Professor Eduardo Marques regressou da missão humanitária em Hatay

“Adquirimos competências na Turquia que podem ser muito úteis numa situação idêntica nos Açores…”

  O professor Eduardo Marques, da Universidade dos Açores, fez parte, durante cerca de 10 dias, de uma missão internacional na Turquia, onde várias cidades foram totalmente destruídas por um sismo. Nesta sua missão foi acompanhado por um médico que desenvolveu a sua actividade vários anos na ilha Terceira, José Ricardo Bordón Márques, além de quatro holandeses, no âmbito da organização internacional ‘Together’. No regresso afirma, num depoimento sobre as experiências que viveu, que “veio mais rico” e “mais bem preparado” para situações do género que possam ocorrer nos Açores.
Eduardo Marques esteve em Hatay - que é Província e cidade -, numa região chamada Iskenderun, na zona de Arsuz. Relata que os primeiros impactos que viveu foram “de profunda tristeza e profunda dor, porque o nível de destruição é tremendo”.
Explica que “uma coisa é vermos as imagens a partir da televisão, outra coisa é estar no local a ver, ouvir, cheirar e sentir estes ruídos. E ver a dimensão avassaladora de cidades destruídas em cactos, tudo arruinado, tudo caído desde o prédio mais alto à casa mais modesta: Ou estavam colapsados já no chão, ou estavam em ruínas. Os edifícios estavam todos fissurados, cheios de rachas, meio em pé, meio caídos. E aquilo que não caiu vai ter que cair, porque há uma observação muito simples: verificamos que os edifícios estão todos abertos, todos rachados de cima abaixo”, refere.
Eduardo Marques circulou por várias cidades onde antes viviam cerca de um milhão de pessoas “e que agora estavam quase desertas. Permaneciam as infra-estruturas, algumas em pé, mas a maior parte no chão. E, efectivamente, é um choque grande, é consternação muito grande pensar que ali viviam pessoas, muitas morreram e que muitas, provavelmente, ainda estão debaixo dos escombros porque pudemos constatar que muitos edifícios nem foram alvo de busca porque estavam de tal maneira destruídos que não valia perder tempo porque já não havia ninguém vivo face à situação de destruição destes edifícios. Tive, assim, um primeiro impacto extremamente negativo, um impacto que causa angústia, causa dor, que nos deixa quase sem conseguir respirar”.

Aquele cheiro que não passa

O voluntário açoriano tentou imaginar “o que terá sido aquela noite do sismo, das pessoas acordarem com as casas a tremer e a implodirem. Foi uma noite extremamente fria. Toda a gente relatava que havia mesas nas ruas, chovia bastante e as pessoas ao relento sem terem possibilidade de se abrigar porque as casas estavam todas a cair e era muito perigoso procurar um abrigo em termos de uma infra-estrutura construída”.
Descreve uma das coisas “nunca vai esquecer: Estávamos com os meus colegas a fazer um mapeamento do território, um pouco para perceber qual era a realidade e o que poderíamos fazer. Estávamos num edifício e cheirava extremamente mal. O meu colega médico, que já tinha estado no terramoto do Haiti, explicou que este era o cheiro do cadáver: ‘debaixo dos teus pés deve haver cadáveres e este é o cheiro da putrefacção’, disse. E eu comentava: mas, caramba, isto não me sai do nariz e ele respondeu: ‘habitua-te porque nunca mais o vais perder. Até hoje já passaram mais de 10 anos sobre o terramoto do Haiti e ainda tenho o cheiro dos cadáveres em putrefacção. É uma espécie de uma memória olfactiva que se instala no nosso cérebro’. Confesso que não estava preparado. Foi algo que nos tira o chão dos pés. É o impacto de estar em cima de alguém, de uma criança, de um idoso, de um animal, do que for”.

Viver com deslocados

“Estivemos a viver como deslocados, com famílias. Estivemos em dois campos de deslocados. Muitos milhares de pessoas foram deslocados para outras cidades. Muitas continuaram ali, em acampamentos, que, entretanto, foram construindo e que continuam a construir. Há que alojar milhares e milhares de pessoas, de maneira que os acampamentos de tendas ou contentores estavam a ser construídos. Na noite em que chegámos, já chegamos muito tarde, de madrugada, cerca das 04h00 da manhã. Fomos dormir para uma estrutura onde estavam dezenas de pessoas, e tivemos de nos deitar ao lado, em sacos de cama no chão, ao lado de famílias, ao lado de idosos, ao lado de crianças e dormir ali encostados aos outros. Era o único sítio que estava disponível para dormir. Foi assim uma chegada no meio da escuridão, praticamente não havia electricidade, não havia água. As estradas, pontes, tudo caído. Foi uma verdadeira odisseia chegar e instalarmo-nos”, descreve.
No segundo dia, Eduardo Marques conseguiu que cedessem uma tenda num dos acampamentos de deslocados “e a partir daí, era ali que dormíamos, muitas vezes era ai que tomávamos o pequeno-almoço, que comíamos alguma coisa, tudo de forma muito simples, muito precária, mas era o que havia. Era caso quase para dizer que tínhamos de partilhar o chão, a comida e todos partilhamos um pouco daquela desgraça”.

