havia folclore e outros eventos do género. Na altura, o bar tinha a porta fechada, para pedir uma bebida era através de uma pequena janela. Se eu queria falar com o meu pai, tinha que pedir ao empregado do bar para chamá-lo e ele vinha cá fora, porque as mulheres e as crianças não podiam entrar numa determinada parte do clube.
O clube foi totalmente renovado em 2004, mas, a nível de mentalidades, algumas coisas continuavam na mesma. Por isso, durante a minha presidência, tentei deitar abaixo essas paredes, tornando-a numa associação de família. Quando eu saí, a pessoa que veio suceder-me no cargo da Direcção foi, novamente, um homem e o clube centrou-se, sobretudo, no desporto, nomeadamente no futebol, e em actividades do género, pelo que a parte da cultura caiu um pouco.
Como decidiu fundar a Casa dos Açores da Bermuda?
Enquanto Presidente do Clube Vasco da Gama, fui convidada a participar no Conselho Mundial das Casas dos Açores, em 2013, na cidade do Porto. O Clube Vasco da Gama foi convidado e eu fui como sua representante ver o que era isto das Casas dos Açores. Estive lá alguns dias e gostei muito. Conheci as Casas dos Açores do mundo inteiro, aliás não sabia que havia tantas. Regressei à Bermuda motivada e com o objectivo de criar a Casa dos Açores na Bermuda. A proposta era o Clube Vasco da Gama ser incorporado como uma das Casas dos Açores, mas os sócios não se mostraram interessados.
Mais tarde, após abandonar o cargo de Presidente do Clube Vasco da Gama, comecei a sentir falta de estar envolvida na cultura. Certo dia, na varanda do Clube Vasco da Gama, do qual era ainda sócia, falando com Gervásio Pontes, ele disse-me: “vamos abrir uma Casa dos Açores na Bermuda.” Eu pensei que ele estivesse a brincar comigo, mas ele disse que estava a falar a sério, que íamos fazê-lo. Então, o que começou numa brincadeira, entre Setembro e Outubro de 2014, concretizou-se em Março de 2015, quando a Casa dos Açores da Bermuda foi fundada. Fui uma das fundadoras e, enquanto advogada, tratei de fazer praticamente os documentos todos. Fundámos a Casa dos Açores da Bermuda que agora já tem sete anos.
Renovação da sede da Casa
dos Açores da Bermuda
Como éramos uma associação nova, não tínhamos sede e na Bermuda é tudo muito caro. Tive conhecimento de uma sede que ia ficar livre, mas que estava em muito mau estado (as telhas em péssimas condições e infestado de bichos). Propus ao Governo da Bermuda alugar-nos esta sede, sob a condição que financeiramente tomávamos conta de tudo.
Actualmente, a Casa dos Açores da Bermuda tem uma sede que foi feita, praticamente, de raiz, tendo ficado apenas as paredes circundantes do antigo edifício, visto que o restante, incluindo a canalização, foi tudo novo.
Enquanto não havia uma sede, a única maneira que tínhamos para angariar fundos era a vender malassadas, especialmente na altura da pandemia, pois não se podia fazer festas. Eu sempre disse que a Casa dos Açores ia ser construída com as malassadas açorianas e efectivamente foi. Digo isto em jeito de brincadeira, mas creio que será escrito na parede da Casa dos Açores. Esta foi fruto de muito trabalho, por parte dos nossos voluntários, sócios, membros da direcção, a fazer e vender malassadas.
Em 2019, tivemos uma abertura oficial, contudo a casa ainda não estava renovada (era a casa antiga). Na altura, o Presidente do Governo Regional dos Açores era Vasco Cordeiro e foi ele que esteve lá. Portanto, abrimos a casa e depois fechámo-la para fazer a renovação.
Em Setembro de 2021, fizemos a reabertura após a renovação, que contou com a presença do Director Regional das Comunidades. José Andrade foi, pessoalmente, ver a Casa dos Açores feita pelas malassadas açorianas.
Como é vista a comunidade portuguesa de emigrantes na Bermuda?
A comunidade portuguesa da Bermuda é vista como muito forte, com uma presença igualmente forte. Há muitos anos, tivemos que batalhar para ser reconhecidos. Naquela altura, havia o estigma de ser português. As pessoas originárias da Bermuda pensavam - e alguns ainda pensam - que os portugueses iam para lá “roubar-lhes” os serviços.
Destes, que percentagem corresponde à comunidade açoriana e como é vista esta comunidade na Bermuda?
A maioria dos portugueses da Bermuda são de origem açoriana. Não temos os números exactos de quantos portugueses há na Bermuda. Há uns anos, tentei perguntar à emigração da Bermuda, para fins estatísticos, o número, mas, desde logo, percebi que os dados fornecidos não correspondiam à realidade.
Pelo menos 25% da população da Bermuda, de 64 mil pessoas, é descendente de portugueses. Destes 25%, entre 98% a 99% são açorianos. Existem poucos portugueses do território continental na Bermuda.
