1. A infância atribulada
Na infância, Roberto Ivens teve uma alcunhacuriosa. Era conhecido por “Roberto do Diabo”, pois uma inteligência penetrante e uma vivacidade excessiva, resultavam amiúde numa inata propensão para a brincadeira, mesmo para a tropelia. Na verdade, ele teve uma “vida dos diabos”. À nascença, em 1850, sentiu a falta do amparo de uma família tradicional em Ponta Delgada, já adulto, enfrentou mil perigos nas travessias de África, antes da velhice, em 1898, a morte roubou-lhe o viver aos 47 anos no Dafundo/Oeiras, faz 125 anos neste 28 de janeiro.
Roberto Ivens é fruto de um amor tórrido, mas ao tempo de todo proibido. A mãe era Margarida Júlia de Medeiros de Castelo Branco, de somente 18 anos, natural de uma família antiga e nobre de Água de Pau, mas atingida por uma grande desventura, a relativa pobreza. O pai era Robert Breakspear Ivens, de 30 anos, filho de uma rica família mista, inglesa e norte-americana, de comerciantes de laranja, donos de quatro casas situadas frente ao atual edifício do Tribunal de Contas, na rua Ernesto do Canto, antiga rua da Graça, proprietários ainda de uma casa de férias no Pópulo e de várias quintas. A mãe morreu muito nova, aos 21 anos, e de tuberculose, já depois de dar à luz o irmão Duarte. O pai morreu já idoso, em Lisboa, naturalmente casado, e com muitos outros filhos de uma outra mulher, de seu nome Luísa, filha do respeitado Dr. Borralho, um faialense, velho deputado e médico municipal de Ponta Delgada. Por ter ficado grávida solteira, e sem expetativa de casamento, a mãe foi expulsa de casa dos pais, somente amparada pela tia Ana Matilde. Por ser então de uma condição superior, o pai jamais admitiu a realização do matrimónio. Em vez disso, providenciou uma casa para a simples amante na rua Ana Godinha, atual rua do Meio, onde Roberto Ivens haveria de nascer a 12 de junho de 1850. Depois, já no decurso de uma 2ª gravidez, em sinal da prestação de um discreto, mas contínuo, apoio material, o inglês transfere a consorte para uma moradia mais ampla, na rua Nova do Passal, onde ela permanece, agora servida por uma criada, até ao termo da sua curta e desafortunada existência.
Um mês e meio após o nascimento, e por insistência da mãe, o pai organizou o batismo do bebé na igreja mais recôndita da Fajã de Cima. Aí, através da corrupção de uma parteira e da cumplicidade de um padre, tudo se processou como se ele fosse uma criança abandonada e filha de pais incógnitos. Aos dois anos de idade, e por influência de um primo, o Dr. Henrique Paula de Medeiros, o progenitor decide-se finalmente pela perfilhação do menor. É certo que ainda permanece com a desonra de ser registado como filho de mãe desconhecida, mas o reconhecimento da paternidade faculta a Roberto Ivens o privilegiado acesso à abastada casa dos avós, onde beneficia de uma educação relativamente esmerada.
Ainda mal refeito da morte inevitável em 1853 da tristemente amada Margarida Júlia, logo no ano seguinte, e de novo numa igreja de periferia, agora a do Livramento, o pai de Roberto Ivens casa com a senhora Borralho. Profissionalmente, mantém-se no negócio da laranja com a Inglaterra, até ao falecimento em 1857 do seu próprio pai, o velho William, o primeiro inglês do tronco dos Ivens a desembarcar em S. Miguel na era já longínqua de 1800. O desaparecimento do patriarca dos Ivens nos Açores, coincidente com a ruína, por ação das pragas da natureza, dos pomares de laranjeiras e de limoeiros, motiva a imediata mudança de atividade, mas sobretudo de residência, de Robert Breakspear Ivens, que opta pela exportação de cortiça e de frutos secos, por exemplo, figos, alfarrobas e passas, a partir do Algarve. À transferência do progenitor para terras algarvias, logo em 1858, segue-se a deslocação da própria família, incluindo os dois filhos ilegítimos, um deles Roberto Ivens.
