“É justo e devido que se destaque a notável personalidade e os valores a que se dedicou...” José Bruno Tavares Carreiro

Iva Matos, Directora da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada

 Correio dos Açores -  Porque surgiu este projecto de estudo de José Bruno Tavares Carreiro?
Iva Matos (Directora da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada) - Um dos objectivos desta Direcção, que iniciou no ano passado, é dar a conhecer o valioso e raro espólio documental à guarda da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada (BPARPD), tornando público o seu acesso, acrescentando-lhe igualmente conhecimento. Sendo uma das poucas instituições de memória em Portugal, que reúne, num único espaço, os documentos de Arquivo e de Biblioteca, a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada aproveita o ensejo para dar a conhecer publicamente o trabalho técnico feito nestes acervos documentais, nas duas valências. O projeto tem por objectivo promover, uma vez por ano, uma iniciativa desta natureza.  No início da minha comissão de serviço, no final de 2021, teve lugar uma mesa redonda sobre Armando Cortes-Rodrigues com o mesmo propósito. Este projecto em particular, sobre o acervo documental de Tavares Carreiro tem, portanto, o mesmo enquadramento e esteve programado para dezembro último, mas vicissitudes várias tornam-no possível só agora.
Um projecto desta dimensão e profundidade, com a publicação desta monografia, pressupõe muito empenho da equipa. Apesar da equipa da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada ser pequena, penso que temos conseguido chegar a bom porto com estes projectos.
Para este, em particular, foi fundamental contarmos com a colaboração do professor Carlos Guilherme Riley que acrescenta sobremaneira muito conhecimento a este acervo documental tão importante para os Açores.
Qual a relevância deste estudo?
O Arquivo Tavares Carreiro e a Anteriana de José Bruno Tavares Carreiro são acervos documentais de enorme valor. Permitem reconstruir uma época, a história de uma família e da sociedade insular. Possibilitam viajar e tornar visível a centralidade açoriana no conturbado início do século XX. Contribuem para acrescentar conhecimento aos estudos literários, políticos e sociais. São memória viva e documentada da açorianidade. A responsabilidade na preservação deste valor patrimonial singular é indissociável da missão de o tornar acessível. Com a publicação de “Memórias da rua do Gaspar”, edição da Direcção Regional dos Assuntos Culturais, coordenada e executada pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e lançada hoje, pretendemos dar a conhecer o trabalho de tratamento arquivístico levado a cabo no Arquivo Tavares Carreiro.  Torna público, igualmente, o labor dos bibliotecários na Anteriana ao longo dos tempos. Regista a dimensão do arquivo e da biblioteca, dando também nota da história custodial de ambos os acervos. Os textos fixam as metodologias de trabalho técnico adoptado, informam das condições que lhes estão subjacentes e enquadram a época de forma séria e documentada. Os documentos e os livros são centrais nesta abordagem, mas igualmente relevantes são quem os produziu e os preservou para memória futura. O fio condutor deste legado é José Bruno Tavares Carreiro. É a figura de proa desta aventura documental, cujo conteúdo está acessível para pesquisa nos catálogos online da BPARPD. É justo e devido que se destaque a sua notável personalidade e os valores a que se dedicou a favor da vivência insular e atlântica.

 

Carlos Guilherme Riley  (Investigador e Professor): Ao longo da sua vida José Bruno TavaresCarreiro José Bruno “deixou marcas na vida social e política açoriana...”

Correio dos Açores - Em que medida se interessava Tavares Carreiro pela Diplomacia e a Política Internacional?
Carlos Guilherme Riley - José Bruno interessou-se pelas Relações Internacionais porque era um homem com mundo e do seu tempo. A condição açoriana também ajudou, pois teve a percepção lúcida da importância geoestratégica que o arquipélago viria a desempenhar no século XX. É difícil datar com exactidão o início desse interesse, mas arrisco dizer que foi no decurso da Grande Guerra (1914-1918), período que viveu de forma intensa e em que desempenhou funções diplomáticas ad-hoc junto do Comando da Base Naval americana em Ponta Delgada. Acompanhou e leu tudo quanto se publicava sobre a Revolução Russa de 1917 e devorava com avidez as colecções de documentos diplomáticos ingleses, franceses e alemães, bem como a literatura memorialista dos grandes aptores da política internacional. Considerava-se um filho do “longo século XIX”, mas soube interpretar muito bem a viragem para o século XX.
O único título da sua obra que dá conta deste interesse, A Aliança Inglesa, publicado já depois da sua morte, em 1960, é a ponta de um icebergue que fica a descoberto lendo a volumosa correspondência do arquivo, designadamente a trocada com o seu amigo e colega de Coimbra, Rui Enes Ulrich, o qual esteve à frente da Embaixada portuguesa no Reino Unido em duas ocasiões (1933-1935 e 1950-53). O diálogo estabelecido, ao longo de quase quatro décadas, com este e outros correspondentes sobre os eventos internacionais e a política externa portuguesa, é um conjunto documental que merece ser estudado com profundidade pelos especialistas na matéria.

