Minha Irmã já tem as ervilhacas de molho, numa tigela, sempre a mesma, desde o dia de Nossa Senhora da Conceição, para as semear, conforme usos antigos, no dia de Santa Luzia, 13 do corrente mês de Dezembro, em recipientes de diversas formas, onde irão crescer, no escuro da dispensa exterior, as lindas “cabeleiras de Menino Jesus”, para enfeitar o presépio e as várias imagens, heranças de velhas avós e tias, espalhadas pelas cómodas dos vários quartos de dormir da casa.
Da cozinha não saem este ano os odores dos licores em filtração. Era costume fazerem-se novas edições em cada ano de licor de leite e de tangerina, este aproveitando a essência caseira obtida do vidrado das tangerinas do Inverno passado, cuidadosamente retirado com afiada lâmina e apurado em álcool, até ficar amarelado e rescendente. Mas parece que agora os gostos estão mudando e os mais novos não apreciam os licores tradicionais, preferindo outro tipo de bebidas para festejar o nascimento do Deus-Menino.
Quando eu era criança, tínhamos direito a uma garrafa de licor só para nós, sem álcool, mas com sabor de essência e de muito açúcar. E apreciávamos esta curiosa equiparação aos adultos, apenas simulada, acompanhando as “saúdes” que se faziam no fim dos jantares ou durante os serões de Natal. Um desses brindes era dirigido às cozinheiras e feito à porta da cozinha, lugar reservado às mulheres e onde os homens nem eram admitidos... Criado nesse ambiente, sem qualquer conhecimento ou experiência culinária, ainda hoje olho para a cozinha com a admiração e o respeito com que olharia para o laboratório de um alquimista de outros tempos, aguardando ver dela sair, não a pedra filosofal, que tudo transformaria em ouro, mas as sopas rescendentes e as travessas enfeitadas com saborosas iguarias, fruto de receitas antigas, cautelosamente transmitidas de geração em geração.
Não chegou ainda o dia de armarmos o presépio. Digo “armarmos”, mas na verdade é minha Irmã quem de tal se encarrega e não deixa mais ninguém mexer nisso! Quanto muito consente que desembrulhemos os bonecos, guardados desde Fevereiro passado, que temos adoptado o costume da Ribeira Grande e só se desarma o presépio depois da Festa das Estrelas, tanto apreciamos a companhia das gentis figurinhas nele presentes e nos custa delas separar-nos. Mas a maior parte dos nossos familiares já tem o presépio armado e até a Árvore de Natal iluminada, e também é possível ver pelas ruas, mesmo sem andar a espreitar pelas janelas, muitas luzes de festa, dando sinal de que o Natal está próximo.
A nossa cidade também se iluminou festivamente para assinalar a quadra natalícia, por sinal desde bem cedo, aí pelo São Martinho, ou seja antes de meados de Novembro, o que talvez tenha sido um todo nada exagerado... Mas, enfim, estávamos a concorrer para ser a Capital Europeia da Cultura e não podíamos poupar esforços para alcançar tal tarefa e o correspondente galardão. Em todo o caso valeu a pena o esforço, Ponta Delgada está com ares de festa e a música da época enche as ruas, onde também é possível encontrar apreciável número de visitantes, que as animam e aproveitam as variadas formas de animação programadas pela Câmara Municipal.
Não falta até uma pista de gelo, como costuma ter Paris, mesmo em frente ao monumental edifício da “Mairie”. A nossa pista de gelo está no Campo de São Francisco, devidamente protegida da chuva, que por sinal tem caído abundantemente, e o entusiasmo que desperta é testemunhado pelas enormes filas de pessoas, que se estendem bem para fora do recinto, à espera de vez para patinar. Por mim nunca imaginaria haver entre nós tanta gente a saber patinar no gelo, mas pelos vistos há mesmo!
No Campo decorre também a habitual Feira de Árvores de Natal e de outros materiais próprios deste período, tais como farelo pintado de várias cores e musgos de diversos tipos, destinados a constar de presépios. As vendas estão correndo bem, garantiram-me há dias os Pais do meu amigo Álvaro, que começou a vir para o Campo, desde as Sete Cidades, nesta altura do ano, ainda sendo criança, mas agora é já um homem e toma bem conta do negócio. No ano passado a Mãe dele deu uma entrevista a um jornal, este ano foi o Pai, que tem o mesmo nome, o porta-voz da família, que Álvaro não é muito de conversas. No entanto, é ele que fica de noite guardando todo o material, aboletado precariamente nas instalações facultadas pelo município. E isso até ao dia 23, altura em a Feira encerra... Os atrasados de sempre já não terão disponíveis belas árvores, naturais e cortadas segundo as normas estabelecidas pelos Serviços Florestais, para embelezarem as suas casas nesta quadra do Natal.
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor
não respeita o assim chamado
Acordo Ortográfico.)