“Nunca hei-de esquecer”

O “nunca hei-de esquecer” é uma frase que Eduardo Marques vai repetindo ao longo do seu depoimento. “Apesar de não falarmos a língua - era quase impossível comunicarmos com a população local em inglês – ou utilizávamos uma aplicação de tradução, mas para isso tínhamos de ter internet, coisa que nem sempre havia, ou ter tradutores, mas não havia tradutores 24 horas por dia”.
“E o que estivemos a fazer foi um trabalho quase de exaustão, pelo menos no que a mim diz respeito. Tive de desenvolver e montar um centro comunitário, numa tenda, para acompanhar e diagnosticar crianças, mas depois havia todo um trabalho de ir a reuniões com as grandes organizações internacionais que lá estavam, designadamente as Nações Unidas, e outras organizações internacionais. Havia ali também um trabalho muito intenso de reuniões para se identificar quem é que estava no terreno, em que terreno estava cada instituição, o que é que cada instituição ou organização tinha para oferecer, e como é que se cooperava e como é que se articulava o trabalho entre todos”.
  “…Tínhamos de desenhar soluções, começar a desenvolver projectos à procura de linhas de financiamento para financiar todo um trabalho que se quer fazer no futuro. Já se teve alguns resultados nesse processo. Portanto, havia um trabalho de intervenção psico-social com as vítimas da catástrofe, havia todo um trabalho de planeamento, organização, participação em reuniões. Depois, havia um outro trabalho de planear o futuro e desenhar projectos que respondessem às necessidades presentes e futuras das populações afectadas por este terramoto”.

Trabalho com equipas espanholas

“Enquanto lá estive”, descreve Eduardo Marques, “ocorreram também dois terramotos, já de alguma dimensão. Um deles provocou algumas vítimas, porque havia pessoas que estavam a tentar voltar às suas casas para recuperar os seus documentos, recuperar alguma coisa e com o terramoto, muitas das casas que ficaram de pé, caíram também. Os dias passaram-se muito depressa, o tempo voou. Fizemos o que estava ao nosso alcance de fazer”.
Salienta que o seu colega Ricardo Bordón, médico, “ajudou a prestar cuidados de saúde nos dois campos de deslocados onde estávamos a viver e a trabalhar, de modo articulado com outras equipas. Designadamente, trabalhamos, em colaboração estreita, com um hospital espanhol que estava montado perto do nosso acampamento. Isso foi muito bom porque permitiu fazer referenciação, ou seja, eu identificava casos que, eventualmente, pudessem ser mais complicados de trabalhar, a nível de stress pós-traumático, a nível de perturbações psicológicas, e referenciava para o psiquiatra e para as psicólogas clínicas do hospital espanhol que se situava na zona em que estávamos a trabalhar”.
“Onde eu estava”, narra, “todos os hospitais locais estavam fechados, tinham ruído, a estavam de tal maneira danificados que não podiam prestar cuidados de saúde, e aquilo que tinham feito era trasladar doentes para outras cidades, ou então criar também hospitais em tendas, onde prestavam algum tipo de apoio”.

Uma terceirense na Turquia

O hospital espanhol tinha cerca de 100 pessoas a trabalhar, entre médicos, técnicos de laboratório, farmácia e cozinheiros. “Criaram um hospital quase de um dia para o outro. Muitas das pessoas que precisavam de cuidados vinham para esse hospital e, atendendo a essa cooperação e colaboração que conseguimos criar, eles às vezes encaminhavam-nos pessoas que precisavam de desenvolver actividades ocupacionais, de distrair, de fazer outras coisas. Trabalhei com as psicólogas do hospital espanhol e tentamos ajudar. O foco, desta vez, centrou-se mais nas famílias e estabelecemos os primeiros passos para um trabalho que vai continuar”.
Eduardo Marques anuncia que, antes de regressar aos Açores, “conseguimos garantir a continuidade do projecto, pelo menos até Junho e é nesse contexto que vai estar, do dia seis ao dia 15 de Março, a directora-técnica da Casa do Povo de Santa Bárbara da Terceira, doutora Alexandra Menezes, enquanto motricista, na equipa portuguesa na Turquia”.
É que “foi identificada uma necessidade de trabalhar com os idosos. Muitas organizações estavam muito focadas nas crianças, ninguém estava a olhar para a área dos idosos e foi-nos pedido para desenvolvermos centros comunitários para poder integrar essa parte dos idosos. E é então, neste contexto, que a Alexandra vai partir, atendendo àsua experiência em Gerontologia, mas também no âmbito da gestão de actividades psicomotoras e ocupacionais”.
“O trabalho continua e mantemos presente a solidariedade açoriana neste contexto do apoio às vítimas da catástrofe”, salienta, com orgulho, Eduardo Marques.

