Foi durante o ano de 2014 que os conservadores-restauradores do Ateliê de Conservação e Restauro de Obras de Arte – ACROARTE, criado na ilha de São Jorge com o objectivo de “salvaguardar o Património Histórico e Artístico, tendo em conta o respeito pela estética, a integridade física e histórica das obras de Arte”, entraram pela primeira vez na Ermida de Nossa Senhora das Dores, na Caloura, para procederem à avaliação que viria a resultar no restauro daquele importante elemento do património cultural açoriano, também conhecido por Convento da Caloura.
Entretanto, seguir-se-iam vários anos até que fossem iniciados os restauros, em 2019, dado o facto de a intervenção necessitar de apoios financeiros concedidos aos proprietários do edifício degradado através da Direcção Regional da Cultura.
David Silva e Odília Teixeira são os fundadores deste ateliê de restauro, responsável por vários trabalhos executados em oito das nove ilhas dos Açores, tendo em conta que não têm trabalhos realizados na ilha de Santa Maria, relembram o momento em que entraram pela primeira vez na ermida.
“A primeira vez que lá fomos foi em 2014. Já existiam tábuas caídas do tecto e havia muita degradação, mas ficou ainda pior porque houve um sismo em 2017. Como estávamos na fase de aguardar apoio da Direcção Regional, verificámos que o retábulo, que já estava fragilizado, colapsou com o sismo, ficando pior do que já estava ao ter perdido douramento. Além disso, partiram-se algumas peças e, por isso, foi mais difícil fazer as marcações e as numerações”, relembram.
Embora tenham iniciado a intervenção necessária deste importante património local, a equipa responsável pelo restauro, composta por entre seis a sete pessoas que trabalham a tempo inteiro no projecto desde o seu início, depressa se depararia com os obstáculos impostos pela pandemia, sobretudo no que diz respeito às deslocações necessárias à ilha de São Miguel para garantir o progresso do trabalho.
“Desmanchámos o tecto e transferimo-lo para São Jorge. Deveríamos regressar em Fevereiro de 2020 mas depois surgiram os casos de Covid-19, especialmente na ilha Terceira e em São Jorge, quando foi fechado o espaço aéreo, e isto também dificultou o nosso trabalho e fez com que a obra atrasasse cerca de um ano. Era para estar concluída em 2022, e vai estar concluída no Verão de 2023”, realça David Silva.
De momento, contam os conservadores-restauradores, está já concluída a intervenção ao nível do tecto e de algumas peças, nomeadamente um retábulo que falta apenas colocar no seu local definitivo, bem como os quatro confessionários da ermida, duas divisórias em madeira policromada e ainda uma pintura sobre tela, cujo restauro está também finalizado. No que diz respeito ao trabalho que irá ser concluído até ao Verão, Odília Teixeira e David Silva destacam o retábulo-mor, um retábulo lateral e o arco de triunfo que ali pertence.
Durante a intervenção que tem em conta a conservação do imóvel “de grande valor artístico e classificado”, a equipa responsável fez ainda algumas descobertas que estarão descritas no relatório final que será entregue aos proprietários, onde será detalhado todo o processo.
“Durante a intervenção acabámos por fazer algumas descobertas. Descobrimos, por exemplo, que antes de ter a talha dourada, o arco do triunfo era todo feito em pintura decorativa que é possível ver debaixo da talha.Junto ao altar-mor acabámos por descobrir uma cripta com ossadas humanas, e no camarim do trono também encontrámos várias datas escritas de diversas intervenções anteriores a meados do século passado”, contam os intervenientes neste projecto, garantindo que estes são elementos que ali vão permanecer por serem “parte da história da ermida”.
Embora se considere que estejam a ser dados “bons passos” para a conservação do património cultural açoriano, tendo em conta que “alguns trabalhos de melhor qualidade e de maior valor têm tido apoios da Direcção Regional da Cultura”, Odília Teixeira e David Silva consideram que há ainda “muito para ser restaurado e muito para fazer”.
Um dos maiores desafios encontrados neste sentido, referem, passa pelas “mentalidades fechadas” que existem ainda, e que procuram “um trabalho barato e rápido”, que leva a que, principalmente nas igrejas, surjam “imagens que continuam a ser repintadas e altares que continuam a ser redourados”.
Por isso, alertam: o “trabalho de restauro não é um trabalho rápido, é um trabalho muito moroso para que seja bem feito e tem que ser pensado para o futuro. Tem que ser feito desde a estrutura até à sua superfície, não se trata apenas de pintar para que algo fique com bom aspecto, porque toda a madeira tem que ser tratada”, isto para que o património que é alvo de restauro, como é o caso da Ermida de Nossa Senhora das Dores, possa durar mais alguns séculos.
Neste projecto em concreto, relatam que o tecto degradado foi, sem dúvida, o maior desafio, implicando sempre o cuidado e atenção de toda a equipa envolvida: “O tecto foi extremamente complicado, porque a igreja não é simétrica. (…) Tirando isto, verificámos que as tábuas estavam quase todas deterioradas pelo verso, por isso foi necessário fazer um reforço estrutural na zona das mesmas e tivemos que fazer um preenchimento no verso das tábuas. A estrutura em si também apresentava um avançado estado de degradação. Quando a fomos montar, verificou-se que havia um descaimento muito acentuado do tecto da cobertura, pelo que tivemos que intervir do interior para o exterior para que este voltasse a encaixar lá, uma vez que estava com um descaimento de 15 a 20 centímetros”, realça David Silva.
Para devolver a aparência luminosa das imagens e das frases escondidas por anos de acumulação de sujidades, humidade, fuligem, verniz oxidado e repintes, resultantes de intervenções anteriores, Odília Teixeira conta que foi realizada uma limpeza química de toda a policromia do tecto. Para possibilitar uma correcta leitura da temática decorativa do tecto, todas as lacunas (perdas) foram preenchidas, seguindo-se a reintegração cromática com uma técnica italiana, intitulada Tratteggio.
Ou seja, através “de pequenos traços finos, e paralelos uns aos outros, é possível que o observador veja a intervenção do conservador-restaurador, que veja o que é que original, ou seja, o que foi feito pelo pintor ou escultor. Nesse método, quando a pessoa se aproxima da obra de arte consegue ver qual foi o trabalho do restaurador e, quando observa de longe, não se apercebe”, explicam.
Este trabalho permitiu ainda que voltassem a ser vistos com clareza os excertos tirados da Bíblia que fazem parte da ornamentação do tecto desta ermida localizada em Água de Pau, fortemente ligada à história do Senhor Santo Cristo dos Milagres, aos quais foram também restabelecidos as suas cores naturais, que surgiram assim que retirado o vernizoxidado e a sujidade acumulada ao longo de vários anos.
De forma a que os resultados deste trabalho se mantenham a longo prazo, os conservadores-restauradores salientam que existem vários cuidados a ter em consideração depois do restauro, cuidados estes que ficarão à consideração dos proprietários, tais como “evitar flores naturais nos altares, limpezas com águas ou detergentes e evitar velas com chama a arder” de forma a que não seja deixada nenhum tipo de fuligem nas talhas ou nas pinturas que possam contribuir para a sua deterioração.
Ao longo dos anos que mantêm o ateliê de restauro, que emprega funcionários de várias nacionalidades, Odília Teixeira e David Silva têm vindo a fazer vários trabalhos de restauro diferenciado em materiais como madeira, estuque, gesso, pintura sobre tela, pintura sobre madeira, escultura policromada, metais, cerâmica, mobiliário, talha dourada e retábulos.
Joana Medeiros