Quarta-feira de Cinzas

“A imposição das cinzas é uma tradição longínqua e é um sinal austero tremendo que nos faz lembrar a nossa pequenez”, afirma o padre Duarte Melo

Correio dos Açores - Qual a importância da Quarta-feira de Cinzas para os cristãos?
Padre Duarte Melo - A Quarta-feira de Cinzas inaugura um tempo muito especial para os crentes, nomeadamente a Quaresma, que se inicia neste dia com a imposição de cinzas. Neste tempo, a Igreja apela a todos os cristãos, fiéis e discípulos de Jesus, às práticas do jejum, da oração e da penitência, na medida em que isto serve para ajudar a preparar os crentes para a Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Quaresma é um tempo que nos coloca em ordem à Páscoa, que é o mistério central da fé cristã, a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, celebrada a 9 de Abril este ano.  
Neste período, a Igreja tem um itinerário de 40 dias, que o Papa Francisco apela que sejam percorridos à maneira do itinerário Sinodal. Caminhar juntos em ordem à transfiguração pessoal e eclesial. O Papa refere-se a transfigurar de forma pessoal e eclesial através do caminho feito juntos. Para os cristãos, a Quaresma é um tempo que lhes favorece. Ao iniciarmos a Quaresma, percorrermos os caminhos da nossa interioridade, em busca de encontrar o essencial, que dá sentido à nossa vida. Ao mesmo tempo, nesta caminhada, percebemos que ninguém vive de forma isolada em Igreja. Somos um povo de peregrinos que vivemos em trânsito, mas juntos.

Que práticas são vivenciadas na Região nesta altura?
A Quaresma é um tempo favorável para nos encontrarmos connosco. Há práticas externas que são muito vivenciadas nos Açores, nomeadamente as romarias quaresmais, as procissões, as vias sacras, entre outros. Há um conjunto de práticas que facilitam e ajudam o crente a vivenciar este tempo de salvação. Todos nós precisamos de salvação e redenção, todavia isso implica termos capacidade e desejo de mudança, a que a Igreja apela à conversão. Converter é virar o seu coração para Deus, tal como um girassol se volta para o sol. Quem se volta para Deus recebe a graça e ilumina as zonas sombrias da sua vida e do seu coração. A Quaresma favorece-nos a fazermos juntos este itinerário, o caminho de cariz sinodal, para celebrarmos com alegria os mistérios da nossa salvação, que é a Páscoa.

O roxo é uma cor associada à Quaresma…
Durante a Quaresma, a Igreja veste-se de roxo, uma cor que invoca para o recolhimento. A Igreja veste-se de roxo durante os 40 dias, que começam na Quarta-feira de Cinzas, em que iremos inaugurar na Igreja, todos juntos, este tempo que favorecerá a mudar formas de pensar, agir e de estar no mundo.   

A imposição das cinzas é uma tradição que remonta a quando e o que representa?
A imposição das cinzas é uma tradição longínqua e é um sinal austero tremendo que nos faz lembrar a nossa pequenez. As cinzas são feitas com ramos secos, que foram queimados, do Domingo de Ramos do ano anterior e servem como sinal superior para percebermos que a nossa condição humana é frágil, que vivemos do provisório. Esta prática é um sinal bastante austero que nos lembra que quem vive apenas das coisas mundanas e das aparências, vive de pó. A imposição das cinzas é traçada na fronte ou é derramada na cabeça do fiel e o sacerdote profere duas expressões: “Arrependei-vos e acreditai no Evangelho”; “Lembra-te que és pó e em pó te vais tornar”. Esta combinação do sinal externo, que é a imposição das cinzas, com as palavras apela-nos à mudança.
A imposição das cinzas revela a urgência de voltarmos o nosso coração para Deus. Os cristãos devem centrar a sua vida na palavra de Deus, pois é dela que vivem. Na Quarta-feira de Cinzas, a palavra de Deus apela a rasgar-nos o coração e não as vestes. Rasgar o coração implica identificar as feridas que precisam de ser curadas e, ao mesmo tempo, abrir-nos à eternidade.
Por vezes, fala-se pouco da eternidade, da vida em Deus, uma vida que não se cinge apenas ao tempo cronológico. A eternidade é muito mais abrangente. Nós somos chamados e destinados à eternidade.

