Há quanto tempo participa em romarias?
Sempre vivi com romarias à minha volta. Anteriormente morava numa casa em frente da igreja, onde passei toda a minha infância. Brincava no jardim em frente, que hoje é uma praça, e quando os romeiros passavam íamos vê-los na igreja, contar os bordões e ouvir aquelas cantorias. Ficávamos deslumbrados, um pouco amedrontados com aqueles homens e depois disso, começamos a recolher romeiros em casa dos meus pais. Mais tarde, o meu pai começou também a ir de romeiro e foi durante muitos anos no rancho do Rosário, de Santa Cruz, de Água de Pau no de Rabo de Peixe. Como ele era professor na antiga Escola Industrial tinha de aproveitar a Semana Santa que era o seu período de férias para sair. Fui tendo esse contacto e mais tarde fiz um dia de romaria com o meu primo.
Quantos anos tinha?
Devia ter 8 ou 9 anos e fizemos um dia de romaria não oficial. Íamos atrás do rancho do Rabo de Peixe que dormia na Lagoa e nos Arrifes. Como os avós paternos do meu primo eram dos Arrifes, fomos os dois atrás do rancho com os mais velhos e foi uma experiência diferente. Dormimos em casa dos avós do meu primo e no outro dia de manhã, quando o rancho saiu, ficamos atrás e vieram trazer-nos a casa. Mais tarde, quando tinha uns 11 ou 12 anos, novamente com o meu primo, fomos com o meu pai no rancho de Santa Cruz e fizemos uma romaria inteira. Depois disso parei por razões várias, o meu primo também, mas o meu pai continuou. O nosso rancho do Rosário deixou de sair durante cerca de uma década e havia um irmão, o irmão José Maria que infelizmente já faleceu, que era um entusiasta e resolveu, com um grupo de romeiros, reabrir o rancho em 1994. Era preciso arrebanhar pessoas para o rancho reabrir e nesse ano, como ainda acontece muito, foram grupos de familiares. Eram 5 ou 6 grupos de pais, filhos, primos ou irmãos e o rancho reabriu. Tive de interromper, acho que o meu pai ainda fez mais uma romaria no rancho do Rosário, e em 2002, o meu primo João António assume as funções de mestre e disse-me que a primeira romaria que tinha feito era comigo e que gostava que eu viesse. Inscrevi-me, fui às reuniões, mas tive de ir em trabalho para o estrangeiro e não pude participar. Retomei em 2004 e desde então só falhei um ano devido a motivos de saúde do meu pai.
Que diferenças encontra entre a sua primeira romaria e as de hoje?
Os caminhos eram quase todos terreiros ou então de calçada. O caminho de calçada era terrível porque era menos regular enquanto os de terra eram óptimos para os pés. Depois, não havia o cuidado de, nas pernoitas, pôr os mais pequenos juntamente com alguém mais velho. Por acaso nas pernoitas que fiz fiquei com o meu primo, mais velho do que eu dois anos, ou com o meu pai, mas às vezes acontecia miúdos de 12 anos ficarem sozinhos durante uma pernoita. O miúdo tinha de ter a responsabilidade de acordar e temos de recordar que nessa época ainda existiam localidades onde não havia luz. Mais, não havia também o costume dos ranchos já estarem arrumados. Ou seja, chegávamos à igreja, fazíamos a oração, os sinos tocavam, as pessoas iam lá buscar os romeiros e, por vezes, nem todos eram arrumados. Alguns ficavam na igreja e iam para alguma arribana onde se guardava milho para o gado. As refeições eram todas de saca e pontualmente abastecia-se nas mercearias. Já em 94 havia essas idas à mercearia ou à padaria para buscar pão para dois ou três dias e lembro-me perfeitamente que nessa data tivemos três refeições oferecidas. Não como peixe porque sou ovolactovegetariano e recordo-me de estarmos a descer o atalho da Ribeira Quente e de estar uma família a fritar chicharros para todos os irmãos. Tinham também pão de milho, vinho e o irmão José Maria, como sabia que eu era vegetariano, arranjou outra coisa para eu comer. Da primeira romaria para a de 1994 encontrei grandes diferenças e, por exemplo, quando era miúdo só o mestre é que fazia as orações. Ele é que fazia as orações todas na igreja e quanto muito o contramestre podia rezar uma oração aqui ou ali, mas era o mestre quem mandava. As orações eram apenas cantadas à porta da igreja e havia depois os pedidos tradicionais; pelos que morreram, pelos sismos, pela guerra, etc. Não havia uma oração pessoal e íntima.
Há quanto tempo é mestre dos romeiros do Rosário da Lagoa?
