Padre Duarte Melo, um dos pioneiros do apoio aos deportados

“Os repatriados estão a diluir-se no número de toxicodependentes em São Miguel e é preciso fazer um combate em rede”

 Nos finais da década de 80, novas leis promulgadas nos Estados Unidos da América (EUA) e Canadá, nomeadamente o “Anti-Drug Abuse Act”, em 1988 nos EUA, fizeram com que muitos imigrantes fossem deportados para as suas terras de origem, inclusive para os Açores.
Na década de 90, a sociedade açoriana apercebeu-se deste fenómeno e originou-se um estigma para com os deportados, considerados de “repatriados”, que eram, nomeadamente, indivíduos que tinham emigrado em criança com os pais. Por várias razões, não se integraram nos países onde procuraram fugir da pobreza em que se vivia na região, e igualmente muita dificuldade tiveram em se reinserirem, depois, nos Açores.
Não havendo dados recentes disponíveis, no relatório “Emigrantes deportados nos Açores” de 2012 do Centro de Estudos Sociais da Universidade dos Açores, constatava-se que o número de deportados tinha vindo a aumentar todos os anos, e contavam-se 1.175 repatriados nos Açores, no ano do estudo, havendo ainda a possibilidade de existirem mais casos, não comunicados. Este número tem vindo sempre a aumentar ao longo dos anos.
A maioria dos repatriados corresponde a indivíduos do sexo masculino. Entre os motivos mais comuns de repatriação, contam-se o tráfico/consumo de estupefacientes (entre as faixas etárias mais jovens) e ofensas corporais, abusos sexuais e violência doméstica (entre as faixas etárias mais velhas), e ainda a permanência ilegal e crimes contra o património. Homicídio, prostituição e crimes rodoviários são outras causas, ainda que menos frequentes. Algumas vezes estiveram em causa vários tipos de crime.
Falámos com o padre Duarte Melo, uma das pessoas que ajudaram a criar estruturas de apoio aos repatriados, nos anos 90, altura em que a sociedade ganhou consciência desse fenómeno. O padre explica que muitos repatriados foram reinseridos. Outros, por questões de toxicodependência, não se conseguiram reintegrar. Actualmente, a questão dos repatriados que não se adaptaram remete-nos  para os problemas da toxicodependência, hoje mais generalizada na sociedade.


Que apoios têm os repatriados em São Miguel?
Padre Duarte Melo - O fenómeno do repatriamento foi detetado no início da década de 90 e os repatriados iam chegando a São Miguel sem qualquer indicação oficial e sem qualquer apoio de estruturas sociais. Foi a igreja que iniciou o trabalho de acolhimento ao repatriado.
Apercebi-me do fenómeno através de um doente que estava internado no hospital. Essa pessoa foi passando a informação de todas as outras pessoas que estavam cá na ilha sem qualquer apoio. Alguns, inclusivamente, já a dormir na rua e outros a viver na lixeira. Foi através dessa pessoa que se despertou a consciência para o fenómeno. As pessoas ainda não identificavam e a palavra “repatriado” não era usada. Esta palavra começou a ser usada nos Açores a partir de um drama existencial que foi o regresso dos filhos desta terra, que chegavam cá sem qualquer apoio.
Criou-se uma estrutura de apoio ao repatriado em que se fazia o acolhimento. Tentou-se fazer a inserção socio-laboral, de acordo com os perfis de cada um. O problema era mais sentido em Ponta Delgada, onde se concentrava. Os restantes ficavam diluídos nas freguesias rurais. Outro problema que sentimos muito, na altura, é que a própria família não tinha capacidade de acolhimento, alguns também por viverem em situação de pobreza, e outros pela vergonha, que evitavam receber o repatriado. Havia dificuldade de comunicação porque a maior parte dos repatriados tinha um português muito básico, daí que tivemos de criar, também, dentro dessa estrutura, o apoio à Língua Portuguesa, e ainda à Geografia, à História dos Açores.
Não se pode fazer inserção social e laboral quando as pessoas não se identificam com a terra. Eles eram filhos de ninguém, e quase gente “sem terra”. Nos Açores eram considerados repatriados. Na América não eram pessoas muito queridas e a própria família deles, nos Açores, também não estava com grande disponibilidade para os acolher, e tornava-se muito mais complicada a inserção destas pessoas.
O número foi aumentando de uma forma progressiva e a par disso, corremos o perigo de criar a xenofobia, porque tudo o que de mal acontecia, nos Açores, era atribuído aos repatriados.
“O fenómeno do repatriado
está muito mais diluído…”

