Luís H. Bettencourt, em Dia Mundial do Compositor

“O artista tem que evoluir e compor aquilo que lhe vai na alma”

 Qual a importância do Dia Mundial do Compositor?
Luís H. Bettencourt  (Músico e compositor) - O Dia do Compositor e os dias mundiais, por norma, ajudam a lembrar tarefas, funções ou, até mesmo, posturas de vida. Sem dúvida, a composição e a arte, em geral, são elementos fundamentais da nossa sociedade. Aliás, vimos da pandemia em que, quando surgiram os confinamentos, as pessoas acabaram por encontrar refúgio nas artes, a ouvir música, a pintar, entre outros. Neste caso concreto, o compositor torna-se fundamental, quer como pioneiro no que está a compor, quer no perdurar da sua arte por séculos.

O que é ser compositor?
Esta é uma definição muito complexa e individual. No fundo, acho que um compositor transmite, na sua própria narrativa e linguagem, aquilo que o universo lhe dá. Existem 12 notas à face da terra e milhões de compositores, porém o que cada um faz com essas notas é que faz a diferença do compositor em si.
Mais do que um intérprete do universo e de transmitir aquilo que realmente pretende, creio que a definição de compositor parte da satisfação e da concretização pessoal da arte que quer transmitir. Seja simples ou complexo, é composição. Ou seja, desde o pimba com dois acordes aos clássicos mundiais de Mozart, tudo é arte e saiu das mãos e mente de um compositor.

Quando surge a sua paixão pela música? Com que idade começou a compor?
Tinha entre nove a dez anos, quando o meu irmão chegou a casa com um disco de vinil da banda Iron Maiden. Recordo-me que, ao colocar o disco a tocar, ele esboçou uma cara de desagrado, ao passo que eu fiquei com a sensação de que gostava daquilo.
Curiosamente, esta altura coincide com a vinda de um primo da Terceira, para a Universidade dos Açores, que acaba por residir em casa dos meus pais. Este meu primo, que foi um dos membros fundadores da TAUA – Tuna Académica da Universidade dos Açores, tinha um violão e, inevitavelmente, eu comecei a tocar. Depois, foi a guitarra eléctrica e, a partir daí, nunca mais parou.
A nível de composição, foi desde início. Já com aquela idade, queria inventar e fazer coisas que me soassem bem, em vez de seguir algo que alguém já tinha feito.
Com 13 anos, na minha primeira banda, uma banda de originais, já tinha três a quatro músicas compostas, com letras e tudo mais.

A partir daí, qual foi o seu percurso?
Aos 16 anos, decidi que a música ia ser a minha vida. A minha mãe não se opôs, mas entendeu que eu devia fazer formação na área.
Foi nesta altura que entrei para o Conservatório. Ao chegar ao Conservatório, deparei-me com um ensino que estava preparado para alguém que não tinha qualquer conhecimento musical e eu fui para lá com o objectivo de aprimorar o que eu já sabia.  Acabei por sair do Conservatório extremamente desiludido.
Aos 17 anos inscrevi-me no concurso de jovens guitarristas dos Açores. Recordo-me de estar extremamente nervoso, pois os outros candidatos eram os meus ídolos locais. Curiosamente, acabei por ganhar o prémio revelação neste ano. Daí, advém um contacto da Ibanez, uma das maiores marcas internacionais de guitarras, que me propôs um patrocínio.
Entretanto, optei por deixar o 12º ano em banho-maria e durante cerca de dois anos dediquei-me à música, a tempo inteiro, nos vários campos, entre composição e workshops, tendo em conta que também havia uma certa exigência por parte da Ibanez, de fazer e apresentar o material.
Com 19 anos, achei que era hora de melhorar academicamente e fui para Inglaterra fazer formação em produção musical, na ACM – Academy of Contemporary Music, onde tive professores fantásticos e experienciei um método de ensino completamente diferente do estandardizado português.
Após regressar de Inglaterra surgem outras situações a nível de produção musical, já não tanto como compositor. Aliás, não deixa de ser composição, na medida em que a produção musical, no fundo, é arranjar soluções musicais para os problemas musicais dos outros.
Por volta de 2002/2003, comecei uma parte engraçada da minha vida musical que foi a composição de bandas sonoras para televisão, para a RTP-Açores, tendo, inclusive, feito a música do direito de antena de um partido político. Além disso, fiz spots publicitários para o Governo Regional e para a RTP-Açores, com o genérico do telejornal, assim como genéricos para vários programas.

