Os Açores têm identificadas seis raças autóctones, designadamente o Cão Fila de São Miguel, o Cão Barbado da Terceira, o Burro Anão da Graciosa, o Pónei da Terceira, o Gado Ramo Grande e o Gado Catrina. O Correio dos Açores’esteve à conversa com Maria Susana Lopes, investigadora auxiliar do Centro de Biotecnologia dos Açores, que é de opinião de que as raças autóctones da Região devem ser promovidas como produto de excelência do desenvolvimento rural e económico, pois “tratam-se de testemunhos vivos da nossa história, da nossa identidade cultural, das nossas origens, do nosso património genético e da nossa ruralidade, que é tão importante para o progresso.”
Correio dos Açores - Das actuais seis raças autóctones oficialmente reconhecidas nos Açores, duas são caninas, duas equídeas e duas bovinas. Há alguma base de dados que forneça um número de animais de cada raça?
Maria Susana Lopes (Investigadora auxiliar no Centro de Biotecnologia dos Açores) Existem várias bases de dados que se podem consultar sobre os animais de cada raça, respectivamente as dos registos oficiais, afectas à Direcção Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV) que no caso dos bovinos é o Sistema Nacional de Informação e Registo Animal (SNIRA), no caso dos cavalos e burros é o Registo Nacional de Equídeos (RNE) e, no caso dos cães, é o Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC). É nestas bases de dados que os secretários técnicos fazem as inscrições dos animais quando pertencentes a uma determinada raça. Além disso, existe o portal da Sociedade Portuguesa de Recursos Genéticos Animais (SPREGA) e o Sistema Mundial de Informação sobre Diversidade de Animais Domésticos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (DAD-IS), que não inclui os animais de companhia, apenas os de produção. A actualização destas duas últimas bases de dados é também da responsabilidade dos secretários técnicos das diferentes raças autóctones, mas é feita após solicitação pelas entidades que gerem essas bases de dados, geralmente, uma vez por ano.
Destas, há alguma raça que esteja em “perigo” ou que necessite de mais protecção?
Todas elas são consideradas raças raras pela União Europeia, pelo que todas devem ter apoio, no entanto temos que ter em conta as especificidades de cada uma. As raças de cães, infelizmente, dependem muito das modas, pelo que não é o facto de terem tempos de gestação mais curtos e de ser possível produzirem mais do que uma ninhada por ano que permite aumentar o número de animais. Actualmente, o Cão de Fila de São Miguel vem sendo procurado como cão pisteiro, mas ainda se tem que afirmar nesta valência. O potencial existe, mas é preciso que haja procura. Já nos animais de produção, no caso dos Açores, bovinos, póneis e burro, têm tempos de gestação longos e produzem, geralmente, apenas uma cria por ano, o que reduz o retorno. Embora, no caso dos bovinos, se possam vender diferentes produtos como o leite e a carne, no caso dos póneis e burros apenas é comercializado o leite, pois em Portugal não é comum o consumo de carne destas espécies, sendo muito mais difícil obter um rendimento que faça face às despesas de manutenção. A participação em actividades lúdicas e turísticas, e nos trabalhos agrícolas também dão algum rendimento, mas é marginal. Penso que se não tivesse havido apoios à manutenção dos animais da raça Ramo Grande, como tem havido desde 1995, a mesma não teria o número de animais que tem actualmente.
Existe uma associação, na Graciosa, vocacionada para preservar o Burro Anão da Graciosa. Tem conhecimento de mais algum espaço deste género nos Açores?
Antes de mais, quero esclarecer que no âmbito das raças reconhecidas, o nome correcto é Burro da Graciosa. O nome Burro anão da Graciosa resulta de uma imprecisão cultural, propagada ao longo dos tempos, uma vez que antigamente se chamava Burro aos cavalos pequenos, actuais Póneis, e Burro Anão aos Burros. Respondendo à questão, sei que o Presidente da Associação de Criadores e Amigos do Burro Anão da Ilha Graciosa possui um número considerável de animais, que podem ser visitados por quem estiver interessado.
Relativamente ao Pónei da Terceira, está a ser criado o Centro Interpretativo do Pónei da Terceira, na zona do Pau-Velho, onde será possível mostrar a história da raça, desde os descobrimentos à actualidade e fazer passeios, quer montados, quer em carros de cavalos puxados por póneis da Terceira.
Qualquer iniciativa de preservar raças autóctones é de louvar, quer seja através de santuários ou de proprietários isolados. Tratam-se de testemunhos vivos da nossa história, da nossa identidade cultural, das nossas origens, do nosso património genético, da nossa ruralidade, que é tão importante para o progresso.
Que conclusões resultaram do AzoBreeds, o encontro sobre as raças autóctones açorianas?
Foi a primeira vez que se juntaram os responsáveis de todas as raças autóctones e as entidades oficiais que fazem a gestão do património genético animal, não apenas na Região, mas a nível nacional. Acho que foi muito importante consciencializar as entidades oficiais para a importância que estas raças tiveram no desenvolvimento das ilhas e a relevância que se espera que continuem a ter. Cada uma com a sua especificidade traduzem-se em reservatórios de genes que podem vir a ser extremamente importantes no futuro, na preservação da biodiversidade não só animal, mas também vegetal.
O que se pode fazer, por exemplo entre a Universidade e os produtores de raças autóctones para assegurar a continuidade das diferentes raças?