Atualmente já não se fala de repatriados, mas eles existem. O fenómeno está muito mais diluído. Agora também com os sem-abrigo, e a maior parte deles nem sequer é repatriada, há as questões da toxicodependência e a cidade de Ponta Delgada está muito vivida com este fenómeno, de grande exposição social, que a todos nos preocupa e requer respostas adequadas e assertivas de trabalho em rede com as instituições do terreno.
A igreja não se deve isentar desta situação, deve vir para a frente, porque foi a igreja que esteve na origem do apoio aos repatriados. Foi comigo, em São José, inclusivamente.
Neste momento não se fala de repatriados porque as problemáticas sociais das pessoas da terra estão a ser muito mais evidentes, devido às toxicodependências.
Muitos desses repatriados que cá chegaram foram reintegrados, constituíram família e estão a fazer a sua vida normalmente. Os mais preocupantes, que são um grupo residual, devido a questões de toxicodependência, tiveram e têm maior dificuldade de inserção. Mas muitos deles tiveram sucesso, em termos sociais.

Considera que hoje em dia, uma pessoa repatriada tem apoio suficiente para ser reinserida?
Na altura criamos o Centro de Apoio ao Repatriado. Atualmente há estruturas que vão fazendo também este acolhimento. Já há sinalização, já se sabe quando é que chegam. Para além disso, a própria ARRISCA – Associação Regional de Reabilitação e Integração Socio-Cultural dos Açores dá algum apoio.
A situação melhorou, neste sentido, em termos de apoio ao repatriado. No entanto, continuam a chegar, naturalmente. Os repatriados são pessoas com problemas legais, cumpriram penas nos EUA, e depois vão chegando cá.
Por outro lado, criou-se uma campanha para se naturalizarem e foram-se naturalizando nos EUA e no Canadá. E isto diminui o fluxo.

Os crimes que cometeram lá são reincidentes cá?
Há repatriados que, de facto, foram reincidentes e foram presos, mas tudo ligado à droga e ao tráfico. O problema dos repatriados é a questão da toxicodependência, que é igual aos que estão cá.
Como este fenómeno da toxicodependência aumentou cá, de uma forma assustadora, já não se fala em repatriados, fala-se em pessoas toxicodependentes. A maior parte não é repatriada, corresponde a residentes.

Acompanhar estas pessoas que “são muito frágeis”

O que acha que é necessário fazer ainda?
Acho que se tem de se criar políticas e pôr as instituições a comunicar umas com as outras para tentar tirar as pessoas da rua. Os sem-abrigo são a outra face dolorosa. Tentar arranjar mecanismos para apoiar através de formação e de inserção. Isso requer investimento e um acompanhamento muito personalizado a essas pessoas, porque elas são muito frágeis. Por experiência própria, quando vemos que estão a melhorar, de repetente volta tudo para trás. Trabalhei no dia-a-dia com este fenómeno de extrema pobreza. Isso denota, também que as nossas sociedades atiram as pessoas para a miséria e para a margem. Não se respeita os direitos fundamentais, humanos.
Isso requeria, da parte de quem de direito, nomeadamente das igrejas, governo e autarquias, que se sentassem e que houvesse uma participação de todos, mas isso requer políticas sociais corajosas.
Há melhorias substanciais, mas é preciso mais porque as pessoas sentem. O problema está à vista de todos e é uma preocupação de todos.

Acha que seria possível reeducar todos os toxicodependentes?
Sim, mas isso não é uma coisa por decreto. Vem de um trabalho de acompanhamento personalizado e muito pedagógico, um “estar com”, com muita paciência. A resolução técnica não é suficiente, é uma ajuda, mas é muito mais do que isso. É a relação com a pessoa, por isso é que digo “personalizado”.

Quer acrescentar mais alguma coisa?
É mau se as pessoas atribuírem os males da terra aos repatriados, o que não é verdade. É perigoso. Ouvia-se isso muito recorrentemente na década de 90. Tudo de mal que ia acontecendo era culpa do repatriado. Mas acho que isso já não se faz sentir nem se ouve. Ouve-se falar em toxicodependentes, alguns repatriados, mas tal como os outros que são cá da terra.
Saem deportados de uma pátria, que nunca foi a deles, e voltam para outra que também nunca foi sua. Saíram pequenos dos Açores e foram com as suas famílias para melhorar de vida, mas por fim não melhoraram nada, porque nunca houve uma boa inserção, outro problema da nossa emigração. Há famílias disfuncionais que não melhoraram, isso também é a parte dolorosa da emigração. Só falamos da emigração romântica, de sucesso, mas há a parte dolorosa que está no repatriamento.

Mariana Rovored *

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Autor: CA

Categorias: Regional

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