O que representam as práticas disciplinares para os cristãos, nomeadamente o jejum, a penitência e a oração?
O jejum, a penitência e a oração são exortações em ordem à mudança, à conversão. Durante a Quaresma, estas três palavras estão constantemente presentes, em todas as Sextas-feiras de cada semana, quando se realiza a Via Sacra ou outras práticas como  as romarias. Estas práticas disciplinares convidam-nos a mudar e a comprometermo-nos com a mudança.
Estes sinais exteriores de austeridade ajudam-nos a libertar das nossas obsessões. Por vezes, somos obsessivos com coisas, pelo que o jejum nos leva a libertar, a relativizar e a valorizar aquilo que nos poderá trazer alegria. Por outro lado, enquanto jejuamos, devemos ter sempre o sentido do outro, uma certa alteridade. As nossas alteridades estão fechadas, muitas vezes. Nós gostamos de quem gosta de nós e relacionamo-nos com as pessoas de quem gostamos. Ora, a Quaresma apela-nos para outra alteridade, para nos relacionarmos também com aqueles que temos mais dificuldade em estar. Na Quaresma os pobres não poderão ser esquecidos nas nossas práticas.
A esmola é uma palavra que tem de ser usada com a verdade que ela transporta. A esmola é o mesmo que caridade e significa amor. Como diz Valter Hugo Mãe, o amor é que faz de nós o dobro daquilo que somos. Portanto é pelo amor, e por gestos que nos possam libertar e dar sentido à nossa própria biografia. Celebrar a Quarta-feira de Cinzas em Igreja, em povo, traz-nos graças e bênçãos de Deus, proporcionando a que entremos na nossa vida interior para sermos curados. O pecado deixa feridas e todos temos as nossas tristezas e desgostos, mas não percamos o horizonte da esperança e da alegria que há em nós.  

Actualmente, atribui-se a mesma importância à Quarta-feira de Cinzas do que no passado?
Estamos num mundo da circunstância temporal e há muitas condicionantes à vivência da comunidade. Muita gente procura uma espiritualidade individualista, mas a espiritualidade cristã não é individualista, mas sim comunitária e implica compromissos efectivos em ordem às questões ardentes do mundo e da vida. O caminho da Igreja não é um caminho individual e deve ser trilhado em conjunto.
Na Quarta-feira de Cinzas ainda vai muita gente à Igreja, que se identifica com a Igreja Católica, não só pela questão da tradição, mas por opção, que se sente bem neste contexto de viver a fé na Igreja, na comunidade dos crentes, dos discípulos de Jesus.
Durante a Quaresma, o discernimento espiritual torna-se mais presente e saber discernir é uma prática fundamental na vida cristã. O discernimento é feito por três fórmulas, nomeadamente pela razão, pela cabeça, temos que ser racionais; pelo coração, razão e fé; pelas mãos, o que remete para acção.
A Quaresma implica, ainda, discernir a nossa vida pessoal e comunitária através desta triangulação: cabeça, coração e mãos. Estas são ferramentas de vivência espiritual. Hoje, sentimos muita sede de espiritualidade. A religiosidade acontece e é importante, mas pode ser apenas um impulso fugaz que não compromete, um sentimentalismo. Por vezes, a religiosidade vive da megamanifestação, ao passo que a espiritualidade vive de caminhos de interior.
Neste sentido, a fé cristã, que temos no mistério pascal, é pequena. Isto é, não é uma fé de massas, é a fé da semente, do tamanho do grão de mostarda, que ao ser lançado na terra tem força de crescer e de se tornar uma árvore. A fé da Igreja é uma fé pequena que não tem a pretensa de dar nas vistas. Todos juntos, devemos caminhar na fé da semente que, apesar de não dar nas vistas, tem a força de se tornar numa árvore, onde as aves poderão fazer os seus ninhos e criar o seu abrigo. A Igreja tem de ser lugar e abrigo, sobretudo para os mais sofridos da vida. Aliás, neste momento, estamos muito feridos com a situação vergonhosa, escandalosa, hedionda e nojenta que a Igreja está a passar. Porém, este é também um tempo rico para a misericórdia, purificação, mudança e para termos outra forma de pensar e olhar a Igreja, não numa perspectiva fechada e de poder, mas segundo uma perspectiva de serviço aos mais pobres e sofridos da vida. A Igreja tem de se penitenciar na Quaresma, assim como todos nós, juntos, mostrando obras de bondade e misericórdia, efectivas que realizem a liberdade, a libertação e o resgate. Todos precisamos de resgate e devemos ajudar-nos a resgatar uns aos outros.

Como é que os jovens sentem e encaram a Quaresma?
Os jovens vivem muito o tempo do Carnaval, na sua preparação e nos seus festejos, com entusiasmo e alegria, mas a outra parte já não é tão vivencial. Vivem as práticas externas, de alegria e de prazer, no entanto, precisam de descobrir as práticas de interioridade, que são aquelas que nos pacificam, que fazem a convergência, ajudando-nos a identificar razões de viver e que não nos deixam alienar. Essas práticas precisam de ser vivenciadas e têm de passar a ser vividas nas famílias. O grande problema da Igreja é que, por vezes, não chega às famílias.
A Igreja nos Açores está em mudança e exige de todos nós, cristãos baptizados, uma reflexão. A Igreja precisa de outro paradigma, mas isso requer coragem para as mudanças. Não podemos prolongar situações que já não são vida. Há que ter a coragem de desligar a máquina do aparelho institucional e ver outro horizonte, que tem a ver com a urgência do evangelho.