Actualmente, em que projectos está envolvido?
Dou aulas de vários instrumentos, desde guitarra eléctrica, guitarra clássica, piano, bateria, baixo, na Ruído Audiovisuais, uma escola particular que se enquadra com a minha visão do ensino musical, que não é algo muito institucionalizado. Não obstante ser necessário uma sistematização do ensino, considero que há que existir um conceito individual, porque a arte é individual. A interpretação, a visão e a narrativa com que as pessoas tocam e se explanam musicalmente são individuais.
Faço, ainda, parte da mais antiga banda açoriana, com 32 anos de existência, os Morbid Death.
Além disso, trabalho com a Orquestra Ligeira de Ponta Delgada, tenho um projecto, num registo mais regional, com o André Jorge e faço parte do grupo folclórico Passos de Bruma, porque a viola da terra faz parte da nossa vivência insular e temos que a nutrir de alguma forma.
Tenho, também, entre mãos o VEIA, um projecto musical que surge com o intuito de tocar com o meu filho. Actualmente, o meu filho Henrique tem 12 anos, na altura que comecei a fazer o VEIA ele tinha 10 anos. Tudo o que eu tinha musicalmente para ele, era-lhe difícil tocar, isto é, era exigente demais musicalmente. Mais tarde, VEIA acabou por assumir moldes completamente distintos, subindo para outros escalões, com videoclipes de Youtube, entre outros.
Sempre disse ao meu filho que um dia que a banda se apresente ao vivo ele é o guitarrista e eu vou-me limitar a cantar.

 Como vive um compositor que tem como limite a ilha?
Considero que hoje em dia o conceito insular, a nível de criação, já desapareceu um pouco, devido à evolução tecnológica. Neste momento, não há qualquer tipo de barreira para o compositor nem para o intérprete em si.
Como músico freelancer, há bandas e artistas que me contratam para tocar. Actualmente, estou a preparar um concerto, que terá lugar em Maio, no continente, com uma banda em que um elemento reside em Lisboa, outro nos Açores, e já não há este limite.
As coisas trabalham-se digitalmente. Aliás, durante a pandemia fizemos ensaios virtuais em que cada um estava em casa o computador virado para si. Hoje em dia, o computador mais básico permite gravar as ideias, extrapô-las e fazer pós-produção. Hoje, temos um fenómeno a nível do Tik Tok, Instagram, Youtube. Pessoas que, a partir das suas casas, com um computador de 200 euros, meteram play, fizeram uma letra por cima e isso tem um sucesso internacional, com remuneração avantajada. A composição também tem esse aspecto polarizado.  
Um dos problemas que os compositores locais enfrentam hoje em dia, nos Açores e até mesmo a nível nacional, é a banda singrar com originais. Antigamente, íamos a um sítio e as bandas, mesmo as menos conhecidas, forçavam os originais e assim é que deve ser. Actualmente, se formos a um bar, ou a qualquer estabelecimento com música ao vivo, estamos à espera que as bandas toquem, por exemplo, uma determinada música dos U2, outra do Lenny Kravitz. De alguma forma, isso amarra a parte da composição e a parte criativa, visto que não permite grande margem de manobra.    

Em que se inspira para escrever as suas canções?
Fujo um pouco da generalidade dos músicos ou artistas. A maioria afirma que cria as melhores coisas quando está de rastos. Para mim, o processo é exactamente o oposto, além de que a composição é algo que faz parte do meu dia-a-dia, não é extemporânea ou sazonal. Todos os dias pego num instrumento e tento desenvolver uma ideia. Há dias em que não sai nada e há outros em que até sai alguma coisa. A meu ver, a composição vive desta continuidade, pelo que há uma linha à excepção dos dias maus. É mais fácil eu estar bem e escrever uma letra sobre quando estava mal, do que o contrário.
Sou um filho do que o vento me traz diariamente. Isto é, as ideias vêm de todo o lado, especialmente os erros. Não sou um pianista exímio, pelo que quando estou a tocar surgem algumas camadas harmónicas diferentes, porque eu enganei-me e o dedo foi ao sítio errado. Mas, daí surgiu uma ideia diferente que consigo extrapor para outro lado.
O mais difícil é quando estou a trabalhar num tema e surge uma ideia para outro. O dilema é se paro o que estou a fazer para desenvolver a outra ideia, ou se registo apenas esse som mediante a perspectiva de que vou perder a ideia e que podia ser melhor do que aquele que estou a compor.

O que é a música de Luís H. Bettencourt?
Para já, Luís H. Bettencourt é uma ‘multitude’ de linguagens. Costumo dizer que é uma entidade. Eu falo inglês, francês, sueco, alemão e cada uma dessas línguas é uma linguagem musical.
Muitas vezes, as pessoas perguntam-me o que ouço e isso depende do projecto em que estou a trabalhar. Se estou a compor para Morbid Death, tendencialmente, naquele período, ouço bandas que sei que eventualmente vão-me ajudar no discorrer de uma ideia, como uma passagem de bateria, por exemplo.
O que eu componho define-se pela incapacidade de poder soar como os meus ídolos. Passo a explicar: quando oiço uma música de John Mayer, que é um artista que admiro bastante, fico com uma certa inveja do compositor, a pensar que eu é que devia ter feito aquilo.
Quando se está a compor, surgem momentos em que inevitavelmente acabamos por nos encostar um pouco a uma música de alguém que nós conhecemos e aí é que surge o dilema de encostar mais ou afastar sob a pena de incorrer em plágio.
Há uns tempos, ao compor uma música, estava a fazer linha de voz que me levava a um refrão dos HIM, uma banda finlandesa que já não existe. Isto obrigou-me a compor algo dentro do género, mas que não fosse aquilo. A minha criatividade teve que circundar a originalidade de outra pessoa, de modo a que não se concretizasse exactamente da mesma forma.
Creio que hoje, o grande problema dos artistas é que as coisas já foram todas inventadas e temos que conseguir arranjar a nossa linguagem dentro do que já foi inventado, o que não é fácil, por vezes.
A tecnologia explodiu e o Youtube é uma marca indelével na nossa sociedade. Às vezes, até fico com algum receio quando componho, por isso antes de fazer qualquer tipo de lançamento ou apresentação ao público, pergunto a algumas pessoas mais íntimas se conhecem algo assim ou se lhes faz lembrar alguma coisa.