De que modo marcou Tavares Carreiro a vida social e política açoriana do seu tempo?
José Bruno, na sua vida adulta, atravessou vários tempos, como já foi referido:
O período finissecular da monarquia, em que dirigiu o periódico regenerador O Distrito;
I A I República e a Ditadura, quando fundou e dirigiu o Correio dos Açores na fase mais combativa e profícua, do ponto de vista da autonomia e do regionalismo açoriano;
O Estado Novo, onde assistimos a um gradual afastamento da direção do jornal e da vida pública, e consequente refúgio naquilo que ele próprio designava as suas “literatices”, entre as quais se destaca naturalmente a biografia de Antero Quental, mas que englobavam um conjunto diversificado de interesses, desde a política internacional à lírica camoniana, passando por Eça de Queirós, autor com o qual se identificava bastante.  
Em todos esses tempos José Bruno deixou marcas na vida social e política açoriana, mas aquele em que mais se destaca a sua cidadania ativa é sem dúvida o das décadas de 1920 e 1930, quando o Correio dos Açores impulsionou a campanha autonómica insular com a Madeira e promoveu a “Visita dos Continentais” aos Açores, isto para não falar do já mencionado culto cívico a Antero de Quental e das inúmeras colaborações que acolheu nas páginas do jornal em prol dos interesses açorianos, com destaque para a de Luís Silva Ribeiro, o terceirense com quem manteve ao longo da vida uma relação de amizade e afinidade intelectual cujo testemunho epistolar, conservado integralmente neste arquivo, documenta muito daquilo que foi a primeira metade do século XX açoriano.
Para além do que se encontra publicado no Correio dos Açores, que já de si é bastante, a correspondência do seu arquivo proporciona uma leitura complementar da sociedade local, onde transparecem as ilusões e desilusões do ideal autonómico, bem como as adversidades centralistas e distritais que se opunham à construção de uma identidade açoriana.
Socorrendo-me de um conceito hoje corrente, José Bruno foi um dos “intelectuais públicos” mais proeminentes do seu tempo e, nessa medida, o arquivo agora disponível, revelando os bastidores da sua vida e obra, é de grande valor para o estudo do passado recente nos Açores. Independentemente da avaliação retrospetiva que hoje façamos das marcas que deixou na vida social e política açoriana, gostaria de recordar a forma como era considerado pelos seus contemporâneos, transcrevendo o excerto de uma carta que lhe dirigiu Vitorino Nemésio, de Coimbra, em 1925: Não conheço, eu que me prezo de tanto amar as Ilhas, mais forte devoção, inteligente vigilância pelos nossos nobres interesses, e fé mais pura, mais militante insular de que a do meu Amigo.
                                               

Odília Gameiro (Arquivista): Existem na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada cerca de 16.500 documentos que percorrem três gerações da família Tavares

 Correio dos Açores - O que se propunha a fazer no seu trabalho de estudo?
Odília Gameiro - O Arquivo Tavares Carreiro entrou na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada em 2012, tendo sido realizado o seu tratamento técnico e a sua disponibilização em linha.
Odília Gameiro - O objectivo deste estudo foi o de dar a conhecer o conteúdo do arquivo, nomeadamente a sua dimensão (é composto por cerca de 16.500 documentos, o período cronológico (percorre três gerações da família Tavares Carreiro) e a forma como se encontra organizado.
Trata-se de um arquivo familiar de dimensão considerável. Com documentação datada entre 1864 a 1994, os cerca de 16.580 documentos que compõem o Arquivo Tavares Carreiro testemunham a história de três gerações, ao longo de 130 anos. O conjunto é bastante diversificado, identificando-se a presença de impressos, desde livros a folhas volantes, provas fotográficas, datiloscritos e manuscritos, como notas, minutas e sobretudo uma numerosa correspondência. É inequivocamente um arquivo de família com documentação produzida e recebida por Bruno Silvano, Georgina Forjaz e José Bruno, figuras sobre as quais fornece importantes dados, assim como também alguma documentação dos filhos do casal, Jorge e Bruno Forjaz Tavares Carreiro.