 Deixei a Turquia “com uma
grande experiência de vida”

Eduardo Marques afirmou ao Correio dos Açores que, após 10 dias, deixou a Turquia “com uma grande experiência de vida. Aprendi muito sobre a intervenção psico-social em catástrofes. Esta aprendizagem no terreno, para mim, é fundamental. Apesar de conhecer esta realidade e ter escrito sobre esta realidade, penso que é no terreno e em tentarmos implementar processos de ajuda, que ganhamos um outro olhar, uma outra capacidade de avaliar a intervenção em situações de catástrofes. Até do ponto de vista profissional vim mais rico. Mas, acima de tudo, a maior riqueza foi a amizade que se criou com as pessoas, com as vitimas. Fomos lá para cuidar, mas posso dizer que fomos muito bem cuidados. As pessoas estavam muito gratas e perceberam que, apesar da distância a que estávamos, deixamos as nossas casas, as nossas famílias, os nossos filhos, para os ir ajudar e havia um sentimento de gratidão muito grande para connosco”.
“Éramos a única organização que estava neste território. Tirando os médicos e o hospital espanhol, não havia mais nenhuma organização perto de nós. Todas as outras estavam quase a 100 quilómetros. Quando íamos às reuniões com as Nações Unidas e com os grandes actores internacionais, era mesmo na cidade de Hatay, que estava a cerca de 100 quilómetros do campo onde estávamos. Criamos relações de amizade com crianças, com os pais, mas também com muitos médicos, com muitos profissionais de ajuda, e todos estavam sempre disponíveis para nos ir oferecer um chá, para nos ir levar comida, para nos dar um abraço. Essa experiência humana foi muito forte”, descreve.

“Temos de nos preparar
 para o pior”

“E, efectivamente, a grande lição que tiro é que temos de nos preparar para o pior, temos de nos preparar para eventos como este que possam acontecer também nos Açores”, conclui Eduardo Marques.
“O que toda a gente diz é que quanto mais preparação, menor serão os danos, seja em termos materiais, seja em termos de vidas humanas. É na prevenção que deve estar o nosso trabalho e nesse sentido pretendo, agora ainda mais, com uma motivação reforçada, trabalhar neste campo, na Região. Não é que este campo seja novo para mim. Quando cheguei, em 2018, começamos a trabalhar e desenvolvemos até uma pequena brochura para ensinar às pessoas a ter a sua mochila sempre pronta para catástrofes. Na altura, com os meus alunos, fizemos alguma intervenção em escolas e infantários”, recorda.
“Penso que está na altura de voltar a imprimir esses documentos, voltar a trabalhar as questões da intervenção, mas também da investigação neste contexto.”, afirma.
Anunciou, a propósito, que vai “aproveitar a presença de outros voluntários para irmos tentar perceber mais um pouco sobre as questões da ansiedade ambiental, da eco-ansiedade. Vamos fazer um estudo científico também na Turquia que estamos a tentar implementar com  a Universidade de Istambul, mas as coisas estão a acontecer todas muito rápidas e a resposta tem de ser rápida, porque as pessoas têm necessidades agora e isso obriga-nos a trabalhar e a dar o melhor de nós para que se possa fazer chegar essa ajuda o mais rápido possível. Aquilo que eu percebi é que, por parte dos nossos media, não houve assim tanta atenção. Parece que a Turquia já é um assunto esquecido, e não pode ser esquecido, é um drama humanitário que está a afectar milhões de pessoas e diria eu que de um tremor de terra ninguém está livre”.
Daquilo que percebo das suas palavras, quantos mais investigadores e especialistas açorianos puderem ser voluntários na Turquia, melhor para os Açores? E a resposta de Eduardo Marques não podia ser outra: “Exactamente. Adquirimos competências e conhecimentos que um dia podem ser muito úteis numa situação idêntica nos Açores. De maneira que acho que, neste diálogo e neste trabalho, que é um trabalho voluntário - ninguém nos mandou ir lá, partiu de iniciativa própria de querermos ajudar – mas ao ajudarmos os outros podemos aprender com os erros e pôr essas competências ao serviço da região, em particular, neste campo da intervenção psico-social, e muito em particular na intervenção psico-social em situações de desastre”.

João Paz

 

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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