Quais são os temas abordados nas suas composições/músicas?
Depende de que projecto estamos a falar. A nível de letra, quando entro na parte do metal, gosto muito de explorar a parte filosófica da existência humana, dos dilemas que temos na vida, de um jeito poético, cheio de metáforas. Gosto de pôr as pessoas a pensar com as minhas letras.
Em VEIA assumi uma postura completamente diferente, onde incido em coisas mais universais, ou seja, não é tão castrante como o metal, que está vinculado a uma população mais específica. VEIA vive de temáticas mais universais, como o amor, a falta de, o excesso de, que leva a um exagero de.
No fundo, crio histórias. As minhas letras não são autobiográficas, aliás a única música autobiográfica que tenho é instrumental. Não precisei de letra para explicar o que queria na música. A música chama-se “13 de Janeiro”, que era o dia em que o meu pai fazia anos. O meu pai faleceu em 2019, a música foi composta no dia 13 de Janeiro de 2021 e foi lançada a 13 de Janeiro de 2022. Esta é uma música autobiográfica, porque eu sei a tempestade que tinha naquele dia. É um tema que vive de um ambiente muito próprio, de uma mágoa, de uma tristeza, mas que não deixa de ser uma contemplação em respeito também.

Das músicas que compôs, qual a sua favorita?
Isto é tão difícil. Tenho em casa mais de três mil músicas gravadas e o meu telemóvel tem mais 50 e tal clipes de voz. Tendo que identificar um tema como o meu preferido, entre vários, apontaria “Jordstrangar”, um tema instrumental que foi lançado no álbum “Oxygen” dos Morbid Death, em 2019.
Na composição daquele álbum, tinha a premissa que um dos temas dos Morbid Death tinha que ter a viola da terra numa posição predominante. Comecei a tocar viola da terra há cerca de sete a oito anos, pelo que é um instrumento relativamente recente na minha vida. Neste caso específico, a “Jordstrangar” foi criada com a viola da terra, mas depois leva toda uma parte de orquestração e metaleira, com guitarras a bombar. A “Jordstrangar” foi a última música a ser composta. Enquanto banda, tínhamos decidido que o álbum ia ser composto por 12 temas e ainda faltava um. Eu estava no estúdio a compor o tema e ao chegar ao final da música deparei-me com um dilema. Ao ouvir o tema, não achava que houvesse necessidade de ter letra. Recordo-me de ligar para os outros elementos da banda e de lhes dizer que o álbum estava fechado, contudo havia este aspecto de a música ser instrumental. Eles aceitaram e assim ficou.
Se formos à etimologia da palavra jordstranger, jord quer dizer mundo e strangar significa cordas. A viola da terra são as cordas da terra. Ou seja, foi um termo que arranjei para a viola da terra em sueco.  
   
Que memórias tem dos concertos em que participou?
Tendencialmente são boas memórias. Curiosamente, o que aprecio cada vez mais nos concertos é a interacção em cima do palco. No caso de metal, com Morbid Death, a forma como trabalhamos em palco é fantástica. Sorrimos uns para os outros, pois gostamos do que estamos a fazer. No metal ninguém sorri. Não obstante gostar de ver o público a divertir-se, as melhores memórias são, sem dúvida, em cima do palco.

Quais são os seus músicos de referência?
São tantos, tão distintos e de tantas áreas diferentes que torna-se complicado eleger. John Mayer é uma grande referência na minha vida, a nível de composição e de voz. Além deste, Ville Vallo, Steve Vai e Metallica.

Que mensagem quer deixar neste dia?
Gostaria de deixar uma mensagem, especialmente, para os compositores. Não deixem de compor, pois ficamos melhores na composição ao longo do tempo. A composição é um treino. Ninguém compõe, salvo raras e honrosas excepções, a melhor música da sua vida no primeiro dia. Por isso, componham mesmo que pareça que não vai dar a lado nenhum e que a música fique fechada numa gaveta durante 20 anos. Isso faz parte da cronologia do músico e compositor. É importante, enquanto compositores, vermos a nossa cronologia. Primeiro que tudo, o compositor compõe para si. É giro ver a nossa arte a evoluir ao longo do tempo. O artista tem que evoluir e compor aquilo que lhe vai na alma. O artista é um camaleão que muda consoante o que vive e isso é importante reconhecer.
                                        

Carlota Pimentel

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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