Que importância tem Tavares Ca-rreiro no contexto do Arquivo familiar?
É inquestionável que José Bruno ocupa um papel central no arquivo.
Protagonismo que não se esgota, de forma alguma, no seu papel de primeiro biógrafo de Antero de Quental. José Bruno viveu num período charneira da História Contemporânea, sendo um espectador interessado em momentos de grandes mudanças nacionais, entre as quais, o regicídio, a queda da monarquia, a implantação da República e a consolidação do Estado Novo, bem como internacionais, pois grande parte da sua vida desenrolou-se entre as duas guerras mundiais.
A sua vocação de jornalista leva-o a refletir e a intervir em muitos destes acontecimentos, sobretudo num contexto regional, sendo múltiplos os documentos do arquivo que refletem as suas múltiplas áreas de actuação: entusiasta do teatro amador, secretário do governo civil de Ponta Delgada durante perto de 40 anos, fundador do jornal “Correio dos Açores”, de que foi diretor desde 1920 a 1937, principal dinamizador, em 1924, da Visita dos Continentais, cujo objectivo primordial era o de divulgar o potencial turístico dos Açores,  participante ativo no segundo movimento autonómico e autor de uma vasta obra literária, publicada sobretudo na década de cinquenta.
No entanto, José Bruno não esgota a importância do Arquivo Familiar Tavares Carreiro. Este é um arquivo familiar, e não pessoal. Neste contexto sublinho, sobretudo, o interesse do núcleo relativo a Bruno Silvano, maioritariamente relativo à sua vida profissional. Inversamente, saliento, de igual modo, a relevância do conjunto de documentos de Georgina Tavares Carreiro que dizem respeito a uma vivência mais privada, dando a conhecer a história do quotidiano da família.

 

Catarina Teixeira Pereira (Bibliotecária): José Bruno foi um dos mais relevantes percursores do culto cívico prestado a Antero de Quental

Correio dos Açores - Qual a dimensão da anteriana de José Bruno Tavares Carreiro?
Catarina Teixeira Pereira - A anteriana de José Bruno Tavares Carreiro, deixada por disposição testamentária do próprio, datada de 1952, à Biblioteca Pública de Ponta Delgada, conta com cerca de 530 espécies documentais, a maioria das quais corresponde a monografias e as restantes a publicações periódicas, folhetos e também, embora em número reduzido, partituras musicais. Na sua generalidade apresenta sinais de repetido uso tais como anotações à margem, correcções e até chamadas de atenção nos índices das obras mais generalistas. De destacar são os exemplares autografados pelos seus autores/prefaciadores e com dedicatórias a José Bruno.
A constituição desta coleção culminou na publicação de vários artigos no Correio dos Açores, sobretudo os 61 artigos que divulgou naquele periódico entre abril de 1932 e setembro de 1933 sob o título Subsídios para a biografia de Antero, e, igualmente, para a publicação de Antero de Quental: notas sobre a sua vida, em 1934, e da sua magnum opus intitulada Antero de Quental: subsídios para a sua biografia, publicada em dois volumes em 1948.

De que forma é que este estudo que Tavares Carreiro realizou é relevante para o conhecimento de Antero de Quental?
A grande obra de Tavares Careiro intitulada Antero de Quental: subsídios para a sua biografia, é considerada pela Prof.ª Doutora Ana Maria Almeida Martins a primeira grande biografia de Antero. Para a realização deste estudo, José Bruno apoiou-se na análise criteriosa das cerca de 530 espécies que constituem a sua coleção anteriana, bem como nas colaborações prestadas por amigos e anterianistas que se prestaram a levar a cabo pesquisas, investigações e a enviar cópias de jornais e revistas.
Contrariando as palavras do próprio quando diz que aquela obra era “apenas uma vasta coleção de materiais para o estudo da vida de Antero”, Vitorino Nemésio afirma que “o nome Bruno Carreiro ficará para sempre ligado a um dos mais sólidos estudos que em Portugal se tem feito sobre a vida e obra de um homem: os dois grossos volumes sobre Antero de Quental”.

Qual o valor e utilidade da anteriana para as gerações de hoje e futuras?
A utilidade da coleção anteriana reside no facto de estarem reunidas várias obras de e sobre Antero de Quental que serviram de base para a publicação da primeira grande biografia do poeta açoriano e outros estudos.
Tal como qualquer fundo particular conta a história de uma vida e dos interesses do seu possuidor, a coleção particular intitulada pelo próprio José Bruno de anteriana, conta a história do seu fascínio por Antero e do trabalho árduo e meticuloso desenvolvido que resultou nas várias publicações que editou sobre aquele poeta. É graças a este trabalho rigoroso que as gerações de hoje e as futuras, têm ao seu alcance obras de considerável importância para o estudo de Antero, todas reunidas num mesmo espaço. A anteriana de José Bruno perpetua a memória e o legado do poeta açoriano.

Como é que Tavares Carreiro viveu Antero Quental?  
Diria que viveu Antero de forma intensa e permanente. José Bruno Tavares Carreiro foi um dos mais relevantes percursores do culto cívico prestado a Antero de Quental. O Correio dos Açores serviu durante anos como o seu púlpito, a sua plataforma para a disseminação das palavras de Antero, através da publicação de cartas e poemas seus, bem como de textos da autoria de contemporâneos do poeta e de outros anterianistas. Como diz Tavares Carreiro, no final do prefácio dos Subsídios, a dedicação a Antero “Foi quase um culto do meu espírito, desde a juventude, o homem a quem consagrei este trabalho”.                           

Mariana Rovoredo

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Autor: CA

Categorias: Regional

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