Os romeiros de São Miguel vão sair este ano pela primeira vez depois da pandemia, entre 25 de Fevereiro a 6 de Abril, isto é, entre o primeiro Sábado da Quaresma e a Quinta-feira Santa.
O retiro anual, que reúne as direcções dos ranchos e todos os romeiros que queiram participar, decorre na escola Secundária da lagoa, no dia 29 de Janeiro, e será orientado pelo padre José Júlio Rocha, doutor em Teologia Moral e assistente da Comissão Diocesana Justiça e Paz.
A última vez que saíram à rua foi na Quaresma de 2020, mas só saíram os primeiros ranchos, tendo depois a romaria quaresmal sido interrompida por causa da pandemia e dos constrangimentos sanitários por ela impostos.
As romarias quaresmais, que este ano completam meio século de história, são uma das mais vivas tradições penitenciais dos Açores.
Grupos de homens munidos de xaile, bordão, lenço e terço percorrem as estradas de São Miguel em clima de oração, passando por todas as igrejas e ermidas, do nascer ao por do sol.
O regresso das romarias quaresmais coincide com a chegada aos Açores do novo Bispo de Angra, D. Armando Esteves Domingues.
“Nós temos uma forte esperança de que seremos apreciados e abraçados pelo nosso novo Bispo”, assim como “temos toda a disponibilidade e vontade de encetar este novo caminho com esperança, com renovada colaboração dentro do que considerar conveniente e oportuno, para o ajudar a compreender a nossa realidade eclesial, social e cultural da diocese” afirmou ao Igreja Açores o responsável dos romeiros, João Carlos Leite.
“Ser romeiro numa ilha é estar atento à natureza, na sua beleza e energia, perigo e caducidade, ampliando os horizontes e os fundamentos da própria existência, num chão que nos foge a qualquer momento ou numa escarpa ou construção que pode desabar sobre nós. Ser romeiro é ter a percepção agradecida de que somos sobreviventes ou feridos curados, graças a algo ou alguém mais forte do que nós mesmos”, escreve o cónego Hélder Fonseca Mendes no prefácio do livro “Romeiros de São Miguel Arcanjo – 500 anos de História”.
“As romarias quaresmais da ilha de São Miguel, sem nunca o dizerem explicitamente, são Igreja em comunhão, participação e missão, com jovens a caminho de verdadeiras jornadas mundiais no tempo e no espaço”, opina.
Romarias - “Património imaterial”
As romarias são “um património imaterial transmitido de geração em geração desde o século XVI e que deverá ser salvaguardado, não só para a perpetuação da história, mas também como fonte de identidade e marco de diversidade cultural”, sublinha a professora Carmen Ponte.
O livro “Romeiros de São Miguel Arcanjo – 500 anos de História”, de Carlos Vieira, começa por traçar o percurso histórico das romarias quaresmais, rico e enriquecido pelos contributos de “importantes personalidades e investigadores” que se debruçaram sobre a questão das origens e evolução desta manifestação.
No segundo capítulo deste livro, Carlos Vieira procurou contar a história e evolução da romaria da Vila, onde desde a sua tenra idade seguiu de perto as romarias realizadas pelo seu avô paterno, um dos mais carismáticos romeiros daquela localidade e impulsionador da abertura do rancho em 1964 e também pelo seu pai, antigo e experiente romeiro do rancho de Vila Franca do Campo. Dando continuidade a esta transmissão de pai para filho, Carlos Vieira integrou-se no rancho em 2001, ocupando nos anos seguintes cargos diversos, entre os quais é mestre do rancho desde 2003.
O mestre, como o próprio nome indica, “é a pessoa mais importante do rancho. Considerado como o condutor dos seus homens, é uma pessoa acessível a todos mas as suas ordens são inquestionáveis. Compete-lhe decidir e orientar o seu rancho de romeiros. Para além disso, ele é um dos principais oradores do rancho, pelo que deve ter um conhecimento minucioso das orações e cânticos inerentes à romaria, assim como de alguns textos religiosos. Também compete ao mestre de preparar o seu rancho para a longa caminhada. Antes da partida há, na paróquia, reuniões de preparação prática e doutrinal dos romeiros. A criação de um espírito de amizade, de solidariedade, de fraternidade assim como a exercitação do canto da Avé Maria, das «Salvas», das orações nas igrejas e ermidas, ou ainda a indumentária dos romeiros e o comportamento durante a romaria são algumas das temáticas abordadas durante esses momentos de preparação que Carlos Vieira descreve no seu terceiro capítulo intitulado “A preparação do rancho”.
O último capítulo do livro é dedicado à pós-romaria e sobre este aspecto, Carlos Vieira faz realçar que o espírito das romarias “não se esgota no final da Quinta-feira Santa do período quaresmal. De facto, o abandono do individualismo e a acentuação de uma relação de participação total e imediata de cada romeiro no rancho faz com que os valores de fraternidade e harmonia social subsistem após a romaria, pois muitos dos romeiros mantêm entre si o tratamento por irmão específico da romaria. Para manter o espírito de amizade, comunhão e oração entre os romeiros, foi criado o Grupo Paroquial de Romeiros. Este grupo, organizado por paróquia, é composto por leigos católicos que já integraram nas romarias quaresmais com o objectivo de participar e colaborar em actividades paroquiais, à oração comunitária, a acções caritativas e à formação religiosa, moral e humana da comunidade em geral de forma a dar continuidade aos valores da romaria na vida quotidiana”.
Carlos Vieira “impregnou o seu livro com reais dimensões de interioridade, de alma e de espiritualidade, vividas ao retratar as romarias da Vila, e fê-lo muito bem, porque não se trata de uma tradição fixa e padronizada, pois existe uma diversidade infinita de romarias, cada romaria contendo aspectos que diferem de rancho para rancho, de mestre para mestre e até mesmo de freguesia para freguesia”, escreve no prefácio Carmen Ponte, professora doutorada da Universidade dos Açores.
Um livro para quem vive as romarias e para quem tem interesse e gosto em saber o que é ser romeiro.