José Carlos Jorge, professor no Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada

“Há certas questões que mexem connosco mas vejo os reclusos como alunos”

É professor no Estabelecimento Prisional (EP) de Ponta Delgada há muito tempo?
Comecei a trabalhar lá no ano lectivo de 2013/2014.

Como surgiu esta oportunidade?
Foi um bocadinho por iniciativa própria. Já estou nos Açores desde 1978/1979, sabia que havia alguém a dar aulas no Estabelecimento Prisional e fiquei sempre um pouco curioso. Para já, é uma tipologia de alunos a que não estamos habituados; são pessoas adultas com as particularidades de um recluso e de toda a situação por que já passaram. Tudo isto me atraia e achava que seria interessante, também porque poderia aprender muito com este tipo de pessoas e da realidade. Os professores que lá estão vão continuando porque fazem um bom trabalho, e perguntaram-me por acaso se eu estaria interessado. Entrei, e desde esse momento tenho estado ininterruptamente.

Como foi o primeiro dia em que entrou no EP? Estava ansioso?
Geralmente essa é a sensação normal da maior parte das pessoas. Eu estava muito curioso relativamente ao que iria acontecer. São pessoas muito observadoras, fazem-no até ao mais ínfimo pormenor. Sentimo-nos realmente observados. A minha conversa inicial com eles é sempre esta: a porta está aberta, não obrigo ninguém a estar aqui. Se vocês estão aqui é porque foram julgados pela sociedade, não por mim. O que se está a passar com vocês também poderá acontecer comigo se tomar uma atitude menos correcta. Respeito a vossa situação e estou aqui para partilhar qualquer coisa convosco e para vos ajudar se assim quiserem.

De que forma olha para estes reclusos? Sabe que crimes cometeram?
Vejo-os como alunos. A minha perspectiva é sempre essa.

Mas é possível fazer essa separação?
Não temos direito de saber a pena que os levou até ali. Quando sabemos é por eles, umas vezes através de um diálogo mais privado ou até em pequeno grupo de turma. Entre eles, todo sabem porque lá estão, mas nós, de fora, não temos essa informação. Quando nos passam a informação dos reclusos recebemos são simplesmente dados, como o cartão de cidadão, o nome, a habilitação e pouco mais do que isso. Protege-se sempre a privacidade deles. Até nem temos fotografias deles o que por vezes torna mais difícil relembrar os seus nomes. Às vezes custa saber algumas situações e, por exemplo, quando são casos de pedofilia há valores morais que nos vem à cabeça. Há certas questões que mexem connosco, mas não estou ali para julgar.

Eles demonstram interesse em aprender?
É relativo. Alguns têm esse interesse e quando não é por eles, tento motivá-los mais pelos filhos. Para que percebam que quando estes lhes perguntarem algo eles tenham a capacidade de explicar, por exemplo, o que é uma fracção. Deixam-se levar um pouco pelo lado da filiação e interessam-se um pouco mais pela disciplina.

Como são as condições físicas para leccionar no EP de Ponta Delgada?
Este Estabelecimento Prisional tem muitas dificuldades. As salas não são muito espaçosas.

As turmas são de quantos alunos?
O normal seriam 12 alunos, mas a sala não permite mais do que 9 alunos no máximo.

Existem computadores?
Neste momento o EP não tem. Dar a aula de TIC sem computador não é fácil (risos) mas resolvemos isso graças à Escola Antero de Quental, que dá o 3º ciclo, e acabamos por utilizar o material que eles têm para as suas aulas de TIC. Não são muitos computadores, mas permitem que, dois alunos por computador, possam trabalhar um pouco e praticar. Não há internet devido à questão dos emails ou outro tipo de questões, mas entendo que, devido ao local onde estamos, não exista a garantia de que os reclusos entrem numa rede social ou algum outro tipo de situações que até poderiam ser perigosas.

Recorda-se se de algum caso em concreto de sucesso que o tenha marcado?
Tenho um aluno de Rabo de Peixe, neste momento até está cá fora, que era extremamente interessado. Para além de trabalhar no Estabelecimento Prisional, também frequentava as aulas. Marcou-me porque, apesar das dificuldades e de se perceber que já tinha deixado a escola há muitos anos, demonstrava muito interesse. Colocava muitas questões, tinha de entender e na sua cabeça as coisas tinham de ter lógica e sentido. Percebia-se que não era alguém que estava ali só por estar.

Há algum tipo de lista de espera para poder frequentar as aulas?
Neste momento não. Temos sentido que ao longo das gerações, o número de alunos interessados em frequentar a escola tem decaído.

