A peça “Loba” promete reflectir sobre a passagem da mulher para a idade adulta, através da associação da história do “Capuchinho Vermelho” e a tradição dos Bailes das Debutantes. O Capuchinho Vermelho simboliza a Mulher, que tenta “rasgar” com as práticas conservadores e papéis de género, abraçando a sua sexualidade, trocando de papel com o lobo. Estreia esta Sexta-feira, dia 27, às 19h no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande. Às 17h e 19H de Sábado e de Domingo realizar-se-ão mais sessões.
A performance é da autoria e interpretação da actriz Mariana Pacheco de Medeiros, de 28 anos, natural de Ponta Delgada. O gosto pela representação surgiu-lhe na escola, onde fazia teatro. Estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa. Já muito viajou por países europeus e americanos, mas no final de 2018 decidiu deixar a capital e voltar a São Miguel, berço que lhe desperta a força criativa, como conta ao Correio dos Açores.
Correio dos Açores - O que é a “Loba”? Como surgiu a ideia?
Mariana Pacheco de Medeiros - A “Loba” é uma performance com cruzamentos disciplinares, que aborda dois universos aparentemente distintos: um deles é a história tradicional do “Capuchinho Vermelho” e o outro tem a ver com uma tradição que existe no Clube Micaelense, que são os bailes das debutantes. Interessava-me pensar estas duas referências, que parecem distintas, mas na verdade, ambas as histórias falam sobre ritos de passagens. Algumas análises do “Capuchinho Vermelho” dizem que este é um conto de passagem, porque há ali símbolos associados a essa viragem da mulher para idade adulta. O facto de ela ir pela floresta a apanhar flores – o estar em flor é associado à menstruação – até o próprio vermelho, e a ideia do lobo, que ao fim e ao cabo pode representar o homem.
Ainda antes da versão escrita do Charles Perrault, o “Capuchinho Vermelho” era uma história de passagem. A menina quando está na idade de menstruar, há de aparecer um “lobo”, à semelhança das debutantes que quando são introduzidas à sociedade, a ideia é arranjarem um parceiro. Claro que nos dias de hoje isso já não faz sentido e já não são “apresentadas à sociedade”, mas isso faz com que eu continue a questionar a pertinência desses bailes, dado que já não cumprem o seu propósito original. Esses bailes apareceram na altura da reforma protestante, em Inglaterra, e o que aconteceu é que muitas das mulheres deixaram de ir para conventos e ficaram uma data de jovens, com idade para casar.
Acho que todas estas questões levantam uma série de questões sobre igualdade de género e sobre sexualidade, sobre o facto de as mulheres atingirem uma idade e tornarem-se seres sexuais. A mim interessava-me falar sobre essas questões, enquanto mulher e enquanto pessoa que cresceu aqui, nesta ilha, onde considero haver algum conservadorismo, e eu cresci com isso. A minha ideia era refletir sobre como algumas práticas mais conservadoras nos moldam e como nós conseguimos rasgar com elas.
Então o nome “Loba” é uma referência ao lobo do “Capuchinho Vermelho”?
Sim. Andei a investigar um pouco sobre esse conto, e as análises dizem que este é uma espécie de um conto de passagem, onde há a ideia de que a mulher, chegando a uma determinada ideia, já está pronta para se envolver sexualmente com um homem. Mas depois a seguir, aquele conto do Charles Perrault é uma espécie de aviso: as mulheres têm de ter cuidado com os lobos, que poderão ser matreiros, e é preciso ter cuidado. Ele até começa com um poema que diz que as raparigas devem prestar atenção aos “lobos”.
Versões e análises mais contemporâneas dessa história falam-nos do lobo, algumas delas como os nossos medos e desejos que são recalcados, isso na psicanálise dos contos, e depois há aquela análise, que me serve melhor, que tem a ver com aquela perspetiva, mais dos dias de hoje, de que o Capuchinho Vermelho poderá tornar-se, ela própria, o lobo. Há quase essa vontade de matar o lobo e de ela própria reivindicar-se e ser ela própria uma loba e de marcar uma posição de que ela é também um ser sexual. A mim interessa-me adotar essa visão do conto e brincar com isso, quase como a reinscrever a história para os dias de hoje. Em vez do Capuchinho Vermelho ficar à espera que chegue um caçador, ela própria resolve e, mais do que isso, porque é que ela própria não pode ser a “loba”.