Sou mestre romeiro desde 2011. Já levo alguns anos como mestre e hoje as coisas são diferentes. Já em 1994, com o irmão José Maria, ele arranjava aquilo a que chamamos de oradores para realizarem as orações nas igrejas e não ser sempre ele a fazê-lo. Em determinados locais, permitia também que houvesse partilha de reflexões e a existência de uma oração pessoal nas igrejas. Com o mestre seguinte, o meu primo João António, há um outro salto em termos de reflexões na romaria e ele introduz mais participação. Temos mantido essa linha.
O que o leva a liderar um rancho de Romeiros?
Ser mestre de romeiros nunca foi algo que me tivesse passado pela cabeça. Pode parecer estranho, mas é verdade. De 2004 para cá colaborei com o mestre na romaria, nas meditações, na logística, mas era ele que organizava e geria tudo. É interessante que a única coisa que eu, enquanto romeiro, gostaria de experimentar era a função de procurador das almas. O procurador das almas é o irmão que vai recebendo os pedidos de orações e que carrega esse fardo. As pessoas param, confessam-se e partilham coisas que não repetimos a ninguém. Nunca o fiz e a minha passagem para mestre não foi feita da forma mais tradicional porque normalmente somos guias, despenseiros, procurador das almas, contramestre e só depois mestre. No meu caso, passei de romeiro da ala, que fazia parte da equipa que preparava a romaria, para mestre. Hoje em dia, ser mestre do rancho é uma responsabilidade muito grande e é um serviço que presto na linha daquilo que Jesus nos pediu. Quando na Última Ceia com os Apóstolos começa a lavar-lhes os pés diz-lhes que eles fizessem o mesmo. As palavras não são exactamente estas, mas a ideia é servir os outros e a minha função como mestre é de serviço. Juntamente com o contramestre e com os restantes colaboradores, a missão é preparar os oito dias e todo o tempo que antecede a romaria, desde a Quinta-Feira Santa, que é quando chegamos, até à saída.
Quanto tempo é necessário para preparar uma romaria?
Os nossos regulamentos referem que temos de ter pelo menos 22 horas de preparação. Fazemos mais um pouco para permitir que alguns irmãos, que não podem estar em todas as reuniões, possam ter essas horas de preparação. Começámos a 23 de Janeiro com reuniões semanais à 2º Feira que se estendem até à 4ª Feira de Cinzas (hoje). Cantámos na Eucaristia do último Sábado de cada mês e isso também conta como momento de preparação. Para além disso, temos também uma hora a nosso cuidado no Lausperene, que é agora no próximo fim-de-semana depois do Carnaval. Daí até à nossa saída temos duas reuniões por semana (2ªs e 4ªs Feiras) que normalmente duram à volta de hora e meia. Após a romaria temos as nossas reuniões mensais que são extremamente importantes porque permitem manter a chama acesa e o grupo mais unido.
Quantos irmãos vão participar na romaria deste ano? O rancho terá muitos irmãos novos?
Não é fácil responder a essa questão. As inscrições estão abertas durante o ano inteiro e há um período (3 semanas antes) em que os irmãos são alertados que se devem dirigir ao arquivo ou a um dos responsáveis para se inscreverem. As inscrições fecham no primeiro dia de reuniões, este ano a 23 de Janeiro, e começamos as preparações nessa altura. Há quem nos critique por não sermos flexíveis e por não deixarmos entrar um irmão que se decida à ultima da horas. Há também quem diga que só fazemos isto porque temos irmãos suficientes, não estou a criticar os ranchos que não fazem assim, mas esta é uma opção nossa. Inscrevem-se muitos irmãos antecipadamente e logicamente que, por razões de trabalho ou porque estão fora da ilha, às vezes não podem vir. Isto para explicar que não é fácil dar um número exacto mas este ano somos à volta de 40 irmãos.
Houve mais procura este ano em comparação com o último ano em que saíram?
Em 2019 e contando com a Sagrada Família, estávamos também nos 40 irmãos. Em 2020 ainda chegamos a fazer as preparações e depois acabamos, como todos sabem, por não sair. No rancho do Rosário não notamos nem uma procura extra nem um desinteresse. Há um grupo que se manteve, há alguns irmãos que já não iam connosco há algum tempo e que se inscreveram e temos também este ano 3 irmãos novos (1 adulto, 1 criança e 1 adolescente).
Como foram sentidos estes três anos sem romaria?
Senti um vazio. Em 2020 ainda tivemos reuniões até à 2ª semana da Quaresma e inclusivamente recolhemos dois ranchos de romeiros. Foi um vazio apesar de virmos de um ano de muitas actividades (reuniões, Lausperene) mas, como ficamos todos fechados em casa, percebemos a razão. Mantivemo-nos em contacto pelas redes sociais e na semana da romaria publicou-se diariamente uma mensagem. Em 2021, o vazio foi maior porque não tivemos nada e é inevitável, naqueles dias em que deveríamos sair, pensar onde estaríamos. Nós, os responsáveis pelo rancho, sentimos uma responsabilidade redobrada. É verdade que todos os irmãos estão sentindo o mesmo que nós e procurou-se que naquela semana estivéssemos unidos de alguma forma. Já o ano passado, ficou decidido em reunião magna dos irmãos mestres dos ranchos de São Miguel que não se iria para a rua e continuo a considerar que essa foi uma decisão acertada. Mas admito que houve uma espécie de sensação de orfandade por não estarmos juntos a caminhar.