A comunidade açoriana é muito forte e damos continuidade a muitas tradições açorianas, nomeadamente o Divino Espírito Santo, o Senhor Santo Cristo dos Milagres, entre outras. Temos sempre muitas coisas a celebrar a Região. A cultura açoriana continua muito viva e presente, sempre com muita honra em ser açorianos e de promover isso na comunidade da Bermuda.
Com a Casa dos Açores da Bermuda, temos feito um grande esforço, nos últimos sete anos, para que toda a gente conheça e queira visitar o arquipélago.
Além disso, a Azores Airlines faz voos directos durante o Verão e isto foi algo em que batalhei muito e foram precisos alguns anos para o conseguir concretizar. Nesta altura do Natal também há mais voos. Noto um grande interesse em se visitar os Açores, não só da parte de portugueses, descendentes de açorianos, mas também dos próprios bermudenses sem qualquer ligação familiar aos Açores. Foram muitos os que vieram aos Açores no Verão passado e que adoraram.
Outra questão sobre a qual tenho estado a lutar, é o problema de as cartas de condução não serem reconhecidas. Quando isto acontecer, vai surtir um grande efeito. Recebo imensos telefonemas, no Consulado, de pessoas a perguntarem como podem conduzir nos Açores e a minha resposta é a de que não o podem fazer, o que leva a que muitos desistam de visitar a Região. Creio que, talvez, haja uma luz ao fundo do túnel, pelo menos para as pessoas que visitam os Açores de férias no Verão. Não é nada oficial ainda, pois estou à espera de uma resposta.
Normalmente, como se conseguem contratos de trabalho para a Bermuda?
Normalmente, eu acho que é muito sobre uma pessoa, que conhece outra pessoa, que diz à outra. Há pessoas que têm família na Bermuda ou amigos que lhes dizem. No caso de empresas que estão à procura, pedem uns aos outros e perguntam se conhecem alguém. É muito passa a palavra.
Os açorianos que emigram para a Bermuda trabalham, sobretudo, na jardinagem, na construção...
Trabalham, maioritariamente, nas áreas da construção, carpintaria, jardinagem e limpeza (nesta área, agora, é muito mais). Mas, também temos pessoas que vêm trabalhar como veterinários, enfermeiros. Existem, ainda, descendentes de açorianos que são advogados, políticos, doutores, arquitectos, contabilistas. Os mais jovens, filhos de emigrantes açorianos, têm outro tipo de profissões. O turismo já não é o que era no tempo em que a emigração estava muito forte. Agora, é mais o comércio tradicional e seguros. Há muitas grandes empresas, representantes da América, da Europa, que têm escritórios de seguros na Bermuda. Esta parte da economia está muito forte. Muitas pessoas, talvez as mais jovens, têm empregos mais evoluídos, nesta vertente de negócios internacionais.
Há alguma história que queira partilhar sobre alguma família emigrante açoriana na Bermuda? Algum caso de sucesso?
Actualmente, já não há muita agricultura na Bermuda. Porém, há ainda duas famílias que conseguiram continuar de geração para geração, passando dos avós para os filhos e netos, e que são, talvez, os maiores agricultores da Bermuda, nomeadamente Amaral Farms e De Silva Farms. Acho que isto é algo muito importante para a economia da Bermuda, que é representada por portugueses. Na área da construção verifica-se o mesmo. Os donos da maior empresa de construção da Bermuda, denominada D&J Construction, são açorianos. Os açorianos estão por trás de muitas grandes empresas que trazem bastante benefício à Bermuda.
Tem conhecimento de algum açoriano/a que tenha casado com algum/a bermudense?
Isto é algo que acontece com muita frequência, açorianos ou portuguesas casarem com bermudenses e vice-versa. Agora, é muito normal haver famílias misturadas. O meu marido é a terceira ou quarta geração açoriana, mas não tinha ligação nenhuma com a comunidade portuguesa quando nos conhecemos.
Leonor Santos, do canal de Youtube Sabores dos Açores, é um caso de sucesso...
Quem é que pensava que a senhora Leonor ia chegar onde chegou?! A todos os sítios onde vou, mesmo representar a Casa dos Açores, as pessoas perguntam-me pela Sra. Leonor. Toda a gente a conhece.
Há algo mais que queira acrescentar?
Em 2024, assinala-se os 175 anos da chegada dos portugueses à Bermuda. Neste sentido, estamos a trabalhar para escrever um livro sobre a história dos portugueses na Bermuda, para ser lançado no 175º aniversário. Nos 170 anos, o Governo da Bermuda criou um feriado, fez uma grande celebração e convidou o Governo Regional dos Açores. Vasco Cordeiro esteve na Bermuda em 2019, para celebrar os 170 anos da chegada dos portugueses à Bermuda. Oxalá possamos fazer algo semelhante, como forma de assinalar os 175 anos.
Carlota Pimentel