Qual o lema da Igreja para esta Páscoa, numa altura em que se fala muito de pobreza, exclusão social e aumento do custo de vida?
Devemos ajudar os mais pobres. A paróquia de São José, por exemplo, apoia famílias todo o ano. Nos tempos fortes na vida da Igreja, designadamente o Advento, que é o tempo que nos prepara para o Natal, assim como a Quaresma, que é o tempo que nos prepara para a Páscoa, apelamos  para que as famílias tenham gestos de generosidade, a designada esmola.
A grande força espiritual é darmos aquilo que também precisamos. Isso é de uma generosidade tremenda e é a isso que se chama gratuidade. Pela esmola, pela solidariedade de fazer o bem sem olhar a quem, os nossos pecados são redimidos. Não basta participar nas devoções e nas missas, é preciso exercitar a caridade. O amor vale tanto como a missa. É uma prática tão sagrada como quem está a participar na eucaristia.
A missa coloca-nos em saída para as periferias existenciais (…). São periferias existenciais aqueles que estão mergulhados nos vícios da droga e do álcool. Infelizmente, parece que não temos uma resposta concertada a nível de Igreja e de políticas sociais, quando devíamos estar juntos à mesma mesa. Eles existem, estão a olho nu e convivem diariamente na praça pública, nas nossas ruas. Estas pessoas têm uma mensagem para nos transmitir. Os pobres têm uma mensagem a veicular às sociedades contemporâneas, que estão cansadas pelo consumo. Esta mensagem tem de ser lida e percebida, e a Igreja tem de estar vigilante e atenta às mensagens que são transmitidas através daqueles que, por vezes, nem fazem parte da comunidade e que nem têm vivências de prática religiosa.

É visível o aumento de sem-abrigo e de consumidores de novas substâncias psicoactivas em Ponta Delgada. Qual o papel da Igreja no auxílio a estas pessoas?
A Igreja, ao longo da sua história, tem tomado sempre a dianteira na ajuda, resolução e cooperação de situações emergentes de pobreza a vários níveis. Ou seja, a Igreja tem estado de vanguarda, porque é este o seu papel e outra coisa não se espera, fazendo parte da sua missão. Estar atento às situações de pobreza e às emergências
Se observarmos, nos Açores, a Igreja é que tem estado quase sempre com todas as instituições de solidariedade social. A meu ver, precisava de sair um pouco desta rotina, porque há outros problemas emergentes que requerem outros desafios e coragem, como o caso dos sem-abrigo, das toxicodependências, da violência doméstica, que é transversal a toda a sociedade e que se apresenta de uma forma bastante dissimulada. Temos que estar muito mais atentos e vigilantes nas práticas de prevenção. Por vezes, estamos preocupados com práticas de celebração, contudo, podemos celebrar a nossa fé através de práticas de cidadania, e de construção de espírito crítico e democrático, sem nos deixarmos levar pela ilusão dos populismos e fanatismos, que podem enfraquecer a própria racionalidade democrática, assim como o espírito de exercício de missão da Igreja.  
 
A Páscoa está a perder importância para os cristãos?
A Páscoa é sempre o centro da vida cristã e o cristão jamais poderá dispensar este acontecimento. A Páscoa enquanto mistério salvífico e de esperança precisa de ser dita e ensinada de uma outra forma, mas sem perder a sua essência. A celebração tem de que ter peso, medida e dignidade celebrativa. Não podemos banalizar a celebração. Ela é feita de repetições e as repetições vão dando sentido à existência, fazendo-nos reformular a nossa existência. Por isso, uma celebração não nos pode deixar indiferentes. Deve ser preparada com cuidado, envolvendo as pessoas na celebração e deve ser detentora de uma unção própria que nos possa certificar e comprometer. Temos de preparar as nossas celebrações pascais com coração ardente, fé, devoção e alegria, para levarmos a Páscoa de Jesus Cristo ao mundo.

Que mensagem quer deixar aos nossos leitores nesta Quarta-feira de Cinzas?
Procurem não ter medo de viver a fé e de celebrá-la com alegria. São João Paulo II dizia-nos, na sua primeira encíclica: “Abri as portas ao redentor”. Então, que ninguém tenha medo de abrir as portas do seu coração a Deus, porque Deus faz morada em cada um de nós.
                                       

Carlota Pimentel  

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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