Apesar dos relatos de outrora, desconhecemos quase de todo a inserção, boa ou má, da criança, do adolescente e do jovem Roberto, no seio da sua nova parentela, designadamente, a sua relação com o pai, também com a madrasta. Certo é que em Lisboa, em 1885, já idoso e retirado dos negócios, Robert Breakspear Ivens, com olhos rasos de água, espera de braços abertos o filho Roberto, já então um renomado explorador, que colhia o justo reconhecimento da nação, no retorno da sua profícua penetração nas desconhecidas entranhas de África. Na altura, seriam decerto contraditórios os sentimentos do velho pai. Sentiria orgulho? De certeza! Sentiria remorso? Talvez! Por exemplo, pela encenação do batismo, como filho de pais incógnitos; igualmente pelo processo de perfilhação, como filho de mãe incógnita. Sentiria tranquilidade? Talvez! Porque, na sociedade da desigualdade e da discriminação, ainda elevara o filho da condição de quase enjeitado à conquista da dignidade humana, até do louvor social.
2. De marinheiro a explorador
Em matéria de formação académica e de carreira profissional, na sequência de uma súplica do pai ao rei D. Pedro V, Roberto Ivens é admitido na Marinha em 1861, aos 11 anos, na condição de aspirante de 3ª classe. Uma década depois, conclui com distinção o curso da Escola Naval, iniciando um quase infindável percurso de navegação, que inclui passagens por todos os continentes. É nesta longa travessia dos mares, com incursões em muitas terras, que Ivens desenvolve duas grandes paixões, uma o gosto pelo desconhecido, outra o encanto por África. E, mesmo depois das explorações africanas, permanece para sempre nos quadros da Armada, chegando ao posto de capitão de fragata em 1895, já depois do exercício de oficial às ordens da Casa Militar do rei D. Carlos, desde 1890.
E dito isto, falemos agora da ação de Roberto Ivens como explorador, que transmite à Europa e ao Mundo os bem guardados segredos de África. No longínquo século XV, após a conquista de Ceuta em 1415, e sobretudo depois da dobragem do Cabo Bojador em 1434, os portugueses foram os primeiros europeus a desvendar o continente africano. Todavia, à exceção de curtas surtidas na foz dos principais rios, limitaram-se ao domínio do litoral, onde estabeleceram feitorias para o exercício do comércio. De facto, a corrida da Europa às riquezas de África, em busca de matérias-primas indispensáveis à industrialização, acontece somente no século XIX, quando a insurreição dos povos ameaça o colonialismo dos brancos na América. Este é então o tempo dos grandes exploradores, que reservam para os seus respetivos países as mais ricas parcelas do continente negro, cuja posse exigia o efetivo controlo dos territórios e das populações, à luz do acordado pelos líderes do Ocidente hegemónico na conferência de Berlim de 1884-85. Entre os pioneiros da exploração africana, enumeramos o inglês Livingstone, o norte-americano Stanley e o francês Brazza, a que se pode acrescentar o português Silva Porto, com batidas da década de 1850. Em Portugal, para estímulo da investigação tropical, funda-se inclusivamente em 1875 a Sociedade de Geografia de Lisboa. É neste contexto que acrescem as incursões pelo interior africano, para concretização do antigo projetode 1838 do velho marquês Sá da Bandeira, tendente à invenção de um “Brasil africano”, antídoto único, e de novo ultramarino, da decadência denunciada por Antero Quental nas Conferências do Casino Lisbonense em 1871, por manifesto fracasso da modernização liberal. Tais expedições são primeiro protagonizadas por Serpa Pinto, Brito Capelo e Roberto Ivens, depois continuadas por muitos outros, casos de António Maria Cardoso, VitorCordon, Paiva de Andrade ou Henrique de Carvalho.