Como é que os outros colaboradores - Joana Moreira, Sofia Caetano e Elliot Sheedy - contribuíram para a criação desta peça?
A Joana ajudou-me na escrita do texto. Ela acompanha-me desde o início e trocamos muitas ideias sobre o que poderia ser a peça, deu-me um apoio quase em termos conceptuais e como poderia abordar determinados temas e todas as ideias que eu tinha discutia sempre com a Joana. Depois quando comecei a perceber melhor que projeto é que seria esse, percebi que precisava de uma equipa que me apoiasse na construção do vídeo e do som, e então chamei a Sofia e o Elliot, que me estão a dar esse apoio no vídeo, som e na própria sonografia. Temos trabalhado os três nesta parte criativa e a Joana tem aparecido de vez em quando para dar algum apoio e feedback. É uma equipa pequena, mas com muita vontade de fazer coisas.
Como surgiu a colaboração com o Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas?
Surgiu de uma forma muito espontânea. Já tinha essa ideia para este projecto desde o início de 2022, quando recebi um apoio do VAGA. Pensava que o projeto ia ser mais pequeno do que na realidade é, mas transformou-se com o tempo.
Entretanto, comecei a desenvolver a ideia e pensei que mais do que criar uma instalação, apetecia-me afinal explorar outras vertentes, a vertente da performance, até porque essa é a minha formação. Decidi recorrer ao apoio do Arquipélago e no Verão apresentei este projecto, que foi recebido logo de braços abertos. Estipulamos um calendário de trabalho e fui financiada. A partir de Dezembro comecei uma residência artística lá, entrei para a Blackbox, e agora fico lá até à estreia do c.
Quando é que surgiu este gosto pelo teatro?
O gosto pelo teatro surgiu na adolescência, no secundário, em Humanidades, e não sabia muito bem que curso iria tirar. Sempre tive teatro na escola e gostava muito de fazer as peças, e pensei: “Porque não aprofundar e explorar um pouco?”. Então comecei a explorar e a fazer alguns workshops de teatro, fiz um workshop de interpretação para cinema com a realizadora Rosa Cabral e o seu irmão João Cabral. Fiquei muito entusiasmada com a ideia do cinema e falaram-me na Escola Superior de Teatro e Cinema. Decidi candidatar-me. Não sabia se conseguiria entrar, porque não tinha muita experiência. Tive o apoio do Nelson Cabral, um actor micaelense, que me ajudou a preparar para as provas. Consegui entrar, mas com essa ideia do cinema, era um bocado fantasia. O gosto pelo teatro veio durante o curso.
De onde surge a sua inspiração?
A ilha é uma grande fonte de inspiração para mim. Quando vivia em Lisboa tinha sempre muita vontade de criar os meus projetos e pensava em várias coisas, mas acaba sempre por pensar mais sobre o sítio onde nasci. Enquanto criadora, interessa-me pensar sobre a minha própria biografia para poder falar sobre temas, que começam por ser pessoais, mas depois espero que se tornem universais e possam chegar a mais pessoas. O facto de me interessar esse trabalho, inicialmente biográfico, acabo por me conectar muito à ilha. É uma fonte de inspiração muito grande, não só pela sua paisagem e pela força natural, mas também pela sua história, pessoas e tradições.
Como tem sido a experiência de ser actriz nos Açores?
Aparecem algumas oportunidades. Decidi sair de Lisboa porque tinha vontade de criar os meus projectos e o processo criativo pode ser feito em vários sítios. Nada me prendia à capital e até sentia que em termos de inspiração e força criativa, se calhar, estava mais conectada aos Açores. Achei que aqui teria espaço, tempo e outras condições para criar. Em termos de apoios e financiamento, nem sempre é fácil, mas sinto que o sector cultural tem crescido cada vez mais. Existe público e artistas. Acho que agora o que temos que fazer, e que já existe, é criar mais condições para que aqueles que decidam viver cá na ilha possam de facto dedicar-se à sua prática artística com as mesmas condições como em outro sítio qualquer.
Há outros projectos em vista?
Não sei o que vai acontecer nos próximos tempos. Vou dedicar-me a tentar levar este projeto a outros sítios e fazer com que ele se repita noutro espaço e noutros contextos.
Mariana Rovoredo