E agora o retomar deste ano?
É diferente e vou falar pelo nosso rancho. Juntávamo-nos no último Sábado de cada mês para cantar na Missa, tínhamos a nossa reunião mensal, também cantávamos em alguns casamentos e havia também a Festa da Padroeira. Com estes 3 anos sem romaria houve um corte e encontrávamo-nos pontualmente, não pelas melhores razões porque infelizmente tivemos 2 irmãos que partiram. O retomar é quase do zero porque se antigamente as romarias estavam marcadas para um dia, era chegar, juntar a saca, pegar no bordão, hoje não é assim.
Sente que as pessoas estão
espiritualmente preparadas?
Estamos todos menos preparados espiritualmente. As pessoas podem dizer que os romeiros o são apenas por 8 dias e, pessoalmente, essa conversa não me aflige porque se, no final, formos melhores só isso já valeu a pena. A falta desse calor humano fez com que as pessoas se afastassem umas das outras e quando isso sucede estamos a afastar-nos do nosso Pai. É preciso alguma paciência, como dizia um irmão, principalmente para quem tem responsabilidades no rancho, mas este é também um desafio que nos dá algum ânimo.
Quando sai o rancho do Rosário?
Juntamente com o rancho de Rabo de Peixe e com o do Pico da Pedra, saímos na 5ª Feira que antecede o Domingo de Ramos, ou seja, no dia 30 de Março. Somos os últimos ranchos a sair.
Haverá alguma alteração em
relação a anos anteriores?
Os responsáveis do rancho serão os mesmos. Os guias e o procurador das almas, o nosso irmão José Castelo que vem sempre dos Estados Unidos, são também as mesmas pessoas. Há um pequeno ajuste nos despenseiros, mas isso é pontual. O itinerário mantem-se o mesmo e as pernoitas também. A dinâmica será a mesma, mas fazemos sempre um pequeno ajuste aqui e ali para introduzir algo de diferente. Vamos continuar a ser recolhidos em casa das pessoas porque essa é uma parte tão importante de uma romaria como a própria caminhada.
Há menos gente a recolher depois da pandemia?
Havia um receio que houvesse menos gente. Todos os ranchos estão a trabalhar para que se mantenha como anteriormente, mas, evidentemente, é provável que em alguma localidade exista receio. Isso é natural, até porque nestes três anos sem romaria houve gente que morreu, que foi viver com os filhos, que envelheceu e houve gente nova que tinha recolhida uma vez e que não vai repetir, mas, por outro lado, também há quem vá recolher pela primeira vez.
É um homem ligado à ciência e muitas vezes diz-se que a ciência e a fé não coabitam. O seu caso pessoal demonstra exactamente o contrário…
Acho que quanto mais se avança na ciência mais se percebe que existe um Pai Criador. Se pegarmos no Livro de Genesis que nos conta a história da formação do Homem e do Mundo, há uma passagem que diz que Deus pegou no barro, moldou o Homem e depois deu-lhe a vida através de um sopro nas narinas. Se nos virarmos para a Ciência, vemos que muitos dos primeiros seres vivos terão vindo do lodo, da lama. Comigo uma coisa não choca rigorosamente nada com a outra porque realmente não faz sentido não haver um Criador. Esse Criador existe, é bom, é Pai, é misericordioso e quer, como diz o Profeta Jeremias, a nossa felicidade. Depende de nós alcançá-la.
O que o leva continuar a caminhar passados todos estes anos?
Espero poder fazer esta caminhada de purificação da minha fé até poder. É uma experiência tão boa e repito isto muitas vezes; nesta caminhada vivenciamos o Reino de Deus e aquilo que Jesus nos deixou como herança. Naqueles 8 dias as nossas preocupações estão sempre presentes e aquilo é tão bom que quando acaba não nos apetece deixar. Se é assim é porque vivenciamos e sentimos, mais do que é habitual, a presença Dele. Para mim esse tempo é importante porque permite repensar a vida, olhar para o que tenho e não tenho feito ou, ao fim ao cabo, o que poderia ter sido e não fui. Mais do que ser uma caminhada de fé, é uma caminhada de purificação da minha fé. A religião dá-nos certeza, a fé não nos dá certezas. É Ele que me faz caminhar e espero poder continuar durante muitos anos.
Luís Lobão