Em tal contexto internacional, e desta feita em África, Roberto Ivens e os demais companheiros agem como os antigos bandeirantes do Brasil, que fixam a soberania portuguesa em territórios sob disputa dos imperialismos europeus nossos concorrentes. Por isso, as missões de reconhecimento do interior africano possuem motivações bem variadas, desde o propósito político até à curiosidade científica. Mais, em tal época, defendem concretamente o chamado Mapa Cor de Rosa, que reserva para Portugal um vastíssimo espaço de Angola a Moçambique, entre as costas ocidental e oriental africanas. Um projeto grandioso, mesmo megalómano, considerando a pequenez e a fraqueza dos portugueses face à extensão e à força da generalidade dos contendores. Na verdade, a interesseira tolerância de França e da Alemanha não anula a problemática oposição da Inglaterra, velha aliada e protetora, potência marítima e dominante, com maior razão detentora de um plano ainda mais ousado, tendente à união do continente negro por uma via-férrea do Cairo ao Cabo, isto é, do norte ao sul, de todo incompatível com a obstrução portuguesa entre as regiões angolana e moçambicana. Assim, os esforços mil dos destemidos exploradores muito dificilmente lograriam o almejado engrandecimento de Portugal no Ultramar. Com efeito, apressaram mesmo o trauma de 1890, provocado pelo ultimato inglês, justificado pela traição lusa aos princípios da velha aliança, bem patente na falta de comunicação diplomática e na busca de apoio entre os rivais de Londres. Na verdade, a intimação britânica impõe a humilhante retirada lusitana do centro africano, gerando uma violenta reação nacionalista, causa já próxima da agonia da Monarquia, ao cabo de duas décadas substituída pela promissora República. Contudo, por outro prisma, o beneplácito britânico à posse portuguesa de Angola e Moçambique ainda constitui uma recompensa de vulto, sem par no precedente e minguado domínio territorial dos portugueses em África, devedora do arrojo de Ivens e seus parceiros.
A exploração dos novos e recônditos territórios africanos exigia uma pesada logística e defrontava uma infinidade de perigos, obrigando a uma meticulosa preparação. De facto, incluía muita gente, estudiosos, técnicos e carregadores de meios de subsistência e de defesa, todos enquadrados por guias nativos conhecedores do terreno. Além disso, sucedia a fome, a doença, mesmo a morte, em consequência da falta e do estrago dos víveres, da ameaça das feras, e até dos mosquitos, e da resistência dos indígenas. Neste contexto, eram escassos os antídotos, algum armamento ligeiro, e muito quinino, para prevenção da malária.
Por entre extensas, penosas e sempre contínuas caminhadas, os exploradores inventavam tempo para o registo da flora, da fauna, do clima, da orografia, dos lagos e dos cursos de água, também da organização económica, até dos costumes dos diversos povos. Originário da sociedade portuguesa esculpida pela vontade dos homens, Roberto Ivens salienta a estranha influência das mulheres de algumas tribos africanas, de todo preponderantes nas vivências domésticas, igualmente em certas manifestações públicas.
O exercício da função de explorador de mundos desconhecidos constitui uma iniciativa do próprio Roberto Ivens. Sob o fascínio de uma África de todo enigmática, resultante de um contato de circunstância, e ainda tocado pelo fervor patriótico de antanho, o micaelense solicita superiormente a integração numa projetada missão de levantamento do vasto território situado entre Angola e Moçambique. Atendida a súplica, o ainda jovem marinheiro participa em duas longas travessias, ambas elas na companhia de Brito Capelo, a primeira delas também iniciada por Serpa Pinto, que, entretanto, segue um percurso em separado. A primeira das missões, realizada entre 1878 e 1880, resulta em relativo insucesso, dado o manifesto incumprimento do objetivo, tendente ao entendimento da conexão entre as bacias hidrográficas do Zaire e do Zambeze. A última das missões, realizada em 1884 e 1885, resulta em rotundo sucesso, pois concretiza a união de Moçâmedes, em Angola, com Quelimane, em Moçambique, revertendo em fundadas vantagens políticas, económicas e científicas. Aliás, os resultados constam do livro De Angola à Contracosta de 1886, da autoria dos dois expedicionários, mas devedor de um maior contributo de Roberto Ivens que, mais expedito no ofício da redação e na arte da ilustração, assume as funções de escrivão e de desenhador, numa só palavra de repórter.