A Universidade dos Açores, através do Centro de Biotecnologia dos Açores (CBA-UAc), tem sido bastante activa na preservação destas raças. Foram os trabalhos desenvolvidos pelo Centro de Biotecnologia dos Açores que possibilitaram o reconhecimento de quatro das seis raças autóctones açorianas, nomeadamente Cão Barbado da Terceira, Pónei da Terceira, Burro da Graciosa e Gado Catrina, por ordem cronológica, para além de ter estado envolvida no trabalho que levou ao reconhecimento internacional do Cão de Fila de São Miguel pela Federação Cinológica Internacional. Actualmente, é o Centro de Biotecnologia dos Açores que faz os controlos de filiação de algumas destas raças, além de outros estudos mais específicos. Estes estudos permitem fazer um acompanhamento da evolução genética das raças, possibilitando um aconselhamento às entidades gestoras das diferentes raças, caso estas assim o entendam.
O Centro de Biotecnologia dos Açores também está a estudar algumas destas raças no sentido de identificar variantes genéticas associadas a características com interesse económico, nomeadamente aproveitamento forrageiro, resistência a doenças, conformação, comportamento, desempenho físico, qualidade da carne e do leite, entre outros.
Quais as mais-valias das raças autóctones, sendo que algumas têm um papel activo nas festividades da Região?
Como referi, são testemunhos vivos da nossa história, da nossa identidade cultural, das nossas origens, do nosso património genético, daí a sua importância e o facto de terem um papel activo nas festividades da Região. Para além disso, podem ser consideradas reservatórios de variabilidade genética. Ademais, não estiveram sujeitas a selecção por modas, mas sim pela sua funcionalidade às condições e necessidades da época. Podem vir a ser uma mais-valia muito interessante no melhoramento de outras raças, que venham a precisar de aumentar a sua variabilidade, robustez e sustentabilidade.
Ao longo dos anos, tem havido uma consciencialização por parte dos açorianos em relação às suas raças autóctones?
Penso que sim. Devagarinho e através das associações das raças tem-se vindo a fazer um importante trabalho de divulgação e de consciencialização, sendo que umas têm mais aceitação que outras. Talvez por algumas estarem associadas a tempos de vida mais difíceis e duros são sempre menos acarinhadas, mas foram esses animais que permitiram a muitas famílias sobreviver, viver e dar formação às gerações seguintes e é nosso dever não deixar esquecer a importância que esses animais tiveram e preservá-los para as gerações futuras.
Que papel tem tido o Governo na sensibilização das pessoas para estas raças?
O Governo tem vindo a sensibilizar as pessoas através da participação destas raças nas feiras e certames que organiza, através da distribuição de folhetos sobre cada uma das raças e agora com a criação de um portal com informação sobre as raças autóctones. Podia fazer mais? Podia, mas isso pode-se sempre.
O meio-ambiente é que leva a que as raças se adaptem ao sítio onde vivem? Que alterações no ecossistema dos Açores levaram a que as espécies se adaptassem às ilhas?
Aquando dos descobrimentos, os animais (várias espécies) foram trazidos para as ilhas e aqui foram evoluindo conforme as necessidades dos povoadores. Alguns animais foram empiricamente seleccionados para ajudar nos trabalhos agrícolas e transporte de carga, o que se reflecte na resistência do Pónei da Terceira e do Burro da Graciosa; outros para ajudar no maneio do gado, espelhado na funcionalidade do Cão de Fila de São Miguel e Cão Barbado da Terceira; outros para carne; outros para leite, enfim, foram evoluindo conforme as necessidades dos proprietários. Um dos meus exemplos preferidos é o Gado Catrina. O Centro de Biotecnologia dos Açores fez análises genéticas e identificou que estes animais possuem as variantes genéticas que a indústria leiteira anda actualmente à procura: variante B da k-caseína que se reflecte num maior rendimento industrial e variante A2 da β-caseína que está associada a um leite menos alergénico. Como é que isto foi possível? O leite que provém de vacas que não têm a variante A2 está associado a distúrbios gastrointestinais, pelo que, em tempos idos, de forma empírica, essas vacas, cujo leite provocava dores de barriga e estavam associadas a leite de fraca qualidade, eram descartadas. Não eram essas vacas que ficavam para produzir leite para casa. É óbvio que não são as maiores produtoras do mundo, mas naquela altura não eram necessárias grandes quantidades. Precisava-se de leite para casa e pouco mais, e quantidade não é sinónimo de qualidade. Isto é apenas um exemplo em relação a uma raça, mas exemplos das outras não faltam. E foi assim que as raças foram evoluindo.
Qual o papel destas raças nos ecossistemas locais?
Estes são animais adaptados às condições locais, animais rústicos, alguns habituados a comer as franjas de terrenos mais pobres e que não podem ser aproveitados por animais de altas produções, ou em pastagens a maior altitude. Temos, também, o exemplo dos burros e dos póneis na ajuda dos trabalhos agrícolas em parcelas pequenas. Actualmente, algumas destas raças podem ajudar a combater a flora invasora em zonas específicas, contribuindo indirectamente para a manutenção da flora autóctone. Uma valorização para a fauna e flora autóctones.
Internacionalmente, há cada vez mais valorização das raças autóctones com a sua utilização e integração em sistemas de produção sustentável, quer florestal, quer agrícola. Exemplo disso, e já bastante difundido, é a utilização de cabras para pastoreio de matos para prevenção de fogos florestais.
Há algo mais que queira acrescentar?
Acredito que, pelas suas qualidades, as raças autóctones vão ser cada vez mais conhecidas, reconhecidas e valorizadas, e não me refiro apenas a nível regional.
Carlota Pimentel