Não considera estranho? Porque razão pensa que isso sucede?
É estranho. Não queria dizer que é uma questão geracional, mas começamos a ter também pessoas muito novas, na casa dos 20 anos, que por vezes não têm boas recordações do tempo de escola cá fora. Às vezes torna-se difícil combater este estigma e fazer com que eles entendam que o conhecimento adquirido nestas aulas lhes pode mudar a vida socialmente, a nível de competências e de espírito crítico. Tudo isso é essencial para a sua inclusão.

Já teve problemas com algum aluno na sala de aulas?
Eles respeitam imenso os professores. Temos uma ideia pré-concebida e errada de que, por terem cometido um crime cá fora, lá dentro também poderão ser violentos, mas, muitos deles, até porque não é a primeira vez que lá estão, já levaram ‘muitas chapadas’ ao longo da vida. Com os professores não tem havido problemas, independentemente de serem homens ou mulheres. Eles respeitam imenso ambos os géneros e têm uma atitude espectacular connosco. Entre eles já presenciei, devido a algum problema proveniente do exterior da aula, a uma linguagem menos formal entre eles, mas nunca tive de intervir porque um colega chama logo a atenção para o facto de estarmos dentro de uma sala de aulas.

Está completamente sozinho com os alunos?
À partida deveria estar sempre um guarda no corredor. A maior parte das vezes está e quando tal não acontece, isso está relacionado com o número de guardas existentes no EP. Há falta de pessoal e por vezes é necessário fazer alguma ‘ginástica’ para que esteja um guarda disponível.

É professor na prisão de Ponta Delgada há praticamente uma década. Na sua opinião, o que poderia ser melhorado nesta vertente educativa?
Seria importante que tivéssemos mais pessoas a frequentar as aulas. Nem que no início do ano existisse obrigatoriamente uma palestra com os alunos. Recordo-me de ter feito uma sessão pontual em que falamos para um grande grupo, independentemente da sua escolaridade, das vantagens da escola. Uma coisa é o professor falar e outra é o técnico que pode estar mais preocupado com números do que propriamente com a aprendizagem ou as competências. Outra sugestão, seria a existência de mais computadores disponíveis para que os formandos usassem, não apenas nas aulas de TIC, mas também em Matemática. Que pudéssemos projectar materiais que possam complementar aquilo que o professor está a dizer porque, lá dentro, não temos essa hipótese.

Colocam-lhe muitas perguntas relativamente ao que acontece no exterior?
Alguns são curiosos. À partida eles não têm internet e telemóveis, mas sabemos que essas coisas acabam por existir nos estabelecimentos prisionais e este também não é excepção. Eles perguntam geralmente sobre algum espaço novo que abriu. São capazes de colocar uma pergunta deste género, mas a maior parte deles tem visitas do exterior e, portanto, acabam por ter essas informações através daqueles que lhes são mais próximos.

Pela experiência que já tem acumulada, o Estado dá a devida atenção a este tipo de educação nos estabelecimentos prisionais?
Eu penso que sim. Têm tentado uniformizar o ensino e antes do Programa Reativar já tivemos o ensino recorrente. Aí funcionava o 5º e o 6º ano e eles juntavam tudo num ano lectivo. Era um programa mais completo, com mais horas e, na minha opinião, mais abrangente em termos de disciplinas.  

Que disciplinas, em concreto, são leccionadas em Ponta Delgada?
Existe Cidadania e Empregabilidade; Aprender com Autonomia; Matemática para a Vida; TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação); Linguagem e Comunicação, que no fundo é o Português e tem também incluída uma língua estrangeira, o Inglês. No meu caso, tenho, em Matemática e em TIC, dois blocos de 90 minutos semanais. Vou lá nas Terças e Quintas-Feiras a manhã toda. Existe um intervalo pelo meio que me permite confraternizar com os restantes colegas no bar dos guardas e discutir algumas ideias. São aquelas reuniões informais que, por vezes, até são mais importantes do que aquelas em que somos obrigados a estar. Para além destas aulas, temos também o programa prático de Carpintaria, apoiado pela Kairos.

Existem muitas desistências?
Muitos acabam por desistir e também temos muitas situações de transferências para outros estabelecimentos prisionais.

Até quando vai dar aulas no Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada?
Darei continuidade a este programa até ser possível porque é completamente diferente dos alunos que tenho na Escola Roberto Ivens. Ali encontro alunos que respeitam o professor, com dificuldades, até porque a escolaridade já ficou muito para trás, mas, o que deve essencialmente interessar a um professor é explicar a quem queira realmente ouvir, assistir a mudanças, progressão e é muito interessante presenciar isso em pessoas adultas.   
                                          
 Luís Lobão

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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