3. O reconhecimento nacional
A apoteose caracteriza a chegada dos exploradores Brito Capelo e Roberto Ivens a Lisboa em 16 de setembro de 1885. Entre as inúmeras e prolongadas manifestações públicas de júbilo, sobressaem a comparência do rei D. Luís e dos infantes, a aprovação por rara unanimidade de um voto de congratulação na Câmara dos Pares do Reino e a receção nos Paços do Concelho. Da capital, os festejos transitam para o restante território, sobressaindo a entusiástica entrada no Porto, precedida por vivas estridentes nas principais estações ferroviárias, por exemplo, em Vila Franca de Xira, Santarém, Pombal, Coimbra e Aveiro. Por notificação da Sociedade de Geografia de Lisboa, o feito logra divulgação nas capitais europeias, a saber, em Madrid, Paris, Berlim e Londres. De novo em Lisboa, a atribuição do sobrenome Ivens à antiga rua de S. Francisco, já depois da condecoração com a comenda da Ordem Militar de Santiago, concretiza a perpetuação do bravo desempenho do explorador micaelense.
Em Ponta Delgada, Ernesto do Canto e Francisco Maria Supico pontificam no louvor público dos feitos de Roberto Ivens. Assim, o Arquivo dos Açores classifica o cortejo cívico de 6 de dezembro de 1885 pelas artérias citadinas e a sessão de homenagem no Teatro Micaelense como as mais aparatosas festividades ponta-delgadenses de sempre, que incluem a execução de um hino ao explorador micaelense, também a edição de um número único do jornal Ivens e Capelo. Já a Persuasão sugere a atribuição do nome do pesquisador à rua Ana Godinha, onde viera ao Mundo, e a colocação de uma lápide evocativa na casa de nascimento. Ambos os alvitres logram execução, embora a sua eternização na toponímia da capital micaelense aconteça noutro local, embora o assinalamento do seu primeiro lar ocorra noutro tempo. Na verdade, o topónimo Roberto Ivens denomina a nova avenida que em 1886 liga a rua Formosa, atual rua de Lisboa, ao Campo de S. Francisco, através da demolição de parte da cerca do convento da Esperança. Quanto à identificação da moradia de nascença, aguarda até à celebração do centenário da efeméride. Todavia, a gratidão dos micaelenses pela proeza do grande explorador adquire ainda maior relevo na realização do seu busto, concluído em 1889. Erigido no Relvão, em local escuso, propício à prática do vandalismo, à passagem da centúria natalícia, a estátua obtém transferência para a mais nobre avenida Roberto Ivens, onde também nem sempre logrou as condições mais favoráveis à dignidade da exposição. De resto, até aos nossos dias, permanece viva a fama de Roberto Ivens na memória das gentes. Por isso, em 1968 e 1987, empresta de novo o seu nome a uma fragata militar e a um navio mercante, respetivamente, em 2002, a um agrupamento de escuteiros marítimos, e de permeio a uma escola, criada em 1970, e que em 1995, à passagem dos seus 25 anos, manda cunhar uma medalha em honra do insigne patrono, que três anos depois, em 1998, motiva a edição de um selo dos CTT.
4. A memória de hoje
Em 1998, por altura do 1º centenário da morte de Roberto Ivens, à luz de um entendimento muito em voga, mas de todo a científico, a revista Visão atribuiu ao explorador micaelense o epíteto de racista, considerando a sua suposta insensibilidade, expressa na falta de denúncia das iniquidades sociais e apenas traduzida na exclusividade da análise nas incidências da natureza, da ciência e da técnica.
Apesar da persistência da doença, da fome, da guerra e da desigualdade, ainda acreditamos no progresso da Humanidade. Assim, abominamos práticas de antigamente, por exemplo, a escravatura, que gerou o regalo de muitos homens à custa do infortúnio de muitos mais, e o controlo das consciências, admitido pela própria Igreja, que pregava a prática do bem. No entanto, contestamos o julgamento do passado pela mentalidade do presente, pois dificulta sempre a compreensão da História, jamais convertível em útil mestra da vida. Por isso, reconhecemos o diferenciado ideário de Roberto Ivens, dificilmente compaginável com alguns dos atuais lugares-comuns do discurso politicamente correto. Contudo, e não só pelo heroísmo, achamos de todo apropriado que ele empreste o seu nome a embarcações e arruamentos, inclusivamente a um estabelecimento de ensino da sua cidade natal. E simplesmente por duas razões: porque à chegada a África lamentou a miragem europeia do lucro, contra o falatório da civilidade; porque à saída de África defendeu a educação do indígena.”
*No essencial, este texto reproduz a preleção proferida ontem em Ponta Delgada, na Escola Básica e Integrada Roberto Ivens, à passagem dos 125 anos da morte do explorador micaelense.